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domingo, 21 de dezembro de 2014

No tempo do Cine Vogue

Jorge Adelar Finatto
 
Retratos de Ingmar Bergman. fonte: site oficial*
 
Teve um tempo em Porto Alegre que assistir a filmes de Ingmar Bergman (1918 - 2007) era uma religião. O diretor sueco era o pastor de almas de muita gente por aqui, principalmente estudantes, intelectuais,  perdidos na vida e trânsfugas em geral.
 
Era na época da ditadura civil-militar. Eu andava pelos 19 anos em 1976. O general Geisel era o presidente de plantão com o apoio de parcela da sociedade civil brasileira e parte da imprensa. Os direitos e garantias individuais estavam fora da ordem jurídica. Ter ideias e opiniões diferentes dos que ocupavam o poder configurava crime do pensamento. Sim, muito parecido com o "1984", de George Orwell.
 
Nos regimes em que a escuridão vigora, as nuances são proibidas e qualquer sutileza é vista como inimiga. Todos são suspeitos (de alguma coisa) até prova em contrário. Era assim.

O Cinema Vogue, na Avenida Independência, era, como os demais de então, um cinema de rua. Tinha uma programação especial, considerada "cabeça". Um território de resistência em meio à repressão, assim como os bares da Esquina Maldita. 
 
A delicadeza era uma ilha deserta a mil milhas do continente.

O nórdico Ingmar Bergman não tinha nada a ver com a ditadura no Brasil. Não sabia que era o pastor daquelas almas abismadas em voos interiores e travessias espirituais.

Não sendo possível mudar a realidade, muitos buscavam outras claridades. Havia um mundo intangível a ser descoberto, onde os donos do poder e os emissários da morte não entravam.
 
Apesar da pobreza material em que eu vivia, e do escasso tempo para os assuntos do espírito, apreciava os itinerários bergmanianos através da consciência, da memória e, sobretudo, do inconsciente. A manhã seguinte aos filmes de Bergman era sempre o cru desafio da luta pela sobrevivência.

O Brasil de então era e, sinto dizê-lo, ainda é um lugar onde reina uma grande violência social baseada na exclusão e na indiferença. O acesso às coisas da arte continua um privilégio para poucos.

O país conseguiu livrar-se da ditadura, mas não logrou o mesmo com a corrupção, responsável direta pelo atraso e pelo sofrimento da maioria. A dita esquerda tomou o poder central, mas as práticas continuam as mesmas, e em algumas situações pioraram muito como evidenciam os escândalos de grossa corrupção dos últimos anos.
 
Devo dizer, também, que gostava de filmes de Teixeirinha e Mazzaropi, que assistia em outras salas tidas como menos cult, do povão. Havia um grande preconceito das classes média e alta, principalmente entre universitários, em relação a esses filmes brasileiros. Uma coisa idiota como todo preconceito.
 
Essas lembranças me vêm porque andei revendo Morangos Silvestres (1957) e Fanny e Alexander (1982), duas obras-primas do grande cineasta. Me lembrei de mim e de nós. Da vida que foi e da que poderia ter sido. Da vida que passou, tempo finito.

Olhei com esperança para a vida que é e para a que vem vindo logo ali.
 
Viver pode até ser difícil para quem leva o coração entre as mãos, sem omiti-lo nas suas ações e decisões. Mas é infinitamente melhor do que ser mais um a roubar, a dar porrada, a pisar na cabeça dos outros, a destruir a vida alheia, a não ter valores.
 
Muita gente se perdeu no caminho em sinistras direções. Eu inventei tempo para a poesia e a arte em minha vida e tentei/tento compartilhar isso. Foi e é uma maneira de não me perder e de não enlouquecer em meio a uma realidade tão absurda, desumana e violenta como a do nosso país.

Ave, sentimento.
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Site Oficial de Ingmar Bergman:
Os direitos humanos em Cuba:
Texto publicado em 12 de agosto, 2014.
 

terça-feira, 12 de agosto de 2014

No tempo do Cine Vogue

Jorge Adelar Finatto
 
Retratos de Ingmar Bergman. fonte: site oficial*
 
Teve um tempo em Porto Alegre que assistir a filmes de Ingmar Bergman (1918 - 2007) era uma religião. O diretor sueco era o pastor de almas de muita gente por aqui, principalmente estudantes, intelectuais, trânsfugas em geral e perdidos na vida .
 
Era na época da ditadura civil-militar. Eu andava pelos 19 anos em 1976. O general Geisel era o presidente de plantão com o apoio de parcela da sociedade civil brasileira e de parte da imprensa.  Os direitos e as garantias individuais estavam fora da ordem jurídica. Ter ideias e opiniões diferentes dos que ocupavam o poder podia configurar crime do pensamento. Sim, muito parecido com o "1984", de George Orwell.
 
Nos regimes em que a escuridão vigora, as nuances são proibidas e qualquer sutileza é vista como inimiga. Todos são suspeitos (de alguma coisa) até prova em contrário. Era assim.

O Cinema Vogue, na Avenida Independência, era, como os demais de então, um cinema de rua. Tinha uma programação especial, considerada "cabeça". Um território de resistência em meio à repressão, assim como os bares da Esquina Maldita. 
 
A delicadeza era uma ilha deserta a mil milhas do continente.
 
Ingmar Bergman não tinha nada a ver com a ditadura no Brasil. Não sabia que era o pastor daquelas almas abismadas em voos interiores e travessias espirituais. Não sendo possível mudar a realidade, muitos buscavam outras claridades. Havia um mundo intangível a ser descoberto, onde os donos do poder e os emissários da morte não entravam.
 
Apesar da pobreza material em que eu vivia, e do escasso tempo para os assuntos do espírito, apreciava os itinerários bergmanianos através da consciência, da memória  e, sobretudo, do inconsciente. A manhã seguinte aos filmes de Bergman era sempre o cru desafio da luta pela sobrevivência.

O Brasil de então era (e, sinto dizê-lo, ainda é) um lugar onde reina uma grande violência social baseada na exclusão e na indiferença. O acesso às coisas da arte continua um privilégio para poucos. O país conseguiu livrar-se da ditadura, mas não logrou o mesmo com a corrupção, responsável direta pelo atraso e pelo sofrimento da maioria.
 
Devo dizer, também, que gostava de filmes de Teixeirinha e Mazzaropi, que assistia em outras salas tidas como menos cult, do povão. Havia um grande preconceito da classe média, principalmente entre universitários, em relação a esses filmes brasileiros. Uma coisa idiota como todo preconceito.
 
Essas lembranças me vêm porque andei revendo Morangos Silvestres (1957) e Fanny e Alexander (1982), duas obras-primas do grande cineasta. Me lembrei de mim e de nós. Da vida que foi e da que poderia ter sido. Da vida que passou, tempo finito.

Olhei com esperança para a vida que é e para a que vem vindo logo ali.
 
Viver pode até ser difícil para quem leva o coração entre as mãos, sem omiti-lo nas suas ações e decisões. Mas é infinitamente melhor do que ser mais um a roubar, a dar porrada, a pisar na cabeça dos outros, a destruir a vida alheia, a não ter valores.
 
Muita gente se perdeu no caminho em sinistras direções. Eu inventei tempo para a poesia e a arte em minha vida e tentei compartilhar. Foi e é uma maneira de não me perder e de não enlouquecer em meio a uma realidade tão absurda, desumana e violenta como a do nosso país.

Ave, maravilha.
 
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Site Oficial de Ingmar Bergman:
 
Os direitos humanos em Cuba: