terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Dois poemas de Heitor Saldanha


 capa de A Hora Evarista



Hoje enquanto tiver dinheiro
                                            beberei
Depois
           entregarei ao garçom
                                  meu relógio de pulso
                                    meus carpins de nylon
meus óculos de tartaruga (que nome bonito)
                         minha caneta tinteiro
e continuarei bebendo
                                  bebendo
                                  sem literatura
                                          sem poema
                                                  sem nada.
Só.
Como se o mundo começasse agora.
Estou nesses conscientes estados de alma
em que não posso me salvar
                                    e nem salvá-la.


& &  &


ANDAMENTO

De que estarei me despedindo hoje?
Há em mim uma clara ressonância de
                                                     despedida.
Mas não devo saber,
                              nem é preciso saber.
Creio que vim
                     pra dizer um dia
                                        na cara do mundo:
hoje estou me despedindo.
E as criaturas boas do meu sangue
                        abririam a boca
que lhes cortasse o ímpeto inexpresso.
Claro que estou me despedindo.
                Hoje sou mais criança do que nunca.

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Heitor Saldanha (Cruz Alta 1910 - Porto Alegre 1986).
Poemas extraídos do livro A Hora Evarista, Instituto Estadual do Livro, Editora Movimento, Porto Alegre, 1974.


Depoimento do escritor José Louzeiro


Eis-nos frente a frente a um senhor poeta.
Um dos mais importantes que temos: Heitor Saldanha. Extremamente meticuloso e profundamente retraído, vemos Heitor Saldanha circunscrito na área daqueles poucos que desconfiam do que fazem e, por maiores que sejam os elogios ouvidos, preferem o aprofundamento no trabalho.
                        
                                    José Louzeiro, Jornal do Escritor, Rio de Janeiro, 1969.

Entrevista com Heitor Saldanha

Jorge Adelar Finatto


Heitor Saldanha

 
exploro o pulso da forma
para poder deformá-la
e passo
sou minha ultrapassagem
(Heitor Saldanha)


Conheci o poeta Heitor Saldanha nos idos e sobrevividos de 1980.

A descoberta de sua poesia foi uma forte revelação. O elevado nível de criação poética e o apurado trato da linguagem colocam-no entre os principais autores do gênero no Rio Grande do Sul e no Brasil. Por essas coisas que a gente não consegue entender, permanece desconhecido.

Nascido na Serra do Caxambu, município de Cruz Alta, em 28 de abril de 1910, ao longo da vida Heitor fez várias coisas. Tocou viola, cantou versos de improviso, foi funcionário da Viação Férrea e servidor público, entre outras atividades. Acima de tudo, foi um homem comprometido com o humanismo e a poesia, sempre atento ao que se passava com os semelhantes.

A indiferença jamais fez parte do seu modo de ser.

A infância passou-a na região serrana de Cruz Alta, entre bichos e os rios Fiúza e Caxambu. A mãe do poeta, Dona Amélia Gonçalves Dias Saldanha de Vasconcelos, era descendente do poeta Gonçalves Dias. O pai, Otávio Saldanha de Vasconcelos, era repentista, tocava violão, cantava, tinha temperamento expansivo e escrevia bilhetes que encantavam o filho.

Em meados de 1946, junto com Raymundo Faoro, Sílvio Duncan, Luís Carlos Maciel, Vicente Moliterno, Pedro Geraldo Escosteguy, Fernando Castro, Joaquim Azevedo e outros, fundou o Grupo Quixote, que seria reconhecido em todo o país por sua atividade cultural. Em 1947 os integrantes do grupo lançaram a revista Quixote, cujo lema era uma frase do filósofo espanhol Miguel de Unamuno: “Vamos fazer uma barbaridade”. O Grupo desenvolveu intensa agenda literária e artística até o ano de 1961, quando deixou de existir.

No início da década de 1950, Heitor decidiu ir trabalhar nas minas de carvão da cidade de São Jerônimo, perto de Porto Alegre. Durante dois anos e meio desceu ao fundo do poço e viu como era a vida dos mineiros, com o sentimento e o olhar de um mineiro. Ali encontrou o tema do livro “As Galerias Escuras” (1969), obra considerada um marco da poesia social brasileira. Os mineiros souberam do livro e deram de presente ao poeta uma lanterna de mina, a única possibilidade de luz nas escuras galerias.

Em 1958 foi viver no Rio de Janeiro, onde permaneceu por doze anos, retornando depois a Porto Alegre. Aqui viveu até a morte em 1986. No Rio fez relações com Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, de quem foi muito amigo, Aníbal Machado, Ferreira Gullar, os irmãos Campos, João Antônio, Moacyr Félix, entre outros.

A obra de Heitor Saldanha possui voz luminosa, e fala por muitos.

Quem lê seus poemas sabe que está diante de um grande poeta, dono de um lirismo e de uma visão de mundo que penetram de forma vertical na experiência humana. Ao mesmo tempo, seus versos descolam-se da realidade e viajam até a mais alta transcendência.