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segunda-feira, 26 de maio de 2014

No café do tempo com Ruy Belo

Jorge Adelar Finatto
 

Ruy Belo
Estou aqui no café, esta velha casa serrana de madeira, com suas mesas cobertas com toalhas coloridas de tecido xadrez. Hoje é quarta-feira, 18h, 10 de outubro de 2012.

O texto vai datado, um tempo de clepsidra, para que os arqueólogos literários, daqui a 50, 100 anos, possam se situar, se por acaso chegarem com seus instrumentos de escavação nesta página carcomida pelo tempo. Peço desculpas, antecipadamente, porque não estarei aqui para recebê-los.

Estou com os sapatos molhados de andar na chuva. Molhados de sonho, de distância. Olho agora através da janela do café, o frio molhado, espelhado, que faz na rua. Um pouco de neblina, vento.
 
Que raio de primavera, diz alguém. Eu não digo nada, só quero curtir o clima, acho isso uma beleza, dia pluvioso, gris. Porque além do frio, as flores dos arbustos fluem em azul e branco, mais o perfume, pena não se possa, ainda, reproduzir aroma na página luminosa.

As primaveras - assim chamam-se esses arbustos - florescem nos pátios, terrenos baldios, calçadas da pequena cidade.
 
O rastro de chuva, gotas prateadas, sobre o capote azul que penduro na cadeira ao lado, não quero arriscar um resfriado, uma gripe. Um espirro sobre o texto seria uma indelicadeza com o raro leitor.

Hoje me sinto trinta anos atrás (a idade, nessa altura, pouco importa, tantas vezes já morri e tantas outras ressuscitei), o que importa é que cheguei até esse dia de chuva luminosa, meio sem eira nem beira, talvez, mas profundamente agradecido por poder andar na chuva me molhando e por estar agora aqui no café, num dia assim de fria, úmida, cálida primavera.

Um dia assim enfaruscado, quando tudo parece perdido para alguns, mas aí acontece de poder sentar nesta mesa, numa velha casa serrana, numa quarta-feira de tarde.
 
Escrevo essas coisas na folha branca do guardanapo, o café fumega na xícara, tem cheiro e um certo gosto de anis-estrelado.

No bolso do capote (azul-marinho), encontro um papel dobrado, o que será?

Uma folha de calendário marcando o dia 7 de abril de 2003, uma segunda-feira. Nela está escrito um texto do poeta português Ruy Belo (1933 - 1978), o poema se chama O valor do Vento (do livro Todos os Poemas). Ouçamos o que diz o bardo:
 
Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto
 
É belo o poema, belo o poeta Ruy Belo na sua busca do inefável, da emoção além das palavras. Tão belo como este dia de inverno na primavera.
 
O calendário, lembrei, comprei numa livraria em Lisboa, dele tirei esta página e guardei no bolso do capote para que o poema esteja sempre por perto, para que a poesia não me abandone, para que possa conversar com o Belo poeta enquanto caminho por aí em dias de chuva e vento.

Trazer poemas no coração é uma maneira de tentar parar o tempo, ainda que por um ínfimo instante.
 
Agora escureceu, o tempo escorreu na clepsidra. A garoa miúda escorre no vidro do café serrano. Gotas de luz deslizam nos óculos.
 
____________________
Foto: Ruy Belo. O crédito da imagem será dado tão logo conhecido. Fonte: http://norastoderuybelo.blogspot.com.br/
 Leia sobre Ruy Belo:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/03/ruy-belo.html
Texto revisto, publicado antes em 12/10/2012. 

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Livros perdidos e achados

Jorge Adelar Finatto
 
photo: Eugénio de Castro


Fiz uma relação de livros de escritores portugueses antes de sair do Brasil. São obras que não encontro na Terra de Vera Cruz.  Achei quase todos, com duas exceções. Lisboa, livro de bordo (crônicas, 1997), de José Cardoso Pires (1925-1998), e Constança (poesia, 1900), de Eugénio de Castro (1869-1944).
 
Percorri cerca de 20 livrarias e alfarrabistas, entre o Porto e Lisboa, e nada. Na terça passada encerrei a busca visitando velhos alfarrabistas do Bairro Alto. A resposta foi a mesma: não existem mais.
 
Esses livros não podem faltar na livrarias.

photo: José Cardoso Pires

A Lisboa de Cardoso Pires é a cidade vista a partir da alma do grande escritor, capaz de traçar notáveis sínteses em poucas linhas com seu olhar penetrante e sensível.
 
Constança foi uma indicação de Don Miguel de Unamuno quando li, ainda em Salamanca, o seu Por tierras de Portugal y de España.* Diz o genial e valoroso filósofo espanhol:
 
Portugal parece a pátria dos amores tristes e dos grandes naufrágios.
 
(...) nenhuma obra (de Eugénio de Castro), a meu entender, e sobretudo a meu sentir, sobrepuja Constança, publicada em 1900. Constança é sua obra mais profundamente portuguesa, aquela em que sua alma conseguiu vibrar mais em uníssono com a alma de seu povo. É como se sua mão ao escrevê-la se houvesse convertido na arpa eólica de seu povo, vibrando ao sopro da alma deste. A lírica de Constança é a mais alta e mais nobre lírica, aquela que, sendo profundamente coletiva, é, por isso mesmo, profundamente pessoal.
 
Constança foi a mulher do infante D. Pedro, aquele da infeliz Inês de Castro, cujos trágicos amores imortalizou Camões.

Vindas de Don Miguel, imaginem o significado destas palavras.

Aí estão as duas sentidas faltas na mala dos portugueses que levarei comigo.

Manuel António Pina. Wikipédia

Nunca entendi por que estamos tão distantes da literatura e da cultura dos países de língua portuguesa. Vivemos no Brasil uma espécie de isolamento dentro da lusofonia.

Autores como José Saramago, Mia Couto e, depois, António Lobo Antunes começaram a desembarcar em terras brasileiras nos últimos anos. É muito pouco diante da pluralidade de autores lusófonos.

Em Portugal, percebo que há também um distanciamento do Brasil, pouco se conhece.

Estou levando a mala pesada de livros, mas o esforço compensa. Entre outros, levo comigo Lobo Antunes, Alexandre O'Neill, Eugénio de Andrade, Agostinho da Silva, Herberto Hélder, Maria Gabriela Llansol, J. Cardoso Pires, Fernando Pessoa, J. Saramago, Maria Velho da Costa, Ruy Belo, Vitorino Nemésio, Manuel António Pina, Eduardo Salavisa.

Na Suíça consegui encontrar as obras de Rilke que perseguia. Em Madri, completei a biblioteca básica de Ortega y Gasset, graças à generosidade da Fundação Ortega y Gasset que me repassou, sem cobrar por isso, volumes fundamentais do filósofo.

Dos espanhóis tratarei em texto próprio. Os discos também merecem um post à parte.

De que vale, afinal, uma viagem, se não for para procurar aquilo que nos faz falta em nossa paisagem espiritual?  
_____________

*Por tierras de Portugal y de España, Miguel de Unamuno, Biblioteca Unamuno, Alianza Editorial, Madrid, 2011. Tradução do trecho acima: J. Finatto.
 

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

No café do tempo com Ruy Belo

Jorge Adelar Finatto

 

Ruy Belo
Estou aqui no café, esta velha casa serrana de madeira, com suas mesas cobertas com toalhas coloridas de tecido xadrez. Hoje é quarta-feira, 18h, 10 de outubro de 2012.

O texto vai datado, um tempo de clepsidra, para que os arqueólogos literários, daqui a 50, 100 anos, possam se situar, se por acaso chegarem com seus instrumentos de escavação nesta página carcomida pelo tempo. Peço desculpas, antecipadamente, porque não estarei aqui para recebê-los.

Estou com os sapatos molhados de andar na chuva. Molhados de sonho, de distância. Olho agora através da janela do café, o frio molhado, espelhado, que faz na rua. Um pouco de neblina, vento.
 
Que raio de primavera, diz alguém. Eu não digo nada, só quero curtir o clima, acho isso uma beleza, dia pluvioso, gris. Porque além do frio, as flores dos arbustos fluem em azul e branco, mais o perfume, pena não se possa, ainda, reproduzir aroma na página luminosa.

As primaveras - assim chamam-se esses arbustos - florescem nos pátios, terrenos baldios, calçadas da pequena cidade.
 
O rastro de chuva, gotas prateadas, sobre o capote azul que penduro na cadeira ao lado, não quero arriscar um resfriado, uma gripe. Um espirro sobre o texto seria uma indelicadeza com o raro leitor.

Hoje me sinto trinta anos atrás (a idade, nessa altura, pouco importa, tantas vezes já morri e tantas outras ressuscitei), o que importa é que cheguei até esse dia de chuva luminosa, meio sem eira nem beira, talvez,  mas profundamente agradecido por poder andar na chuva e por estar agora aqui no café, num dia assim de fria, úmida, cálida primavera.

Um dia assim enfaruscado, quando tudo parece perdido para alguns, mas aí acontece de poder sentar nesta mesa, numa velha casa serrana, numa quarta-feira de tarde.
 
Escrevo essas coisas na folha branca do guardanapo, o café fumega na xícara, tem cheiro e um certo gosto de anis-estrelado.
 
No bolso do capote (azul-marinho), encontro um papel dobrado, o que será?

Uma folha de calendário marcando o dia 7 de abril de 2003, uma segunda-feira. Nela está escrito um texto do poeta português Ruy Belo (1933 - 1978), o poema se chama O valor do Vento (do livro Todos os Poemas). Ouçamos o que diz o bardo:
 
Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto 
 
É belo o poema, belo o poeta Ruy Belo na sua busca do inefável, da emoção além das palavras. Tão belo como este dia de inverno na primavera. O calendário, lembro, comprei numa livraria em Lisboa, dele tirei esta página e guardei no bolso do capote para que o poema esteja sempre por perto, para que a poesia não me abandone, para que possa conversar com o poeta Belo enquanto caminho por aí em dias de chuva e vento.

Trazer poemas no coração é uma maneira de tentar parar o tempo, ainda que por um ínfimo instante. 
 
Agora escureceu, o tempo escorreu na clepsidra. A garoa miúda escorre no vidro do café. Gotas de luz deslizam nos óculos.
 
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  Foto: Ruy Belo. O crédito da imagem será dado tão logo conhecido. Fonte:  http://norastoderuybelo.blogspot.com.br/