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domingo, 25 de maio de 2014

Os gatos e o medo de voar

Jorge Adelar Finatto

ilustração: Maria Machiavelli

Dizem que os gatos pressentem quando o dono vai morrer.

Desde que Nefelindo Acquaviva me convidou pra fazer com ele o vôo inaugural do dirigível O Invencido (que construiu no galpão do quintal de sua casa, como todas as estrovengas voadoras que criou) meu gato Pituca não saiu mais de perto de mim.
 
Nefelindo Acquaviva é considerado o pai da aviação em Passo dos Ausentes. Um doido com alma de Ícaro.

O que seria do mundo sem os doidos, ele costuma perguntar, apontando ambas as mãos para o peito. E ele mesmo responde: ainda andaríamos de quatro e moraríamos em grutas úmidas, malcheirosas e povoadas de morcegos.

Tudo que alguma vez voou nesses céus dos Campos de Cima do Esquecimento passou pelas mãos de Acquaviva, com exceção dos balões misteriosos sobre os quais já falei aqui. Da mesma forma, todas as geringonças que se espatifaram no chão também foram obra dele. Ele coleciona 22 quedas com seus objetos voadores, não incluídos aí os tombos na fase de decolagem, mais de trinta.
 
Sim, eu temo pela minha vida. Como temi das outras vezes em que concordei em acompanhá-lo em vôos abissais pelo Vale do Olhar. Mas sou amigo do nosso Santos Dumont e é difícil dizer não a um amigo.

A vontade de voar é tão antiga quanto a presença do ser humano neste mundo de Deus.

Se o Criador não nos deu asas, deu-nos pra compensar a capacidade de sonhar e é o que fazemos na maior parte do tempo, do contrário a vida seria insuportável.

Da última vez em que saí pelos ares com Acquaviva, estávamos a bordo do Besouro Voador, espécie de motociclo com São Cristóvão ao lado, dentro do qual eu estava, e duas pequenas asas. O aparelho começou a soltar vários estouros em pleno vôo, a 100 metros de altitude, até que parou de funcionar.

Caímos em queda oblíqua em direção à igreja. Cerca de meio minuto depois, arrebentamos e atravessamos o vitral principal. Desabamos na frente do altar, diante do padre, em plena missa das seis da tarde.

O acidente causou um sério desentendimento entre a Igreja Católica e a Aviação em Passo dos Ausentes, que culminou com o rompimento de relações.

Há muito que Nefelindo e o padre Krauss trocam farpas por questões filosóficas e em razão de um outro acidente aéreo que quebrou a torre da igreja.  O padre acha que os ataques são propositais, parte de um plano de Acquaviva para acabar com a Igreja.

Por milagre, não morremos ali mesmo, no meio dos cacos coloridos do vitral. Impossível não lembrar as fortes palavras que o senhor pároco nos dirigiu na ocasião, impublicáveis neste espaço.

A questão é: como posso dizer não a Acquaviva sem magoá-lo, sem ferir de morte seu sonho de voar no mais pesado que o ar? Por outro lado, como dizer sim, sem morrer depois?

A única pessoa, além de mim, que sempre aceitou voar com ele é Juan Niebla, o músico cego do bandoneón, que toca na estação de trem abandonada. Mas Niebla está com 89 anos.
 
Em janeiro último, Acquaviva terminou de construir O Invencido, utilizando o motor de seu antiquíssimo fusca. Quando entrei no galpão naquela manhã de sábado, ele tomava chimarrão sentado cabisbaixo sobre um pelego, encostado na carroça que também faz as vezes de cama.Vestia o gasto macacão azul-marinho e as botas pretas de cano longo.

A negra cabeleira escorrida e o grosso bigode nem de longe denunciam o jovial homem de 70 anos.

Ao me ver, seu rosto se iluminou e ele abriu um sorriso. Veio lépido na minha direção, me pegou pelo braço e disse que tinha algo para mostrar lá no Ninho do Esqueleto. Com emoção, retirou o enorme lençol que cobria o dirigível.

- Faltam poucos dias pra ficar pronto, só mais uns detalhes. Olha a maravilha. Nunca ninguém construiu algo assim. Um dirigível compacto, pra duas pessoas, com seis pequenas janelas pra admirar tudo lá de cima. Tem um beliche, uma geladeirinha, um minifoguareiro, um armarinho, um mínúsculo banheiro e o painel com os instrumentos de navegação, entre os quais aquele telescópio pra ver as estrelas. Não só chegaremos a Porto Alegre desta vez como vamos até o mar. Prepare-se, partiremos em meados de maio. O dia glorioso se aproxima.

O Pituca não sai mais do meu lado. Onde quer que eu vá o gato vem atrás. Mia de um jeito estranho e insistente, quase não me deixa trabalhar no escritório.

Desconfio que ao invés de uma placa comemorativa, no dia da glória, vamos ganhar um epitáfio: Aqui jazem dois idiotas, gravado na lápide do túmulo que reunirá o que sobrou de nossos corpos, se é que alguma coisa vai restar depois do desastre anunciado.
 
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Texto revisto, publicado em 23 de abril, 2013.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

O sempre lembrado

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
O sempre lembrado saiu de cena sem dizer nada a ninguém. Não reclamou de dor no peito, falta de ar, não houve queixa de espécie alguma. O coração parou no meio da tarde diante da televisão. Estava com o gato no colo.

A empregada é quem notou o que tinha acontecido quando ouviu o barulho dos óculos pesados caindo no chão. Correu até a casa da cabeleireira, na esquina, para chamar a viúva.

O sempre lembrado partiu dessa para melhor na maior discrição.

Depois que o corpo foi sepultado, os membros da família começaram a procurar vestígios, reminiscências, pequenas memórias que falassem do sempre lembrado. Deram-se conta de que ele era um estranho para eles.

Havia alguns sinais, poucos, de sua presença espalhados pela casa. A cadeira do papai era um deles, na sala onde via televisão quase sempre só. Ele assistia aos jornais e geralmente dormia no meio. A cadeira conserva o formato de sua cabeça.

Um outro sinal era o guarda-chuva preto pendurado no hall, que ele chamava de Rocinante. Nunca ninguém entendeu por que ele gostava tanto de sair a caminhar pelas ruas do bairro nos dias de chuva.

A mulher foi vasculhar nos bolsos do marido. No íntimo, ansiava encontrar uma carta, um bilhete, uma anotação qualquer dirigida a ela. Poucas palavras dizendo o quanto a amava e como sentiria sua falta do outro lado. Quem sabe alguma orientação sobre como dispor dos poucos bens da família.

Nada encontrou além de algumas moedas, tíquetes de estacionamento de shopping e pedágio (era ele quem dirigia o carro para a praia duas vezes ao ano). Examinou também as gavetas, pastas, malas. Nada.

Como podia alguém retirar-se do mundo desse jeito, sem deixar uma despedida, um consolo, depois de quarenta anos vivendo junto na mesma casa?

Se ao menos o sempre lembrado tivesse sido mau. Seria um alívio e todos esqueceriam dele no outro dia, tocariam a vida. Mas era homem bom, atencioso, caseiro, embora de pouco falar.

Os três filhos embrenharam-se entre velhas fotografias para ter o pai de volta. Defrontaram-se com a incômoda realidade: o último retrato que tiraram com ele tinha mais de dez anos.

Nos primeiros dias, não sentiram tanto a ausência. Às vezes parecia que se ouviam seus passos lentos pela casa, comentando alguma coisa sem importância, falando praticamente sozinho.

O pai e marido era eterno até então, sempre por perto, não obstante invisível. Doméstico como o sol da manhã no pátio da casa. Embora ninguém percebesse, estava neste mundo.

O sempre lembrado ausentou-se de repente e só então fez-se perceber. Conseguiu com a morte chamar a atenção sobre sua pessoa, ignorada até ali.

Com o tempo, a família foi tentando assimilar aquele vazio. Havia um buraco no coração de cada um.

Ninguém quis ocupar a poltrona de couro da sala. Continuou a ser território cativo do ausente.

O gato, porém, procedeu como se o morto ainda existisse. De tarde, todos os dias, o bichano pula na poltrona e aninha-se no colo do invisível como se o dono ainda dormisse na frente da televisão.

O gato foi o ser mais próximo do sempre lembrado entre todos da casa. Com ele ficaram as melhores recordações.