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domingo, 4 de outubro de 2015

A bússola

Jorge Adelar Finatto

photo: reprodução. o crédito será dado assim que conhecido o autor.
 
 
Um dia desses comprei uma bússola em Porto Alegre. A anterior, uma inglesa do século XIX, perdi quando o barco no qual fazia a travessia de uma corredeira, no Contraforte dos Capuchinhos, virou, e eu virei junto, perdendo vários objetos de expedição. Não me perdi no fundo das águas porque me agarrei nuns galhos de uma árvore caída  perto da margem. Deus é pai.
 
A meu lado, na loja, alguém perguntou por que eu queria uma bússola nesses tempos modernos de gps e etc. Por acaso tem medo de se perder na cidade? Nunca tinha visto a tal criatura. Tenho o inusitado dom de atrair essas entidades.
  
Depois de testar o equipamento e guardá-lo, respondi que a bússola é necessária nas minhas andanças por vales e montanhas dos Campos de Cima do Esquecimento. Sem ela, posso me perder e não encontrar o caminho de retorno, o que seria uma perda irreparável para os três leitores do blog.

Não satisfeita, a perseguinte arrematou dizendo o senhor não devia fazer essas coisas, pois não tem mais 20 anos. Cuidado para não acabar no buraco. Não tenho mais 20, cara senhora, nem 30, muito menos 40 e estou passando bem dos 50. E buraco, bem, cada um encontrará o seu um dia. Mas com a bússola eu evitei vários deles.

Em Porto Alegre também utilizo a bússola. A cidade expandiu-se. Cresceu tanto para cima, para baixo e para os lados, que já não conheço mais nada nem ninguém. Preciso do aparelho para me orientar na multidão. Isso aqui é pior do que andar no meio do mato.

Infelizmente, mesmo de bússola em punho, não encontro mais os amigos. Não tem maneira de avistar um rosto querido no turbilhão de faces anônimas. Pelo jeito, todos se mudaram de cidade. Ou fugiram, o que é mais provável, em meio à tanta violência e indiferença.

Tem dias que me sinto um fantasma por essas ruas povoadas de oblívio. 
 

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Meus amigos

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 
Não esqueçam
de me visitar
nas noites
de inverno
quando o medo
cobra caro
e as feridas
não deixam mentir


insolúvel jogo
de espelhos
entre mim
e o que fui

ando bêbado
pela casa
meu coração
é operário
desempregado
com filho pra criar
mulher feia
sem crédito no armazém

me enrosco
em invenções
inúteis
pra repartir contigo
um espaço de ternura

sinto umas
coisas estranhas
caminharem atrás de mim
um cano de fuzil
um casal de velhos famintos
um câncer
e me desagrada não ser
como certos fantasmas

 
convoco o
silêncio e
suas raízes

inauguro a
manhã

não, eu não sou
uma estrela
um rio
um barco
nada se compara
ao que sinto

preciso todos
ao redor da mesa
principalmente
os desaparecidos
como certos crepúsculos
que a gente vê
fogem e nunca mais


___________
 
Poema do livro Claridade, Jorge Adelar Finatto, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.