UMA NOITE DE INVERNO, em Veneza, abri o guia telefônico. Estava entocado no quarto de hotel, a acqua alta inundava a Piazza San Marco. Encontrei pessoas com o sobrenome da minha família na lista. Lembrei que um tio me disse certa vez que o pai dele, meu avô, e seus três irmãos tinham vindo de Veneza, ainda meninos, para o Brasil.
Passei dias e dias andando nas fondamenta (caminhos para pedestres na beira dos canais), tirei muitas fotos, atravessei pontes, entrei em igrejas, gôndolas, museus. No fim das tardes, cansado, acabava ancorando no cais da minha solidão com um copo de vinho fresco no Café Florian..
Não fui atrás de remotas origens familiares. Queria conhecer os recantos pouco explorados pelos turistas, e senti que aquele lugar tinha muito a ver comigo, bicho das águas. Sempre gostei de cidades de rio ou mar. Não por outro motivo escolhi a cidade de Rio Grande como minha primeira comarca, no século passado, após tomar posse como juiz. Rio Grande, o único porto marítimo do Rio Grande do Sul por onde entravam os imigrantes.
A vida me ensinou que buscas no passado nem sempre são uma boa ideia. De resto, a esta altura todos estão mortos. Não sobrou ninguém para partilhar vetustas memórias de fins do século XIX.
Sei que atrás de mim existem seres que atravessaram famintos o Atlântico numa viagem dolorosa à beira do abismo. Vieram da Europa e da África. Por isso às vezes sonho com gôndolas iridescentes navegando com seus fantasmas entre as estrelas.
Pensando nessas coisas tomei, hoje, um café, in memoriam, no Florian, enquanto a bruma se espalhava na piazza.
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Texto inédito, escrito em dezembro, 2017.
photo jfinatto |
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Texto inédito, escrito em dezembro, 2017.