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quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Alvaro Moreyra e Drummond

Jorge Finatto

Alvaro Moreyra

Pareço-me com ampolas de injeção de bismuto. Tenho em mim as coisas necessárias. Mas preciso ser sacudido para que se misturem.
                                                      Alvaro Moreyra

ESCREVI uma biografia, talvez melhor dizer reportagem biográfica, do cronista, poeta e autor de teatro porto-alegrense Alvaro Moreyra (1888-1964), publicada em 1985.* Fiz o trabalho movido pela admiração que sentia pelo escritor e pelo ser humano Alvinho, como era carinhosamente chamado.
 
A admiração nasceu de uma crônica de Carlos Drummond de  Andrade (1902-1987), na qual o poeta de Itabira (MG) revelou que foi Alvaro, entre os autores nacionais, aquele que mais o influenciou nos anos de formação.

Ao ler os livros de Alvinho na Biblioteca Pública do Estado, ali na Rua Riachuelo, fiquei encantado. A elegância, sutileza, humanidade e ironia do seu texto vinham temperadas na experiência do homem vivido, cozido e recozido pela vida. Um belo escritor.
 
Fiz o trabalho de pesquisa em bibliotecas e hemerotecas. Não havia reedições de seus livros. Conversei com parentes dele em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. Entrevistei escritores como Jorge Amado e Guilhermino Cesar, entre outros.

Eu trabalhava nas horas vagas, no pouco tempo que sobrava depois da rotina diária como jornalista e funcionário público. Entrava pelas noites, madrugadas, fins de semana. Fui ambicioso, queria um livro abrangente do ponto de vista histórico-cultural e, ao mesmo tempo, próximo da vida rica em acontecimentos e realizações do biografado. 
 
Quando reli o livro depois de publicado, identifiquei algumas falhas de informação e erros de revisão. Embora não comprometam, na essência, o conteúdo, pois no fundamental o livro está correto, me incomodam. Queria a perfeição mas o resultado não foi bem esse. Fiquei um tanto decepcionado. O tempo e a experiência me ensinaram a ser mais humilde. O fato é que, às vezes, essas coisas acontecem. Fazem parte do processo. O negócio é corrigir os erros, aprender com eles, tocar em frente. Se um dia houver uma reedição, espero poder corrigir os erros, ou que outros corrijam por mim.

Carlos Drummond de Andrade
 
O produto final entregue aos leitores serviu ao objetivo de chamar a atenção sobre sua obra e figura humana. Tempos mais tarde recebi carta de Carlos Drummond de Andrade, que guardo como relíquia, na qual ele diz que o livro fez justiça ao Alvinho e teve o mérito de lembrá-lo às novas gerações. Acrescentou tratar-se de um escritor e um amigo de quem sentia grande saudade, e que o trazia na memória do coração. Só por este reconhecimento creio que valeu a pena.
 
Com este breve recuerdo quero homenagear, além de Alvaro Moreyra, o grande poeta Drummond pelos 116 anos de seu nascimento completados hoje.
 
Um abraço para além do tempo, com afeto e gratidão de leitor, a ambos.
 
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*Alvaro Moreyra. Coleção Esses Gaúchos. Editora Tchê!, Porto Alegre, 1985.
O crédito das fotos será dado quando conhecidos os autores.
 

terça-feira, 22 de abril de 2014

Leitor, anônimo criador da literatura

Jorge Adelar Finatto

livros. fonte: jornal Público, Lisboa
 
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente. 
 Cesário Verde *

As palavras não vivem senão nos olhos do leitor. E não possuem outra vida além daquela que lhes dedicamos na leitura. Existem tantas leituras de um texto quantos são seus leitores. Cada um lê de uma maneira, recria ao seu jeito, de acordo com sua sensibilidade e subjetividade.
 
Um livro são muitos livros, tantas são as interpretações que lhe emprestamos. É na cabeça e no coração do leitor que as histórias e poemas são recriados e ganham corpo. O que alguns denominam autonomia do texto é, na verdade, autonomia de leitura.
 
Por isso, acho que, das três pedras sobre as quais se constrói o edifício da literatura -escritor, texto e leitor-, é o último a mais importante, a verdadeiramente indispensável, aquela sem a qual a palavra escrita se esvazia de sentido e perde a razão de ser.

A atividade de ler é a mais generosa e civilizada do universo dos livros.
 
O destino final do texto literário é você, raro leitor, somos nós, anônimos e ilustres desconhecidos que damos vida à página escrita, os únicos que podem resgatar das geleiras e ilhas ventosas da indiferença as palavras em solidão concebidas.

Em solidão concebidas para a solitária aventura da leitura. A palavra escrita é pura travessia humana.
 
Se a partir de hoje não surgisse mais nenhum autor (vamos bater três vezes na madeira), a literatura ainda assim estaria a salvo. Os livros publicados até hoje são suficientes talvez para o resto da eternidade.

Mas se fosse o inefável leitor o desaparecido (bater seis vezes na madeira), toda a literatura produzida simplesmente deixaria de existir. E só renasceria um dia aos olhos de um redivivo legente em algum remoto recanto da Via Láctea.
 
Cada um de nós (leitores) torna-se responsável pela preservação desse patrimônio espiritual que nos chega desde as camadas mais profundas da experiência humana sobre a Terra.
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O Livro de Cesário Verde.  Cesário Verde. Editorial Minerva, Lisboa, junho de 1952. Trecho inicial do poema Contrariedades, pág. 53.
 

quarta-feira, 16 de abril de 2014

O voo de José Saramago

Jorge Adelar Finatto

Avião da TAP
 
Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós.*
                                                                   José Saramago

O desejo de voar está na alma do ser humano desde a mais remota antigüidade. Na verdade, desde que o primeiro homem e a primeira mulher pisaram no planeta, alimentaram o sonho de elevar-se acima do chão.

Bastou para isso abrirem os olhos e verem do que eram capazes as borboletas, as aves e as nuvens.

Após muitos desastres nas mais diversas geringonças, conseguimos sair pelo céu em aparelhos mais pesados que o ar. Milhões de pessoas realizam, todos os anos, o sonho ancestral de voar.

Comecei a pensar em coisas que voam e em pessoas que querem bater asas a propósito de uma notícia divulgada agora pela TAP (Transportes Aéreos Portugueses). O próximo Airbus A 320 da empresa, recém adquirido, levará o nome de José Saramago (1922-2010), primeiro Prêmio Nobel de Literatura de língua portuguesa, escolhido em 1998.

photo de Saramago. autor: Marcelo Buainain

Eu acho bonito esse costume da TAP de dar nomes de pessoas que contribuíram para a cultura e a história de Portugal, escrevendo-os na fuselagem de suas aeronaves.

No caso de Saramago, além de justa, a lembrança serve também para chamar a atenção sobre a obra do escritor nos muitos países em que a TAP tem operações. Nos meses de junho, julho e agosto a frota de longo curso da empresa exibirá o filme José Saramago, o tempo de uma memória, da realizadora Carmen Castilho.

Uma bela combinação essa de escritores e aeronaves, pois são duas coisas nas quais podemos voar: livros e aviões. E se o passageiro que está dentro do avião ainda lê um livro, estará voando duas vezes.
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*Do livro O Conto da Ilha Desconhecida, José Saramago, p. 41. Companhia das Letras, São Paulo, 1998.