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terça-feira, 14 de abril de 2015

O Landgrave

Jorge Adelar Finatto

designer: Deus. photo: jfinatto


A fala principial que lhe dirijo, ó, impossível leitor.

Eu, o Landgrave, me curvo diante da vossa alta ausência. Vivo no interior do ermo, habito as brumas dos Campos de Cima do Esquecimento.

Me esqueço no esconso do mundo. Meu revólver é o calepino.

Vento de julho quase me derruba.

As fraquezas do corpo. Nunca se sabe o que vem a contrapeito. Travessias a que os fados nos obrigam.

O sonho muito sonhado tinha nome: Cléria, Cléria dos meus suspiros. Invernos ao relento. A moça de papel e tinta, musa em solidão concebida, menos tida que havida. Só a conheci de vista, na janela da mansarda, quando lá embaixo ela passava. Eu poeta tímido e sufocado.

Sentimentos que teço no abismo dos dias. Dores que não têm conta.

O fosso profundo do fundo de cada um. Meu Deus.

Foi assim.

Os vazios dias, minhas tardes distantes, à beira do penedo. Hoje eu vejo tudo aqui de cima, na mansarda. Recolhido na grossa e comprida manta, atrás dos óculos de fundo de garrafa. Não vivo mais na borda dos penhascos. Saltei para dentro da lira. O consolo possível.

Esta página escrita no sótão, arrostando vento e solidão.

Fugazes as vaidades do mundo são. Mais vale um poema que um tostão. O frio glacial dessas alturas inóspitas.

Fui resgatado do evento proceloso pela mão de salvadoras prosopopeias. Eis-me de ponta cabeça no perau do texto.

São caminhos que se andam. Depois se aprende, depois se esquece. A vida.

O que não se tem se inventa. O mundo não tem bom coração. O delicado vive por teimoso e obstinado.

A humanidade enaltece a ruína, mata o humano. O que fizeram com esse texto as escuridões do mundo!

Cléria, sim, Cléria do capucho branco e do casaco azul claro. Cléria dos meus tormentos. Dos meus espantos e secretas ternuras. A que não se deixou amar. A desaparecida musa do vestido rosa com a fita lilás. Entrou e saiu do meu sonho sem saber.

Vivia lá no seu castelo, sem dar pela minha existência de bardo de arrabalde.

Eu o que quero agora é a solidão dos ventos gelados.

Meu olhar atravessando as névoas eternas.

Eu, o provedor das horas finitas, senhor de nadas, o catador de conchas de silêncio nos ares da infinita montanha.

Ela se foi pela estrada de ferro, sem dizer adeus.

Nas minhas saudades, ouço o ranger do velho trem saindo da estação.

A sintaxe é território que se conquista na dureza de batalhas cruentas. Palavras são coisas que criam asas e depois se lançam.

Agora sou o navegante. Viajor do tempo. Astrônomo de dicionários. O tal que restou com a bicicleta retorcida nas pedras.

 O sobrevivente, ridículo pierrô interiorano.

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Texto revisto, publicado antes em 13 de outubro de 2010.
 

quarta-feira, 12 de março de 2014

O inquilino do absurdo

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto. 09.03.2014. Passo dos Ausentes

 
Eu, Landgrave dos Santos Esquecido, inquilino do absurdo, de tudo dou fé e assino.
 
As coisas que não aconteceram são as que mais se afeiçoaram à minha memória.

A biografia que merece os veros registros: a dos não-acontecimentos, a dos impossíveis sonhos. O resto são pedras que se carregam dentro dos bolsos. Como os suicidas a caminho do mar. 
 
Essa cidade é onde o abandono é dono.

As praças vazias onde me quedo ouvindo falecidas conversas. Ó ausências do mundo!

Bardo obscuro e tabelião de papéis perdidos em Passo dos Ausentes, eu vivo os interstícios. Os ásperos padecimentos da humana travessia.

Cheio pela borda de cansaços, frustrações, tapas na cara e desejos. Quem houvera nesta vida se dignasse escutar meus ais.
 
Viver é assunto proceloso e bem noturno.
 
Por isso estou aqui. Me contando, me abrindo, me inventando.

Sou o bardo barroco, ressuscitado em salvadoras prosopopéias. A obsessão pela música interior. Essa que me faço e entrego ao raro leitor. Construo o venturoso canto.

Não me interessa a realidade. Quem tiver a realidade que bem a guarde e embale.

Sou viajante de um tempo que se esfuma. O tal.

A saudade é um retrato em branco e preto na gaveta do oblívio. Os pedaços de cada um.

O meu coração habita um quarto de pensão. A pensão se chama Ao viajante solitário.

Às vezes penso que o mundo é uma grande pensão. A pensão dos viajantes solitários. E viver é um fio de orvalho estendido de manhãzinha sob o sol.

Somos parceiros das nuvens e da bruma.
 
Caminho para o lugar ermo do esquecimento.

Eu, Landgrave dos Santos Esquecido, inquilino do absurdo, ante vossa alta ausência, improvável leitor. 

Aqui Passo dos Ausentes, nos Campos de Cima do Esquecimento, Rio Grande do Sul, Brasil. Dou fé e assino.

Inícios de outono.
 
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Texto revisto, publicado em 20 de agosto, 2010.