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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Um verão cordial

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


As hortênsias estão floridas em volta da casa. Isso, em meados de fevereiro, alto verão, é raro. O sol violento de dezembro em diante costuma castigar as hortênsias e outras flores, e é comum restarem secas ao final de janeiro. Este ano não foi assim. Plantas e flores estão bem vivas.

Um verão cordial, portanto. A brandura das temperaturas faz pressentir os primeiros acenos do outono  que começa em 20 de março. Tem chovido cordialmente, também, afastando-se a hipótese de seca. Plantações prometem, reservatórios não se ressentem.

De modo que, ao menos nisso, estamos bem. Não vou falar da lentidão brutal da vacinação contra a covid-19, da impiedosa disseminação do vírus nas últimas semanas, do triste aumento das mortes, da insubordinação de parte da população contra normas básicas de prevenção, do sofrível desempenho das autoridades ao lidar com a crise.

Não vou falar do modo patético como alguns indivíduos, que deveriam dar exemplo, lidam com esta realidade, promovendo aglomerações, não usando máscara, subestimando a gravidade do que está acontecendo, ao invés de estimularem os cuidados necessários. 

Eu nunca vi nada parecido com o que está acontecendo no Brasil. A situação geral piorou muito. Não se veem horizontes por perto. E não apenas devido à pandemia. Parece que os nossos piores defeitos enquanto sociedade resolveram aflorar ao mesmo tempo.

Como estava dizendo, as flores e plantas estão vivas em volta da casa, e resistem.

domingo, 5 de julho de 2020

O jeitinho brasileiro diante da tragédia

Jorge Finatto

photo: jfinatto. rosa amarela: esperança


A estimativa de que o Brasil poderá chegar a 100 mil mortos pela covid-19 nos próximos dois meses está se confirmando. O número diário de óbitos passa de mil e, seguindo assim, ultrapassará aquela projeção feita por especialistas. Uma catástrofe.

O que se percebe é uma quase indiferença em relação ao assunto. Quando a pandemia se instalou na Europa, houve comoção. Agora que está aqui, em números muito maiores, parece que não nos diz respeito. 

A falta de coesão no enfrentamento da doença é alarmante. O pouco caso de parte da população às orientações sanitárias é inacreditável. A maioria sabe o que precisa ser feito para impedir a propagação da doença. Mas muitos reagem como se se tratasse de uma gripezinha apenas, como a relativizou há algum tempo o Presidente da República. Aliás, um capítulo especial caberá a este senhor, quando for contada a história da pandemia no Brasil.

O que falta ao nosso país é amor social. Não nutrimos apreço pela vida em sociedade, a lei que vale é a famosa "quem pode mais chora menos". Não temos sentimento de coletividade. Somos capazes de atos solidários no varejo, aqui e ali, mas não alimentamos a empatia como um valor necessário e indispensável.

Claro que existem pessoas solidárias e envolvidas com o bem comum. Mas a média dos que praticam tais virtudes é insuficiente. A indiferença em relação às muitas tragédias que nos atingem pode ser observada quando olhamos para o número anual de assassinatos, para  as favelas, presídios, para a falta de saúde, educação, saneamento, moradia, para os elevados níveis de corrupção, devastação da natureza, etc.

Não formamos propriamente uma nação, mas um amontoado de gente sem direção, os "espertos" puxando brasa para o seu assado, achando que isso é o certo. O resultado é o que se vê. 

Somos uma sociedade autofágica, que não se comove com a dor do próximo. Não fomos educados para desenvolver ideia de pertencimento que reforce nossos vínculos com a comunidade na qual estamos inseridos e da qual bem ou mal dependemos. Ao contrário, o mantra desse modus vivendi é: cuide de si, leve vantagem, suba na vida, não olhe para os lados.

Uma sociedade com esse nível de desunião é incapaz de acusar o golpe ante as mais de 100 mil mortes anunciadas (hoje esse número chegou a 64.365*, sendo o primeiro óbito em março passado).

É um triste espetáculo para o mundo. Um atestado de frieza moral. Um péssimo legado para nossos filhos e netos.

_______
O Globo:
https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus/brasil-registra-64365-mortes-por-covid-19-informa-consorcio-de-veiculos-da-imprensa-em-boletim-das-20h-24515993

sábado, 13 de junho de 2020

São estranhos esses dias

Jorge Finatto

photo: jfinatto. Canela


São estranhos esses dias 
de portas fechadas 
janelas pensativas

A peste corre feroz 
à solta no burgo. 
Um cenário da Idade Média

Os dias dentro de casa
trancados pra fugir do bicho ruim
passam à velocidade da luz
e são ao mesmo tempo 
longos e intermináveis

Lá pelas tantas 
tudo parece um dia só 
quando se vê 
foi-se uma semana, um mês, três meses

Os sabiás andam calados
as aves de mau agouro 
ocupam o palco 

Eu ando mesmo 
com uma bruta saudade 
de um pouco de leveza  
em meio à barbárie desses dias  
 __________

Trechos de Saudade de Vera Cruz, 17 de maio, 2020.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Rodolfo Walsh, 43 anos desaparecido

Jorge Finatto

Rodolfo Walsh. foto de arquivo


Hoje, no trem, um homem disse: "Sofro muito. Queria ir pra cama dormir e só acordar daqui a um ano". Falava por ele, mas também por mim.
                                          Rodolfo Walsh

Detesto ditaduras de esquerda e de direita. Na minha modesta opinião, de quem passou a juventude na ditadura civil-militar do Brasil, entre 1964 e 1985, e que conhece o lado obscuro de ditaduras como as da Argentina e Cuba, não existe a figura do bom ditador. A tragédia é inevitável em qualquer caso. Ditaduras convivem com violação de direitos humanos, cadáveres, humilhações, perseguições, instauram a paranoia geral, suprimem a vida, a alegria, a criatividade e a liberdade em nome de "um futuro melhor". 

Nunca acreditei na violência como meio de resolução de conflitos, embora reconheça que, em casos extremos como o do nazismo, não há outra alternativa senão o recurso à guerra aberta para evitar a implantação do terror planetário. Barack Obama, Prêmio Nobel da Paz em 2009, tem razão a este respeito. A humanidade, contudo, ao que parece, superou aquela catástrofe (que jamais pode ser esquecida), podendo encaminhar a solução pacífica das crises.

O nosso país passa por um momento terrível do ponto de vista sanitário, indo além dos 30 mil mortos pela covid-19, e político mercê de uma crise que afronta o bom senso e a saúde mental dos cidadãos. Como a imensa maioria dos brasileiros, deploro a ideia de que tenhamos de viver uma outra ditadura.

Acredito que só o diálogo das pessoas de bem, isto é, que creem que somente o estado de direito democrático pode nos levar a uma vida saudável em sociedade, poderá nos tirar do impasse institucional. 

Independente de partidos políticos, de crenças religiosas, de ideologias, de sectarismos de toda espécie, penso que é possível e urgente haver reunião em torno de um ideal de respeito à democracia e não-violência num momento como este.

Com a palavra o Congresso Nacional, o Judiciário, o Ministério Público, as demais autoridades constituídas, organizações civis e cidadãos que se opõem à volta do obscurantismo.

O jogo democrático, por mais frustrante, sofrido e asqueroso que, às vezes, possa parecer, é ainda melhor do que jogo nenhum.

Reproduzo o texto abaixo, publicado neste blog, em 10 de junho de 2017, na esperança de que não voltemos à escuridão.

Minha vocação despertou cedo: aos oito anos decidi ser aviador. Por uma dessas confusões, quem a realizou foi meu irmão. Acho que a partir de então fiquei sem vocação e tive muitos ofícios. O mais espetacular: limpador de janelas; o mais humilhante: lavador de pratos; o mais burguês: comerciante de antiguidades; o mais secreto: criptógrafo em Cuba.¹
Rodolfo Walsh

Eu tinha ouvido falar do escritor e jornalista argentino RODOLFO WALSH (1927 - 1977), mas nunca tinha lido nada dele. Nenhuma informação tinha de sua vida. Caminhando pela Avenida San Martín, na tarde gelada de Ushuaia, as montanhas nevadas da Cordilheira dos Andes debruçadas sobre a cidade, me vi diante de um retrato do autor pintado na parede da Rádio Nacional. A legenda diz que desapareceu em 25 de março de 1977. Isto é, um ano e um dia após o início da ditadura militar na Argentina (1976 - 1983).

Na livraria Boutique del Libro comprei alguns livros dele. Tomei conhecimento de que vivia na clandestinidade quando "foi desaparecido" e fazia parte do grupo Montoneros, de luta armada, atuando na área de comunicação. No ano anterior havia perdido a filha María Victoria, também integrante do Montoneros, em confronto com forças militares. Ela escolheu suicidar-se a entregar-se com vida aos militares.

Walsh (amigo de Gabriel García Márquez, que o admirava como escritor, e um dos criadores da agência de notícias cubana Prensa Latina) faz parte da terrível relação de desaparecidos durante a ditadura. Grupos de direitos humanos estimam em 30 mil pessoas. No entanto, dados levantados nos últimos anos apontam cerca de 9 mil vítimas, entre mortos e desaparecidos. No Brasil, este número é de 434 pessoas, segundo informe da Comissão da Verdade de 2014.²

A diferença, contudo, é que na Argentina alguns dos responsáveis pela ditadura foram julgados e condenados à pena de prisão perpétua, como o general Jorge Rafael Videla, que morreu preso em 2013.  Um, dez, cem, vinte mil desaparecidos, é tudo uma tragédia. Não se trata apenas de um número frio, mas de pessoas.

photo: jfinatto, Ushuaia, maio 2017.

No dia de seu assassinato, presumivelmente ocorrido em 25/3/77, por membros da repressão, andava na rua, em Buenos Aires, após encaminhar pelo correio cópias da Carta aberta de um escritor à junta militar,³ na qual fez vigorosa denúncia da ilegitimidade e truculência do regime militar, apontando violação de direitos humanos, métodos hediondos de tortura e extermínio, número de vítimas, além de graves prejuízos à sociedade.

Dirigiu o documento a órgãos da imprensa argentina e a correspondentes estrangeiros. A carta, datada de 24/3/1977, dia em que a ditadura completava um ano, foi seu último texto. Difundida no exterior, não logrou o mesmo nos órgãos de imprensa de seu país submetidos à censura e controle.

últimos dias do escritor (clicar). photo. jfinatto

Do que tenho lido de Rodolfo Walsh, chama atenção a sua busca constante da verdade, a pesquisa das informações e o compromisso que se impôs de dar testemunho de seu tempo. É considerado o criador do gênero literário não-ficcional que trabalha com fatos reais; jornalismo com técnicas literárias. Literatura e realidade. Impressiona, ao lado da coragem, a qualidade de seus textos, sejam jornalísticos ou literários, ou ambos integrados.

Basta ler Operação Massacre,4 que conta uma história real, para ver o alto nível dessa prosa. No apêndice deste livro encontra-se a Carta aberta acima referida.

O contista, assim como o autor de não-ficção e o jornalista, é brilhante. A elevada qualidade de suas linhas engrandece a literatura da Argentina, colocando-o ao lado de nomes como Roberto Arlt, Cortázar, Borges, Sábato.

Biblioteca Nacional Mariano Moreno. photo: jfinatto

Neste ano 40 do seu brutal desaparecimento, a Biblioteca Nacional da Argentina, em Buenos Aires, está promovendo a exposição literária Los oficios de la palabra. É uma boa oportunidade para conhecer um pouco de sua história e de sua obra. O texto de apresentação da mostra (clicar sobre ele) é do escritor Alberto Manguel, atual diretor da biblioteca.

Hoje no trem um homem disse: "Sofro muito. Queria ir pra cama dormir e só acordar daqui a um ano". Falava por ele, mas também por mim.

Este início de contato com Rodolfo Walsh tem sido enriquecedor do ponto de vista humano e literário. E nos leva à perplexidade de constatar que, tanto tempo depois, não se tem nenhuma notícia sobre o paradeiro de seu corpo e sobre as circunstâncias em que seus algozes (quem foram, onde estão?) lhe deram sumiço. O mesmo trágico destino teve o poeta García Lorca, em Granada, cujo corpo, fuzilado em 1936, no início da Guerra Civil Espanhola, até hoje não foi encontrado. Um horror.

ambiente da exposição. photo: jfinatto


apresentação da mostra Walsh por Alberto Manguel. photo: jfinatto

__________ 

¹ Ese Hombre y otros papeles personales. Ediciones de La Flor. 3ª ed, pág. 13. Buenos Aires, 2012. Tradução livre do fragmento: Jorge Finatto.
² Argentina ainda discute quantas foram as vítimas (Folha de São Paulo):
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/02/1735938-argentina-ainda-discute-quantas-foram-as-vitimas-da-ultima-ditadura-militar.shtml
³ Carta aberta de um escritor à junta militar:
http://www.jus.gob.ar/media/2940367/carta_rw_espa_ol_web.pdf
4 Operação Massacre. Rodolfo Walsh. Tradução de Hugo Mader. Companhia das Letras. São Paulo, 2010.
Ese Hombre y otros papeles personales. Ediciones de La Flor. 3ª ed, pág. 266. Buenos Aires, 2012. Tradução livre do fragmento: Jorge Finatto. Palavras do escritor a propósito da morte da filha Vicki (María Victoria).


domingo, 17 de maio de 2020

Saudade de Vera Cruz

Jorge Finatto

detalhe do Planisfério de Cantino, nordeste brasileiro.
 
 
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Sei que nada será como está

amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de sol
 
                               (Nada será como antes, Milton Nascimento e Ronaldo Bastos)
 
Outono significa transformação, as mudanças tão necessárias e urgentes para a vida seguir seu curso. É o recolher das seivas, reunião de forças, introspecção, preparo e passagem para um outro tempo.

Não quero desfazer das outras estações, cada qual com seu gosto e seu agosto. O verão, por exemplo: tem muita gente que gosta. A primavera é amada por todos. Mas é no outono que eu renasço.

O outono não é um senhor decrépito, longe disso. É uma musa sensual, discreta e misteriosa, que traz o véu iridescente com mil tons, além de delicadas fragrâncias.

As manhãs da estação das folhas cadentes prometem beleza e contemplação. As nuvens são cor de açúcar queimado ao entardecer.
 
Um texto de fuga, alguém dirá, talvez com razão. A palavra há de servir, também, para a evasão do real, sempre tão necessária a fim de evitar a loucura por excesso da realidade.
 
Os dias dentro de casa, trancados para fugir do bicho ruim, pestilento, passam à velocidade da luz, e são, ao mesmo tempo, longos e intermináveis. Lá pelas tantas tudo parece um dia só. E quando se vê, foi-se uma semana, um mês.
 
São estranhos esses dias de portas fechadas e janelas pensativas. A peste corre feroz e à solta no burgo. Um cenário da Idade Média.  

A truculência verbal e a ignorância ocupam o centro das atenções hoje no Brasil. O cenário primitivo, agressivo e intolerante é tal que não podemos sequer dizer que estamos vivendo na Idade Média.

Estamos sendo catapultados direto para a escuridão das cavernas. Um país desorientado, com o povo exposto à pandemia covid-19, ao enorme desemprego e à incessante crise política gestada no interior do poder. 

Um momento extremamente duro, um futuro nebuloso. E dizer que com um mínimo de bom senso, por parte de quem tem o dever do bom senso, tudo poderia ser melhor.

Os sabiás andam calados. As aves de mau agouro ocupam o palco.
 
Saudade da Terra de Vera Cruz com sua gente lutadora, amável e criativa, saudade de suas cidades movimentadas, seus verdes mares e belas paisagens. Saudade do cotidiano civil com sua magia e seu feijão com arroz. Saudade dos pássaros e das nuvens.
 
Eu ando mesmo com uma bruta saudade de um pouco de leveza, lucidez e esperança, em meio à barbárie destes dias.  
 

segunda-feira, 30 de março de 2020

Desviando do vírus

Jorge Finatto
 


O desejo de visitar Arles e Saint-Remy, na Provence, nasceu em 2014. Em setembro daquele ano o Museu VAN GOGH, de Amsterdam, publicou em seu facebook o meu poema "Composição", do livro O Fazedor de Auroras, editado pelo Instituto Estadual do Livro em 1990. Fiquei muito feliz e admirado. E tinha motivo: colocaram como "ilustração" do texto a pintura "Jardin de Saint-Paul de Mausole", de Van Gogh.
 
O poema é uma homenagem a Van Gogh e uma declaração de amor à pintura. Pois bem, no início desse mês, descansando uns dias em Lisboa, depois de percorrer a Suíça, Alemanha e Áustria, tinha viagem programada a Marselha. Do aeroporto iríamos - Izabel e eu - de trem a Arles, onde o pintor realizou a culminância de sua obra. Aí incluídas as pinturas feitas no Monastério-sanatório de Saint-Paul de Mausole, em Saint-Remy, onde viveu e se tratou entre maio de 1889 e maio de 1890.
 
Ocorre que o famoso coronavírus Covid-19 tinha chegado lá antes de nós. Um dos aeroportos mais movimentados da França, resolvemos não correr o risco de ser contaminados. Desviamos a rota e acabamos nos Açores (outro sonho antigo).
 
Desistimos? Claro que não! Iremos atrás de Van Gogh depois que a tempestade passar. E vamos sentar nesse jardim onde, um dia, ele esteve com seu cavalete e criou este quadro com a paleta encantada.