terça-feira, 29 de setembro de 2015

Solo de violoncelo

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto, 28/9/15
 
A questão é que não basta escrever. É preciso se sentir vivo em cada momento. Por isso ando dando mais atenção aos passarinhos e plantas do meu quintal.

A criação, em qualquer de suas manifestações, é uma tentativa de reinvenção da vida, de extrair-lhe sentidos, cores, formas e perfumes insuspeitados. Exploração e revelação de mistérios. Ó mistérios.
 
A vida cotidiana é injusta, escassa, sórdida, repleta de percalços, dura, seca, gris. A arte é o voo sobre o abismo, a fuga possível do real. A caminhada em direção ao amanhecer.
 
O que sabemos da existência e de nós mesmos é muito pouco, porque vivemos às voltas com a batalha desumana da sobrevivência. Batalha aqui no sentido literal, nada figurado, exata expressão da luta que se trava ao nível da existência.

Quase não há tempo nem disponibilidade de espírito para o outro olhar, um outro sentir, outra harmonia.

Habitamos um circo onde os leões devoram a plateia.
 
O coração é infinito, mas o corpo é perecível. O tempo é eterno, contudo dentro dele somos pobres hóspedes temporários. Seres que passam pelo cosmos como um risco de luz no espaço. Um segundo depois, apagamos.

Não consigo imaginar maior danação do que esta: fenecer depois de haver existido. Tirante a fé em Deus, não sei como lidar com isso. O raro leitor sabe?

Viver é morrer de sede diante do mar.

Alguém dirá: o blogueiro está um tanto sorumbático hoje. Sim, talvez um pouco macambúzio. Mas porém sem jamais desistir da esperança. Porque por meio dela se desenharam, pela primeira vez, figuras nas paredes das cavernas; inventaram-se os pergaminhos, as pirâmides, madonas, arlequins e monalisas; livros, barcos de papel e blogs.

Ninguém nunca quis ficar falando sozinho no vasto universo. Toda obra de arte, toda palavra escrita em página de caderno têm uma única e incontornável pergunta: tem alguém aí?
 

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Um casal no fim da linha

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto

Tenho um conhecido que é cerca de 25 anos mais velho do que eu. Não o vejo há bastante tempo. É uma pessoa com quem sempre senti afinidade. Compartilho sua maneira ponderada e humana de olhar o mundo, de tratar situações difíceis. Nosso vínculo nasceu no meio jurídico, em razão da atuação profissional. Ele no Ministério Público, eu na Magistratura.

Afinidades antes espirituais do que propriamente de convivência, pois não nos encontrávamos com muita frequência. Vi-o algumas vezes  com a mulher, inclusive em congressos. Nessas ocasiões, conversávamos, às vezes passeávamos e jantávamos juntos.

Eu achava bonita a maneira como o casal se dava, após um casamento de mais de 40 anos. Uma sintonia fina, linda de se ver. Gostava de encontrá-los assim, andando pela vida juntos, atravessando o tempo, num companheirismo incomum nestes tempos de relacionamentos de ocasião, onde cada um é por si e o resto que se dane.
 
Ontem fiquei sabendo, por um amigo comum, que ele vive sozinho em casa com uma cuidadora contratada, porque não consegue fazer por si as coisas normais da vida. A mulher, companheira da vida inteira, está numa clínica, necessitando de cuidados médicos permanentes.  A doença os separou, já não podem cuidar um do outro com antes. Não conseguem sequer se ver e dizer olá, como passou o dia.
 
Constato mais uma vez - ó besta e vã filosofia - que a vida é mesmo uma coisa torta e absurda. Procuro uma nesga de justiça nesse caso e não encontro. Como podem terminar assim duas pessoas que se amaram, construíram uma família, lutaram, viajaram, se consolaram, se acompanharam nas boas e nas más horas, e agora não podem ao menos se ver? Onde está o sentido?

Tento encontrar, mas não alcanço, a explicação. Nunca mais verei aquele casal de mãos dadas. Será que tem de ser desta maneira? Não haverá outro jeito, menos solitário e doloroso? Peço a Deus humildade e paciência pra suportar o que parece ser a negação do humano.

Pressinto o de sempre: não entendo nada de nada.  Devia mais era ficar quieto no meu canto, dizendo que a vida é assim mesmo. Calado, sem ruminações inúteis. Acontece que não consigo.

Tem dias que a custo me levanto da cama de manhã para enfrentar a vida. Sei - como sei - que viver vale a pena. Mas às vezes dá um bruto cansaço e uma certa melancolia toma conta. Uma espécie de saudade de uma harmonia e de uma felicidade que jamais conhecerei. 
 

terça-feira, 22 de setembro de 2015

O caçador de flores

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto

O CAÇADOR DE FLORES, na sua floral loucura, busca reter a beleza do que, por natureza, é volúvel ao tempo e perecível.

Confesso que sou amador na arte de caçar flores, alguém que se dedica ao ofício por puro prazer estético, sem fazer disso meio de vida ou por espírito de emulação com outros caçadores.

Setembro. Lanço-me mais uma vez na delicada faina, mesmo sabendo que imagens conservam apenas a aparência do que foi belo um dia e depois deixou de ser.

Saio por aí com a Coruja, vetusta máquina fotográfica que me acompanha há séculos, e começo mais um dia de caçada. Esta é a época perfeita. Início da primavera.

E haja corola pra satisfazer a sanha insana.

O gesto é egoísta, reconheço, típico de quem dá valor excessivo ao próprio deleite, numa ânsia predatória de fazer arrepiarem-se os campos, jardins e pomares. Tal é a sina do predador.
 
O caçador satisfaz o cruento instinto ao capturar flores em fotografias, escondendo-as em álbum secreto. Todavia, o segredo não resiste à evidência de que o belo precisa ser compartilhado.

Só a exposição torna completa a alegria da caça.

Um dia as flores secam e morrem, como tudo que é vivo e respira. Alguma coisa delas permanece nas imagens. Será essa, talvez, a possível atenuante para a conduta violenta do caçador, no seu afã de ter consigo todas as flores que puder e mais algumas.

Na cidade grande quase não há flores ao ar livre. Por isso, e por não gostar de viver distante delas, quando estou longe de Passo dos Ausentes, levo comigo as photos floridas. Um jardim de emergência em meio ao deserto de concreto. Para suavizar o feio e o triste.

Nos Campos de Cima do Esquecimento, de onde escrevo essas frágeis linhas de primavera, não faltam flores, graças a Deus. Elas crescem generosamente em todo lugar e a caça é abundante.

O retrato floral é, talvez, um modo patético de aprisionar o efêmero, alguém dirá. Pode ser. Mas o que não é patético nessa vida, não é mesmo, raro leitor? 
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Texto revisto, publicado antes em 26, nov., 2013. 

sábado, 19 de setembro de 2015

Cais

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 
Tem dias que saímos
com o corpo nu
para alojá-lo na primeira copa de árvore
e chorar longe dos homens

dias em que os desejos
até os mais secretos
sucumbem apagados
na penumbra

tempo de total privação
da carne e do sonho
tardes em silêncio reveladas
intervalo entre dois mundos

olhamos o céu
no quadrado da janela
esperando ver a face de Deus
procuramos Deus
no íntimo da alma e das coisas
precisamos repousar no colo de Deus
sentir suas mãos nos olhos
para amparar a lágrima quente
que por ali verte

tem dias que estranhamos
o próprio olhar
que amanheceu mais seco
não reconhecemos a rua
onde tantas vezes inventamos o amor
na sombra dos cinamomos

as melhores viagens
ficaram sonhando no cais
enquanto navios partiam
repletos de homens decididos
em busca de cidades felizes

onde andará o menino
que nos visitava nos dias
em que tudo em volta
parecia desabar?

em que gare deserta
se perdeu o guarda-chuva melancólico
com que meu avô ia à cidade
buscar a porção diária de pão
esperança
e jornal?

tem manhãs em que apesar do sol
não habitamos o claro sentido
de existir
mal percebemos a luz
acalentando o corpo

manhãs em que o carteiro
extravia a carta que irá nos salvar
a notícia tão esperada
que nos revelará
um mundo desconhecido
onde pandorgas falam
e o arco-íris é uma escada
que nos retira do poço

não compreendemos
as mãos cansadas
a boca amarga
com que damos bom-dia aos vizinhos
cumprimentamos os superiores

tem dias em que o isolamento
é tão assombroso
que sentimos tristeza em tudo
principalmente na alegria ingênua
das velhas fotografias
uma dor inevitável
diante dos sonhos da infância

dormimos em quartos de aluguel
projetamos ataúdes de aluguel
as dívidas invadem a porta
os poros

o amanhã ficou torto
na cordilheira dos dias
sem luz

a cidade parou no escuro
sufocou nossos melhores anos
inundou o rio
com seus maus óleos
seu excremento

não merece um verso
sequer uma notícia fugidia
em página de jornal

talvez careça uma bomba
um terremoto
talvez uma flor
povoando o asfalto

estamos um pouco mais tristes
e calados
(um pouso só)

trazemos um gosto de sol
entre os dentes
um resíduo de primavera
na palma da mão
uma promessa de encontro
nos olhos

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Do livro O Fazedor de Auroras, Jorge A. Finatto, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
photo: Cais de Porto Alegre

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Luz no breu

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
Cada palavra escrita é um pequeno fósforo que se acende em meio ao breu profundo da condição humana.
 
Ler e escrever são maneiras de resistir, de dizer não à indiferença, à barbárie, à morte, ao esquecimento.
 
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Texto revisto, publicado antes em 18 de março, 2011.
 

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Sob os telhados de Paris

Jorge Adelar Finatto

 
Um dos bons livros que chegaram às minhas mãos neste ano é Minha Paris, Minha Memória,¹ do filósofo, historiador, economista e sociólogo francês Edgar Morin (94 anos). A obra foi escrita entre 2012 e 2013 (ano do lançamento na França). Originou-se do discurso de agradecimento que o próprio Morin proferiu ao ser homenageado como cidadão de Paris, na prefeitura da cidade, em 5 de junho de 2012.
 
Já manifestei minha admiração pelo pensador aqui no blog.² Um homem corajoso que nunca deixou de assumir posições em favor dos direitos humanos contra as forças da escuridão, inclusive com risco pessoal. Foi, por isso, em algumas ocasiões, chamado de traidor. O desdobramento dos acontecimentos sempre lhe deu razão contra as investidas do fascismo, na França e em qualquer parte. Um homem que, apesar do que passou, não perde a alegria de viver e conviver.
 
A história do indivíduo Morin perpassa a maior parte da história da França e de Paris no século XX. Foi contemporâneo dos principais eventos e personalidades. Por isso, o seu livro de memórias é tão rico e faz jus à sua amada Paris. Em suas páginas percorremos bairros, ruas, praças, parques, cemitérios, metrô, museus, o Sena, conversas, situações graves e outras alegres, tudo temperado pela vivência e pela humanidade do escritor. Alguém que espera da vida nada menos do que liberdade, igualdade e fraternidade entre as pessoas. 
 
Dizer que ele é um pensador judeu é muito pouco. Ele é, sobretudo, um ser humano sensível aos dramas, sofrimentos, mesquinharias e grandezas dos indivíduos de todas as origens. Um pensador universal, sem sectarismos. É crítico, por exemplo, do Estado de Israel na sua política opressiva em relação aos palestinos.
 
Não espere o leitor memórias açucaradas ou forjadas em irreparável melancolia. O autor nos remete a coisas do passado, mas não perde de vista o presente. Em muitas de suas observações é o presente que pulsa iluminado por sua rara percepção. É um livro lúcido e realista, sem perder a poesia.
 
Ouçamos uma passagem:
 
Um dia, num táxi, o motorista africano me disse, falando não me lembro mais de quem: "Pois eu quero mais é que esse sujeito se...!" E eu pensei, encantado: "Aí está, ele já é dos nossos!" O bar do bistrô parisiense continua firme, e esses lugares onde se brinda e se conversa são autênticos microfóruns da cultura parisiense. (pág. 220)
 
O que se sobressai nesta obra, além do conteúdo notável, é a mão do escritor. Ele sabe como dizer as coisas, e tem um jeito todo particular e encantador de fazê-lo. Ah, sim, Sob os telhados de Paris³ é o título do primeiro capítulo e de uma das canções antigas e inesquecíveis que Morin leva em seu largo e profundo coração.
 
__________
 
¹ Minha Paris, Minha Memória. Edgar Morin. Tradução de Clóvis Marques. Editora Bertrand Brasil. Rio de Janeiro, 2015.
² Edgar Morin. Post de 7 de outubro, 2010:
³ Letra de René Nazelles, música de Raoul Moretti, 1930.
 

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Passos para o abismo

Jorge Adelar Finatto

photo: reprodução. fonte: g1.globo.com*
 
O bairro Menino Deus, em Porto Alegre, é um dos mais tradicionais e bonitos da cidade. Um lugar de ruas antigas, onde havia um belo casario, que aos poucos foi sendo derrubado e substituído por edifícios. Um bairro de vizinhos, de pessoas que se conhecem e convivem.
 
O escritor Caio Fernando Abreu viveu num desses sobrados em seus últimos anos de vida junto da família. Costumava dizer que morava no Menino Deus e não em Porto Alegre. Porto Alegre era apenas o que estava no entorno. Caetano Veloso fez uma música para o Menino Deus. Além das ruas arborizadas e interioranas, há o Guaíba que navega perto. 
 
Tenho uma ligação afetiva com o bairro. Morei lá alguns anos na juventude. Foi lá que conheci a namorada com quem me casei. Dois de meus filhos nasceram quando morávamos no Menino Deus. Perdi a conta das vezes em que os levei a passear por suas praças e ruas. No Menino Deus eles aprenderam a andar de bicicleta e descortinaram, pela primeira vez, as águas, os barcos e as gaivotas do rio. Infelizmente, esse tempo ficou para trás, em todos os sentidos.
 
Em meio ao colapso da segurança pública que assola o Rio Grande do Sul, este bairro querido já não é e nem poderia ser uma ilha. Muitos de seus habitantes estão entre as incontáveis vítimas da violência crua e cotidiana, que invade as ruas e as casas, na forma de furtos, roubos e homicídios, entre outros crimes.
 
Um triste exemplo foi a morte do comerciante Elvino Nunes Adamczuk (49 anos), atingido por uma bala perdida na sexta-feira passada (4/9), enquanto passeava com seus dois cães.  Por volta das 22h, sua mulher ouviu um tiroteio e saiu da padaria Santo Antônio, na Av. Getúlio Vargas, que pertencia ao casal, na qual ela, o marido e os três filhos trabalhavam.  Queria se certificar de que Elvino estava bem.

Um dos cães correu até ela, solto da coleira, e o outro estava ao lado do dono, atingido com um tiro no abdômen. O pequeno empresário foi levado ao Hospital de Pronto Socorro e operado, mas não resistiu e morreu na terça-feira (8/9).
 
Conforme registra o jornal Zero Hora, edição desta quarta-feira (9/9), teria havido na ocasião uma troca de tiros entre policiais e assaltantes.

A reportagem dos jornalistas Adriana Irion e José Luís Costa esclarece que o comerciante costumava acordar às 4h e abria seu estabelecimento às 7h. Tinha uma clientela fiel e era estimado por todos na vizinhança.
 
Moradores de rua escreveram uma carta destinada à família, testemunhando que Elvino Adamczuk era uma pessoa "que sempre esteve junto a nós" (foto acima). Vários deles eram clientes da padaria Santo Antônio. Ele costumava ajudá-los, inclusive dando comida. Também auxiliava entidades assistenciais. Um homem bom, exemplar.
 
Os salários em atraso do funcionalismo público estadual, atingindo integrantes da área da segurança pública, geram paralisações e precariedade no atendimento da população. Os atrasos agravam uma realidade que, muito antes disso, já estava no limite. A criminalidade fugiu do controle.

Os salários pagos aos policiais civis e militares não estão à altura de sua difícil missão, com risco da própria vida.  Além de tudo, esses profissionais enfrentam dificuldades de toda ordem, entre elas a falta de pessoal e a deficiência de equipamentos. Do lado oposto, os criminosos agem em toda parte e a qualquer hora. Com os atrasos, a situação torna-se desumana.
 
Este foi apenas mais um caso, mais uma vítima fatal, num Estado e num país que estão se deteriorando assustadoramente. A falta de segurança é apenas um dos sintomas.

Nunca vi antes o Brasil e o Rio Grande numa situação como essa. Vivemos um momento de densa escuridão, estando o Brasil entre os países mais violentos do planeta. Já escrevi aqui sobre corrupção, desgoverno, violência, indiferença, gastos bilionários com copa do mundo e olimpíadas,  e não vou cansar os poucos leitores voltando a esses assuntos. Ninguém suporta mais tamanha incompetência e insensibilidade dos governantes.
 
Só quero dizer que a perda de pessoas como Elvino Adamczuk é uma barbaridade que nos remete a um imenso vazio de sentidos e a incertezas sobre se ainda estaremos vivos no dia de amanhã. Uma certeza, contudo, existe: sair de casa, nos dias que correm, é um passo em direção ao abismo.

Quando os nossos vizinhos são mortos gratuitamente, como estamos habituados a ver, é sinal de que não existem mais ilhas e de que há muito habitamos o território do medo, da injustiça e da barbárie.

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g1.globo.com
http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2015/09/moradores-de-rua-entregam-carta-familia-de-comerciante-morto-no-rs.html
 

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Buscar água do poço

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

Os voláteis estão em toda parte. Dormem o sono profundo dos ausentes. Sombras silenciosas, eles se arrastam na biblioteca, povoam os livros, os retratos, as recordações. Altas horas da madrugada e o sono não vem.

O escritório é o território da insônia em progresso. O negócio é cochilar nos interstícios, esticado no sofá, até que o livro caia da mão. Depois o dia vai nascer.

A vida são uns sonhos doidos que inventamos e depois vão caindo como camélias no jardim. Mas continuamos colhendo a estrela da manhã na copa dos dias.

Os pássaros habitam a solidão da ilha. Ilha povoada de silêncio, ilha cheia de móbiles da memória.
 
Um barco rasga o nevoeiro, traz a vela branca esticada, o sal do desconhecido, para no meio do escritório, pingando distância. O que veio fazer aqui tão tarde?

Mas são vivas as presenças que, invisíveis, povoam este lugar. 

- Ó menino, vai buscar água no poço.

Lá me vou, correndo porta afora, atrás do balde. Vou trazer água boa, fresca, espelho do céu e da nossa face.

Não importa se as vidas e suas histórias são rascunhos, traços incompletos que se riscam no ar, rostos que um dia desaparecem da face da água. Histórias mal ensaiadas, toscas, frágeis. Mas de qualquer modo, nossas vidas.

O vento tece a dança das corolas, bailados inocentes à flor do mundo sem solução.

Palavras são coisas que se juntam pra suportar. Uma alegria singela.

O pássaro voa rente aos penhascos. Canta a canção da iminente despedida.
 

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Exposição Fanicos & Farfalhas

Jorge Adelar Finatto

photo do pássaro numa das salas do Josephina

Inicia, nesta sexta-feira, a exposição fotográfica Fanicos e Farfalhas com imagens que captei nos últimos tempos em Gramado, Canela, São Francisco de Paula, Cambará do Sul e Passo dos Ausentes.
 
Ali estão os pássaros, céus, flores, vales, montanhas, pinheiros, nuvens, lagos, plátanos, guarda-chuvas, estradas de terra e mais o que habita o invisível. Tudo isso colhido com esmero e silêncio. Se algum mérito há no trabalho, não é por certo do fotógrafo, mero intermediário. O grande artista é quem criou tudo isto: Deus.

 
A mostra tem lugar no belo Josephina Café*, uma casa espaçosa e acolhedora, no coração de Gramado, na rua Pedro Benetti, nº 22, ao lado da Igreja Matriz.

photo: Josephina Café
 
No Josephina, uma cálida lareira aquece o corpo e a alma nesses últimos dias de inverno. A cozinha oferece pratos de tirar o chapéu. Entre tantos cafés, o meu preferido é o Emílio. E há sempre uma flor da estação sobre a mesa.
 
A exposição permanece durante o mês de setembro. Estão todos convidados.
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*Josephina Café:
http://www.josephinacafe.com.br/
 

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Retrato de um tempo morto

Jorge Adelar Finatto
 
Foto: Nilufer Demir/REUTERS/DHA. soldado turco encontra o corpo

O corpo do menino Aylan Kurdi, de três anos, encontrado morto na areia da praia de Bodrum, na Turquia, ontem, após mais um naufrágio de embarcação carregada de pessoas que buscam refúgio na Europa, é o retrato de um tempo terrível.

O doloroso, trágico e intolerável destino de Aylan mostra a face escancarada de uma humanidade que perdeu qualquer noção de dignidade da vida humana.

Não é só o pobre menino que está morto com o rosto enterrado na areia. Todos nós morremos ali com ele.
 
Ao ver a imagem, senti uma profunda vergonha e uma enorme revolta. Vergonha e revolta, sim, por pertencer a uma espécie de seres capazes de criar uma realidade com essa força de destruição e falta de amor ao próximo. A indiferença, o egoísmo abissal e a maldade são o móvel que permite que crianças e adultos sejam jogados ao fundo do mar e depois acabem depositados pelas águas numa praia qualquer.
 
No caso do menininho, acabou-se ali uma vida que mal começava e sobre a qual recaiu tamanho ódio. Ódio irracional que fustiga seres como ele nos países de origem (Oriente Médio e África) e em parte das populações de países europeus que não querem dar-lhes abrigo. 
 
Consta que Galip, de cinco anos, irmão de Aylan, também perdeu a vida na travessia. Ambos morreram afogados quando sua família fugia da Síria em direção à ilha grega de Kos, num percurso rumo à Europa ocidental. A guerra na Síria já dura quatro anos.
 
 
Dados da ONU revelam que mais de 2600 pessoas morreram afogadas no Mediterrâneo, neste ano, em fuga da violência em seus países. Viajam em precários barcos, nas mãos de traficantes de gente, que cobram cerca de 1800 euros por pessoa pelo "serviço" macabro.
 
A maioria está buscando a Alemanha, cuja economia é a mais desenvolvida da Europa. Angela Merkel, chanceler federal alemã, tem adotado um postura de acolhimento, opondo-se à ultradireita e aos neonazistas alemães. Alguns gritam o nome de Hitler e jogam pedras nos imigrantes. Merkel e o presidente francês François Hollande defendem um sistema de cotas, a fim de que todos os países europeu recebam refugiados.
 
Alguns cientistas opinam que a Alemanha e outras nações europeias podem beneficiar-se com a chegada desses imigrantes. Uma vez integrados pelo estudo, pela participação e pelo trabalho, podem trazer riqueza e um amanhã melhor a esses países, repondo a população naqueles de baixa natalidade.
 
Penso que a Alemanha, em especial, tem a grande oportunidade histórica de recuperar-se, em parte, dos crimes cometidos pelo nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. Ao dar guarida e um futuro a essas pessoas, a Alemanha poderá escrever uma nova página sobre os anos de barbárie. Demonstrará, assim, ao mundo, que é possível mudar e redimir-se do passado sangrento, salvando vidas.
 

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

No tempo das pandorgas

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto

 
Na rua São João, a pandorga simbolizava nossa sede de infinito. Carregava nossa imaginação, nossos sonhos, nosso gosto pela liberdade, o desejo de ir além. 

No tempo das pandorgas, andávamos lá no alto, o coração pulsando ao vento. O resto não importava.

Uma das chateações da minha meninice era não conseguir construir e soltar pandorgas. Os meninos do bairro eram bons engenheiros e pilotos dessas coisas que voam. A época ideal de soltar pandorgas devia ser o início da primavera, mas não estou certo.
 
Eu pilotava as pandorgas dos amigos, quando emprestavam. Passei pelo vexame de derrubar várias delas. Mas o primo Rogério me consolava: - Quem nunca emborcou uma pandorga?
 
Em compensação, soltei muitos guarda-chuvas em dias de ventania nos Campos de Cima do Esquecimento. Nunca soube onde foram parar. Sempre fui amigo dos pássaros, esses seres que, como os chapéus de chuva e as pandorgas, também voam. Nem pensar em gaiolas. Observando-os, tornei-me cativo de seu canto, suas cores, seus voos. 
 
Caminhei hoje pelo córrego, pisando seixos, à procura de peixinhos coloridos pra fotografar e restos de estrelas cadentes. Uma mochila nas costas, a estrada de terra, os perfumes da primavera que se acerca em setembro. Quem resistir pode?