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terça-feira, 3 de junho de 2014

As frentes frias

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Vale do Olhar. 02/6/14
 

Em meio à difícil e, ao mesmo tempo, gratificante faina do pensar, sentir, ler, escrever, photografar, parei um momento para ouvir música instrumental. Foi a conta de ser feliz por um momento. Sentei na cadeira de palha perto da janela, fechei os olhos e deixei o mundo girar.

Uma vez, há muitos anos, perguntaram à atriz Tônia Carrero se ela se considerava uma pessoa feliz. Eu estava de passagem pela sala, um segundo, quase saindo de casa rumo à obrigação daquela tarde.

O programa de variedades televisivas não tinha para mim qualquer interesse, fosse pelo conteúdo, fosse pelo horário (início da tarde).  Enquanto bebia o último gole do cafezinho, ouvi de Tônia a seguinte resposta, mais ou menos assim: Eu sou feliz algumas vezes durante o dia.

Fiquei com aquela declaração da atriz na cabeça, dizendo pra mim mesmo que acabara de ouvir uma sábia síntese existencial. Ora, se até Tônia Carrero tem seus momentos de não-felicidade, o que dizer de nós, meros mortais, distantes dos palcos iluminados desta vida.

Isso foi o mesmo que dizer: dificuldades existem para todos, toda gente pode ser feliz em algum momento.

Em outra feliz percepção filosófica da condição humana (ou insight de livre-pensador, pouco importa) sentenciou o cantor e compositor Odair José ao cantarolar como quem não quer nada (dizendo muito): Felicidade não existe; o que existe na vida são momentos felizes.

Pois bem. Os passarinhos estavam comendo suas frutas na varanda do escritório. O Vale do Olhar, à distância, entre as montanhas, respirava azuis e verdes.
 
Parei para sentir, imaginar e viajar nas estradas da música e da paisagem. Fazia um frio danado na segunda-feira, o frio glacial que faz nos últimos 20 dias em Passo dos Ausentes, e que vem lá do fim do mundo, um frio polar enregelante que ajuda a pagar antecipadamente os pecados, os malfeitos, a limpar a ficha diante do Eterno.

Porque tem uma hora que o cristão precisa parar, sentar, ouvir música. Precisa sair do mundo, visitar pensamento e sentimento. Ser o espírito que, afinal, também se é.

A hora em que se necessita ficar longe de toda gente barulhenta, de todo ruído. Sim, sob pena de padecer eternamente, sem remissão, longe da inadiável transcendência, da doçura, do perdão.

Que não nos falte nunca a capacidade de voar sem levantar os pés do chão.

Porque há uma hora na vida que se tem de esquecer o absurdo, e sentar numa tarde de outono para olhar o vale e ouvir música, que é um jeito muito particular de habitar o sublime.
 

sábado, 10 de maio de 2014

Um fantasma quer conversar

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto


Olha só pra mim. Quem me dera. Eu vivo no sumiço. Vento de maio me leva por diante.

Alberta de Montecalvino, a dama deste não-lugar, foi quem me deu a idéia de visitar essa efêmera página virtual.

Sou um dos fantasmas de Passo dos Ausentes, a cidade perdida nos Campos de Cima do Esquecimento, na serra do Rio Grande do Sul. Me chamo Heitor dos Crepúsculos.

Escrevo essas linhas sem muita fé de ser lido. Meu amigo Juan Niebla diz que escrever num blog é escrever na água.

Eu não ligo, sou só de passagem, não tem importância, nada tem muita importância. Não tenho idéia de permanência, compreende?
 
- Escreve alguma coisa, Heitorzinho. Te mostra um pouco, meu querido. Entre os mortos-vivos dessa cidade, és um dos mais sentimentais e engraçados - disse Juan, tocador de bandoneón da estação de trem abandonada.

Não pretendo me dar ares de escritor. Sou, talvez, um escrevedor póstumo, alguém que publica suas histórias no vento. Não escrevo, claro, pra publicar em livro.
 
Olha só pra mim. Não tenho mais a literária vaidade.

Passou o tempo e me levou.

Eu era poeta. Sempre vivi dentro do nevoeiro. Conversava, e às vezes me desesperava, com a folha em branco. As danações do criador.

Depois atravessei a ponte, depois vim para o invisível. Saí do mundo aos 27 anos por vontade própria. A vida era insuportável, não via saída, a esperança não entrava na minha alma. Eu poeta trevoso.

Quem me vê, hoje, pode dizer sem engano: ali vai o arrependido.

Apareço e desapareço, tenho as superiores autorizações. Um fantasma é um ser virtual. Ora está, ora não está. Às vezes choro de saudades da vida com a cabeça entre as mãos pelos telhados. O menino que eu era quando saltei!

Não moro no pequeno cemitério, porque nunca encontraram meu corpo. Me joguei do penhasco, no belvederezinho aprazível que tem na descida do Vale do Olhar.

Foi um momento de infinita angústia, nem queira saber. Cansei de ser gente (o menino que eu era!). Os tristes apressamentos. Cada coisa que se faz na vida.

Nunca quis morrer de verdade. Queria um pouco só, pra sentirem pena. Quando vi o que tinha feito, já era tarde. Agora só existo no oblívio.

Aqui em Passo dos Ausentes todos me aceitam do meu jeito neblinoso, não se incomodam com o lusco-fusco que eu sou. O interrompido. O volátil.

Na dimensão esvoaçante e nevoenta, tudo é muito em paz, mas é uma paz cinza e sozinha.

Escrevo esse breve apontamento na mesa perto da janela que dá para o Vale do Olhar, no Café dos Ausentes, na estação de trem abandonada.

Observo o vento nas palmeiras da tarde gelada de maio. Meu amigo Juan Niebla, músico cego, com seu bandoneón na gare vazia e silenciosa, espera um trem de passageiros que não virá. Agora está tocando As Quatro Estações Portenhas, do Astor Piazzolla.

O último trem partiu faz muito tempo. Esqueceram de desligar a esperança no coração do Juan. Feliz dele assim.

Só a música é eterna. O resto é bruma.

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Heitor dos Crepúsculos é fantasma e poeta em Passo dos Ausentes.
Texto revisto, publicado antes em 30 de maio, 2011.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Cacaso

Jorge Adelar Finatto



Cacaso estaria fazendo 68 anos na data de ontem, 13 de março. Em memória, reproduzo este texto publicado em 02 de outubro de 2010.

Foi o poeta e compositor Cacaso a pessoa que melhor traduziu, até hoje, o sentido do que escrevo. Devo a ele a leitura mais luminosa e mais profunda. O texto foi publicado no jornal Leia Livros, na coluna Vinte pras duas, em 1982. Era sobre meu livrinho de poemas Viveiro, lançado em São Paulo, em 1981, pelo Grupo Sanguinovo.

Fiquei surpreso e feliz com o que ele escreveu, e havia bons motivos. Cacaso é um poeta raro, dos melhores que tivemos na segunda metade do século XX*. Escreveu poemas e letras de música como poucos. Fez parcerias com Tom Jobim, Edu Lobo, Sueli Costa, Djavan, Francis Hime, João Donato, Macalé, entre tantos. Foi professor na Faculdade de Letras da PUC do Rio de Janeiro. Tinha uma leitura muito lúcida sobre o Brasil e nossa cultura. Era um intelectual refinado e, ao mesmo tempo, uma pessoa simples e generosa. Conhecia as ruas das grandes cidades e conhecia o interior brasileiro. Conhecia e amava o nosso povo.

Em 1985, tive o único encontro com ele, visitando-o em seu apartamento na Avenida Atlântica, no Rio. Recordo a ampla sala com piano de onde se via o mar de Copacabana. E uma outra sala, local de trabalho, que tinha um armário repleto de fitas com músicas gravadas. No trato pessoal, revelou-se muito atencioso, disposto a falar e ouvir.

Cacaso (Antônio Carlos Ferreira de Brito, 1944 - 1987), esse homem, esse poeta, esse pensador, foi um pecado morrer tão moço, com tanto ainda para nos ensinar, nos ajudar a entender e nos escutar.

A poesia do Jorge Adelar Finatto é breve, sem muitos volteios, incapaz de autocomplacência e dotada de uma região de silêncio que lhe comunica transcendência. O poeta vê o cotidiano como um absurdo rotineiro, um lugar onde o escândalo já não escandaliza e onde certa dose de perversidade e dureza torna-se um antídoto necessário à sobrevivência.


Cacaso

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Foto: Cacaso. Divulgação. Revista Bravo online, março de 2009. Ilustra excelente texto de Geraldo Carneiro sobre o poeta. bravonline.abril.com.br

* A antologia lero-lero, da editora Cosac & Naify, lançada em 2002, é uma bela mostra do trabalho de Cacaso.

Vale a pena visitar a bonita página criada pela cantora Rosa Emília para Cacaso no facebook: