quarta-feira, 14 de maio de 2014

O sempre lembrado

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
O sempre lembrado saiu de cena sem dizer nada a ninguém. Não reclamou de dor no peito, falta de ar, não houve queixa de espécie alguma. O coração parou no meio da tarde diante da televisão. Estava com o gato no colo.

A empregada é quem notou o que tinha acontecido quando ouviu o barulho dos óculos pesados caindo no chão. Correu até a casa da cabeleireira, na esquina, para chamar a viúva.

O sempre lembrado partiu dessa para melhor na maior discrição.

Depois que o corpo foi sepultado, os membros da família começaram a procurar vestígios, reminiscências, pequenas memórias que falassem do sempre lembrado. Deram-se conta de que ele era um estranho para eles.

Havia alguns sinais, poucos, de sua presença espalhados pela casa. A cadeira do papai era um deles, na sala onde via televisão quase sempre só. Ele assistia aos jornais e geralmente dormia no meio. A cadeira conserva o formato de sua cabeça.

Um outro sinal era o guarda-chuva preto pendurado no hall, que ele chamava de Rocinante. Nunca ninguém entendeu por que ele gostava tanto de sair a caminhar pelas ruas do bairro nos dias de chuva.

A mulher foi vasculhar nos bolsos do marido. No íntimo, ansiava encontrar uma carta, um bilhete, uma anotação qualquer dirigida a ela. Poucas palavras dizendo o quanto a amava e como sentiria sua falta do outro lado. Quem sabe alguma orientação sobre como dispor dos poucos bens da família.

Nada encontrou além de algumas moedas, tíquetes de estacionamento de shopping e pedágio (era ele quem dirigia o carro para a praia duas vezes ao ano). Examinou também as gavetas, pastas, malas. Nada.

Como podia alguém retirar-se do mundo desse jeito, sem deixar uma despedida, um consolo, depois de quarenta anos vivendo junto na mesma casa?

Se ao menos o sempre lembrado tivesse sido mau. Seria um alívio e todos esqueceriam dele no outro dia, tocariam a vida. Mas era homem bom, atencioso, caseiro, embora de pouco falar.

Os três filhos embrenharam-se entre velhas fotografias para ter o pai de volta. Defrontaram-se com a incômoda realidade: o último retrato que tiraram com ele tinha mais de dez anos.

Nos primeiros dias, não sentiram tanto a ausência. Às vezes parecia que se ouviam seus passos lentos pela casa, comentando alguma coisa sem importância, falando praticamente sozinho.

O pai e marido era eterno até então, sempre por perto, não obstante invisível. Doméstico como o sol da manhã no pátio da casa. Embora ninguém percebesse, estava neste mundo.

O sempre lembrado ausentou-se de repente e só então fez-se perceber. Conseguiu com a morte chamar a atenção sobre sua pessoa, ignorada até ali.

Com o tempo, a família foi tentando assimilar aquele vazio. Havia um buraco no coração de cada um.

Ninguém quis ocupar a poltrona de couro da sala. Continuou a ser território cativo do ausente.

O gato, porém, procedeu como se o morto ainda existisse. De tarde, todos os dias, o bichano pula na poltrona e aninha-se no colo do invisível como se o dono ainda dormisse na frente da televisão.

O gato foi o ser mais próximo do sempre lembrado entre todos da casa. Com ele ficaram as melhores recordações.