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segunda-feira, 25 de maio de 2020

Meu caro George Orwell

Jorge Finatto

Foto do crachá de jornalista
de George Orwell, 1933. Wikipedia

Enquanto não começam a queimar livros nas praças
enquanto não sequestram o vizinho para averiguações
(e não o devolvem mais)
enquanto não invadem nossa casa em busca
de textos e canções proibidos
enquanto não nos levam à força para esclarecimentos
perante a polícia do pensamento
enquanto não suspendem o habeas corpus
enquanto não põem a tropa na rua para bater
em baderneiros que criticam o governo
enquanto não criam o índex dos subversivos
inimigos da pátria
enquanto não instauram a tortura
como instrumento de interrogatório
enquanto não fecham jornais e televisões
enquanto não espalham agentes infiltrados
em escolas e universidades
para identificar conspiradores
enquanto o parlamento permanece impassível
diante do monstro que se levanta,
lembremos que tudo isso que parece coisa do passado
pode estar mais vivo do que se imagina.
Um mundo sombrio, obcecado pela sede de poder total
que não se comove diante do sofrimento dos outros
nem diante dos cadáveres que se amontoam
em razão da peste e da indiferença
este triste mundo de perseguição e sadismo
que ergue sua imensa escuridão
e já não esconde a ânsia
de aprisionar o sol
e enterrar o futuro
________
Ao grande escritor britânico, autor do extraordinário e atual 1984.

domingo, 19 de outubro de 2014

O fim da vida privada e da intimidade

Jorge Adelar Finatto

capa de 1984, livro de George Orwell*
 
Faz algum tempo ouvi alguém proclamar, num programa de televisão, que a vida privada e a intimidade acabaram. Fiquei espantado, até o ponto em que ainda é possível espantar-se com alguma coisa no Brasil. A infeliz declaração ocorreu numa conversa em torno da publicação de biografias.
 
Entre editores e biógrafos, existe a ideia de que deve haver a liberação geral das biografias, independentemente do consentimento do biografado, se vivo, ou de seus herdeiros, se morto. Invocam a favor desta tese a liberdade de expressão e o interesse público (Constituição Federal, art. 5º, IX). Do lado oposto, sustenta-se que devem prevalecer as regras atuais do Código Civil (arts. 20 e 21), que, na prática, condicionam a publicação de biografias à autorização, trazendo, ainda, em prol deste argumento, o preceito constitucional que protege a vida privada, a imagem, a intimidade e a honra (CF, art. 5º, X).
 
Vida privada e intimidade fazem parte dos direitos da personalidade e sua supressão - ou relativização diante de interesses políticos ou comerciais - faz lembrar tristes episódios da história em que os direitos individuais foram fustigados. Os estados totalitários sempre invadiram a vida dos indivíduos, buscando coarctar-lhes a consciência e o querer, para manter-se no poder e anular oposição.
 
A publicação de biografia, especialmente de pessoa viva, sem o seu consentimento, configura, a meu ver, violência moral. O fato de certos países permitirem essa prática, como os Estados Unidos, não significa que seja uma norma razoável, pois afronta os direitos humanos.

A discussão evidencia o quanto determinado setor da indústria cultural, no Brasil, está empenhado na ideia de que não pode haver limitação ao seu negócio e ao lucro, não importando que para isso se violem direitos duramente conquistados.
 
No embate entre direitos de mesma hierarquia, como no caso, há que sopesar os valores humanos, individuais e coletivos, envolvidos, e avaliar as consequências sociais da decisão. É necessário, em primeiro lugar, proteger a dignidade da pessoa humana.
 
Confunde-se o conceito de interesse público com o de curiosidade pública, coisas absolutamente diversas. A mera curiosidade, nessa visão, justifica a apropriação de fatos da vida privada de terceiros e sua publicização. Isso pode até ser rentável economicamente, mas, repito, é uma violência contra o indivíduo.
 
A obra, o trabalho profissional, são públicos, mas a intimidade e a privacidade da pessoa não são, a menos que ela assim queira.

Uma coisa é noticiar jornalisticamente determinados fatos que decorrem do exercício da profissão ou de outros acontecimentos. Outra bem diferente é esmiuçar a vida de alguém desde o nascimento, fazendo de sua existência matéria de comércio sem sua permissão.
 
O indivíduo tem direito de recusar-se à divulgação de eventos de sua existência privada pela singela razão de que a sua vida é o seu maior patrimônio e ninguém pode nela entrar sem pedir - e obter -licença.  Entendo, por outro lado, que a lei pode ser modificada em parte, a fim de fixar-se um prazo para o exercício do direito por parte de herdeiros.

O que mais chama a atenção é ver que o contraditório, neste assunto, praticamente não existe na imprensa. Em suma, a ideia hoje predominante na mídia é de que você, eu, qualquer pessoa, pode ter a história de sua vida escancarada e vendida por qualquer um, a qualquer momento, sem que o principal interessado seja consultado a respeito. Será justo?

Aí eu me lembro do livro 1984, de George Orwell, onde o Estado acaba com a noção do indivíduo como ser dotado de dignidade, liberdade e vontade, e elimina qualquer possibilidade de existência espiritual fora das regras do Grande Irmão. A vida privada e o direito de  pensar e agir livremente desaparecem, criando coisas como a polícia do pensamento, a novalíngua, o duplipensar e a manipulação da história. O Grande Irmão não perdoa os transgressores do pensamento único e os persegue implacavelmente até a destruição.

Talvez o futuro nos reserve algo parecido, a continuar a mentalidade de patrolar direitos fundamentais, aqui e em outros países, em nome da segurança, do controle absoluto, do espetáculo, do dinheiro e de obtusos interesses de governos.

O que espero é que o STF, onde tramita uma ação de inconstitucionalidade contra os arts. 20 e 21 do C. Civil, decida de modo a preservar esses direitos fundamentais que não são meros adereços jurídicos, e que, por isso, não podem ficar sujeitos a pressões econômicas ou políticas de ocasião.  E que o Congreso Nacional, que analisa projeto para acabar com a necessidade de autorização, também leve isso em consideração.

Não se pode, em nome de interesses menores, obrigar alguém a suportar que vasculhem e vendam sua história como batatas na feira, sem seu consentimento. Isto significa invasão e apropriação indevida do patrimômio mais importante de qualquer ser humano: a sua história de vida.
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Sobre o assunto leia também "Biografias versus biografados":
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/10/biografias-versus-biografados.html

*imagem de capa, fonte:
http://www.theenglishgroup.co.uk/profile/

domingo, 22 de dezembro de 2013

Arte do grafite e a difícil paisagem

Jorge Adelar Finatto

imagem do filme Cidade Cinza
 
A arte do grafite é uma forma de expressão que ganhou força nas últimas décadas. Continua sendo motivo de discussões e incompreensões. Muitos aceitam, outros a rechaçam, por entender que suja a cidade e polui visualmente.
 
A primeira pergunta que pode ser feita, no meu entender, não é propriamente quem faz e por que faz grafite, mas por que se permite tanta parede e tanto muro, de forma desorganizada e desumana, em nossas cidades.

O grafite é a ocupação gráfica e lúdica do espaço público tomado pelo cinza medonho dos edifícios e do concreto, pela dureza dos muros e construções, pela frieza das intermináveis avenidas, pelo perigo, pelo ruído e fumaça dos veículos, pelos acachapantes painéis de publicidade.

A grande cidade é um lugar inóspito pra se viver. Vive-se do jeito que dá, porque, como as baratas, somos indestrutíveis.
 
Os imensos paredões verticais, túneis e viadutos sufocam e remetem a um sentimento de prisão no enorme labirinto. Câmeras espalhadas por todo lugar vigiam os movimentos dos viventes.

A agressão aos sentidos é constante. A violência e o crime tornaram-se banais. As vítimas são só um número nas estatísticas. Parece não haver saída. Como no livro 1984, de George Orwell, viver é mera concessão do Grande Irmão que a todos governa e persegue. Não há outra possibilidade além de calar e adaptar-se.
 
Os fazedores de grafite, em geral, exprimem a sensibilidade acuada e ferida. Querem deixar sua marca, um traço que ecoa como um grito na paisagem difícil. Desde uma rude linha até uma composição figurativa elaborada e reflexiva. Estão aí.

grafite em P. Alegre. photo: j.finatto

É claro que nem tudo é arte nesse universo que tem nas ruas seu ambiente natural. Há riscos e signos de tal forma caóticos e agressivos que aumentam, ao invés de diminuir, a sensação de soledade e isolamento. A pichação, via de regra, tem esse efeito e é muito pobre. Pichar é rabiscar qualquer coisa que colabora para a poluição visual, tal como ocorre com a maior parte dos anúncios publicitários colocados na via pública.

grafite em travessa de P. Alegre. photo: j.finatto

O grafite artístico adquiriu status não faz muito tempo e veio depois de muito debate e confusão. No início era tratado como caso de polícia e já configurou conduta passível de reprovação penal. Atualmente, o parágrafo 2º do art. 65 da Lei nº 9.605/98 descriminaliza, em certa medida, o grafite, enquanto manifestação de arte:

"Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional. (Incluído pela Lei nº 12.408, de 2011)"

grafite dOs Gêmeos em São Paulo

Penso que a lei penal não é a melhor maneira de tratar do assunto, nem o processo penal o lugar mais favorável para refletir sobre este tipo de conduta. Medidas administrativas deveriam ser suficientes. O debate dever ser cultural, ambiental, antropológico e sociológico, estimulado no âmbito da União, Estados e Municípios com a comunidade interessada.

Cartaz do filme Cidade Cinza

A tendência de criminalizar condutas que a rigor não precisam deste tratamento torna a vida em sociedade mais complicada do que já é, e não resolve situações de conflito. A norma penal não substitui o indispensável diálogo.

O documentário Cidade Cinza, em cartaz em Porto Alegre, trata da questão na cidade de São Paulo. Mostra que houve uma evolução no entendimento do grafite por parte das autoridades, que em alguns casos já o aceitam e respeitam como forma de arte. Principalmente a partir do reconhecimento internacional de grafiteiros como Os Gêmeos (autores do grafite no alto do post), Nunca e Nina, entre outros. 

Mas ainda há muita incompreensão sobre o tema. De acordo com o filme, equipes da prefeitura paulista saem às ruas para apagar aqueles traços que não consideram arte. São pessoas sem qualquer formação na matéria que decidem entre o que fica e o que vai ser eliminado. De resto, nem sempre é fácil discernir sobre o que é grafite e o que é pichação. Certamente não podem ser pessoas despreparadas, sem informação, a decidir o que apagar, se é que se deve apagar (salvo casos excepcionais). Em geral, o apagamento é um convite a nova pichação.

Imagem do filme Cidade Cinza

De qualquer forma, cada vez mais se autorizam espaços públicos e particulares para a prática do grafite nas cidades brasileiras, o que é sempre recomendável. Representa uma compreensão superior dessa manifestação, além de trazer colorido e beleza para o sofrido cenário urbano.

O grafite é perecível por natureza, constantemente exposto a fatores como sol, chuva, vento, poluição. A seu favor, o fato de ser arte democrática, a todos acessível nas nossas ruas, e que se presta à expressão de pessoas de diferentes idades, origens e condição social. Tem o mérito de quebrar um pouco o cinza, o duro concreto, o insuportável vazio, a rigidez das almas, a indizível solidão da cidade.


grafite em rua de Porto Alegre. photo: j.finatto


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Basquiat:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/11/basquiat-anjo-caido-expoe-em-paris.html
A arte das ruas:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/12/a-arte-das-ruas.html