segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Notícia do jardim

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 

O FATO DIGNO de humilde celebração, neste último dia de 2018, é que sou um homem que tem um jardim. Um jardim que explodiu em flores.
 
O sol de primavera e início de verão foi gentil. Não secou as flores como em anos anteriores. Nunca vi as hortênsias tão cheias de vida e cor. E também as rosas, os jasmins, as flores de mel, as buganvílias, as bolas azuis, e até umas magnólias fora de época, além de outras cujos nomes não sei.
 
Ver o jardim com este vigor anima a alma. À tardinha sento no banco de madeira e fico a admirar as criaturas florais. Respiro seus aromas, cores e pétalas.
 
Caminho entre xaxins e araucárias, cedros, caneleiras, plátanos, palmeiras e uma linda e tenra bananeira que me lembra o poeta Bashô. E quando o sol começa cair atrás das montanhas, os primeiros vagalumes salpicam o ar com suas lanternas de lume intermitente.
 
Para não dizer que não falei augúrio, espero que venham muitas luzes em 2019. E que, ao lado de assuntos sérios e aborrecidos, nosso espírito encontre ocasião de falar de flores, jardins e vagalumes. E, acima de tudo, tenhamos tempo para cultivar amor com nossas famílias e amigos. Deus seja com todos.
 

sábado, 29 de dezembro de 2018

Vive-se

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

VIVE-SE. Do jeito que dá. Às vezes, até mesmo sem nenhum jeito.
 
Porque a única coisa realmente urgente e importante é manter-se respirando. O resto é o que vem depois. E o que vem é neblinoso, se administra. Ou não.
 
Convivemos com a dor, com a falta de amor, de encanto, de beleza, de dinheiro, com a eterna falta de sentido da existência. Enquanto isso, vive-se.
 
Vive-se em Porto Alegre, em Paris, em Sierre, em Lisboa, em Cacique Doble. Vive-se no silêncio de Rarogne e de Passo dos Ausentes. Vive-se à beira do Arroio Tega e nas cercanias do Castelo de Muzot.

Vive-se em toda parte. Principalmente, no fim do mundo.

Vive-se em secreto e em surdina, com raros, impossíveis amigos. Mas vive-se.

Vive-se apesar da corrupção que assola o Brasil e destrói tudo o que se tenta construir e até o que não se construiu, como a floresta Amazônica e a Mata Atlântica.
 
O mais que se faz é viver. De janeiro a janeiro. Com sol e com chuva. Com alhos e bugalhos. Vive-se.

Fique calmo, a realidade não merece o teu suicídio.

Vive-se na sexta, no sábado e, eventualmente, no domingo. Segunda é um enigma que nem a filosofia, nem a poesia, nem a astrologia e muito menos a quiromancia conseguem resolver. Mas o fato é que se vive.
 
Vive-se apesar do lixo nas ruas, do odor nauseante de combustível queimado, do esgoto escorrendo impune para o rio.

Vive-se em que pese o triste, insuportável e persistente racismo.

Vive-se olhando os navios que fogem para o mar.
 
Vive-se diante do olhar atônito das crianças abandonadas.

Vive-se a nostalgia das casas sem eletricidade.
 
Vive-se sem embargo dos livros não lidos. Vive-se não obstante todos os livros lidos.

Vive-se com as folhas secas do outono nos bolsos do antigo casaco.

Vive-se sem nada a perder e mesmo depois de perder tudo.
 
Vive-se sabendo que nunca mais se encontrará aquela mulher para pedir-lhe um olhar, um abraço.
 
Vive-se de mal a pior, sem eira nem beira.

Vive-se apesar dos mortos nos olhando dos velhos retratos, e dos lugares vazios à mesa.

Vive-se a vida invisível dos anônimos, dos solitários, dos desmemoriados.

Vive-se de improviso, sem ensaio, uma única vez, com o coração doendo no peito. Mas vive-se.
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Texto revisto, publicado antes em 16 de novembro, 2014.
 

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Um certo Terêncio Horto

Jorge Finatto

O escritor Terêncio Horto.* Autor: André Dahmer


O ESCRITOR DESCONHECIDO, frustrado, amargurado e massacrado pela indiferença em torno de seu trabalho certamente encontrará um aliado na figura incansável e batalhadora de Terêncio Horto. Ele é a prova viva de que um autor não deve desistir jamais da luta diante da folha em branco e do pouco caso de editores e leitores.
 
Nós, esforçadas criaturas que escrevem em solitários cubículos, formamos uma invisível e numerosa família. Com poucas exceções, vivemos confinados na caverna do anonimato. Mas somos teimosos, nada de desespero. Pelejamos mesmo nas piores condições. A dura lida nos constrói.

Olhemos o exemplo do irmão Terêncio. Lá na sua clausura, qual isolado monge sentado diante da velha máquina de datilografia, ele não se entrega ao fracasso; luta de sol a sol, nuvem a nuvem, quadrinho após quadrinho, para dar ao mundo os frutos suculentos do seu duro ofício.

O Senhor Horto e seu amigo imaginário. Autor: André Dahmer
 
Terêncio Horto é desses assinalados pelas musas e pela tragédia de escolher a escrita num ambiente grosseiro e de poucas luzes como o nosso. Alcançou algum reconhecimento, mas não perdeu a rebeldia. Faz parte de uma geração de escritores em vias de extinção. A esmagadora maioria deles passou a vida sem ser notada pelos leitores, pela crítica, pela mídia e pelos vizinhos dos prédios onde moram. Nunca receberão jabutis, quatis, sagüis, sambaquis e outros importantes galardões literários nacionais. Entanto, lutam a terrível luta de trazer à luz as páginas fadadas ao fundo sombrio de injustas gavetas. 
 
Não apenas escreve bem o Senhor Horto; possui notável poder de observação (notaram o ponto-e-vírgula ali atrás? isto é estilo, senhores!). A sua visão de mundo está impregnada do caos da vida com seus intervalos (raros) de poesia e humanismo. Os temas são os mais diversos, desde remotas (e dolorosas) memórias de infância até intrincadas questões de fundo filosófico e outras, não menos tormentosas, inerentes às relações humanas. Nada escapa de sua pluma corajosa e vertical: internet, brigas de família, humilhações, desilusões, sexo, cultura, cinismo, encontros marcantes e alguns nem tanto, amizade, amor, cumplicidade, arte, literatura.
 
O Senhor Horto. Autor: André Dahmer
 
Horto não poupa a si nem ao restante da humanidade de sua ironia e de seu humor corrosivo. Porém, não perde de vista certa dose de ternura e empatia diante da tragicomédia da existência.

O escritor Horto. Autor: André Dahmer
 
Li com prazer e sentimento de vingança este Vida e Obra de Terêncio Horto, e me reconheci em muitas de suas páginas. O livro já faz parte do meu manual de sobrevivência na selva literária. De forma direta injeta ar fresco e claridade no ambiente de boçalidade do mundo das letras e das artes, além de aliviar a barra pesadíssima do cotidiano. Só resta agradecer ao quadrinista e escritor André Dahmer por nos ter revelado esse grande autor e pensador brasileiro. Com especial destaque, também, para as ótimas ilustrações.

O escritor Horto. Autor: André Dahmer
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*Vida e obra de Terêncio Horto. André Dahmer. Ilustrações do autor. Editora Schwarcz S.A., São Paulo, 2014.
 
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Texto revisto, publicado antes em 16.10.2017
 

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

O nascimento da Luz

Jorge Finatto
 
Madonna and Child. Maria e Jesus.
Autor: Rafael Sanzio, 1508
 
 
DESEJO AOS AMIGOS do blog um Natal em paz com a família, os amigos e entre os estranhos caso estejam longe de casa. Aos que estão sós e tristes, que não se deixem levar pela solidão e pela tristeza, que o Natal é o nascimento da Grande Luz que nos fala de irmandade, bondade, perdão, solidariedade e alegria de viver. Tudo isto nos trouxe Jesus Cristo com seu nascimento. Saúde a todos. 
 

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Partir ou ficar

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

2018 foi um dos anos mais difíceis. Acredito que a maioria dos brasileiros está exausta com tudo que se passou de ruim nos últimos tempos. Milhares foram embora e tantos outros continuam indo todos os dias em busca de uma vida melhor em outro país.

A sensação que se tem é de que não há saída nessa escuridão. E a vida não acontece no futuro, mas hoje, agora. É preciso tomar decisões, comer, vestir, sustentar filhos, buscar um lugar ao sol, ser um pouco feliz. E o nosso país, infelizmente, só tem produzido sombra na vida das pessoas.
 
Ninguém mais suporta notícias de corrupção e gestão ruinosa. O Brasil virou o país do não, principalmente do não à esperança. Há um imenso cansaço.
 
Seu eu fosse jovem, possivelmente buscaria outros horizontes. Entendo a busca dessas pessoas. Mas mudar de país não deixa de ser um salto no escuro. O mundo todo está em convulsão. As crises humanitárias ocorrem em diferentes partes, são milhões à procura de um lar, de um trabalho, de paz para viver. Por outro lado, aumenta a xenofobia nas nações mais desenvolvidas.
 
Seja como for, nem todos podem recorrer ao aeroporto para resolver suas vidas. A maior parte da população terá de tentar melhorar as coisas aqui mesmo, cobrando honestidade, competência e medidas concretas daqueles que assumirão o governo a partir de 1º de janeiro de 2019.

Se o novo governo for honesto como se espera, os problemas mais graves serão resolvidos. Mas mudar o Brasil não é tarefa para um só homem ou para um só governo.
 
Tornar o país um lugar para todos e não para poucos privilegiados é trabalho enorme pela frente. Começa pela cabeça de cada um, pelo próprio coração. Mudando maus hábitos e maus sentimentos. Respeitar as leis, cumprir as obrigações, sem "jeitinho" ou embustes, olhar o próximo como irmão e não como inimigo... Quem sabe não é assim que construiremos um lugar decente para viver. 
  

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Os últimos mistérios do mundo

Filipe Penaverde

túmulo de Rilke em Rarogne, Suíça. photo: jfinatto

Iniciamos hoje a publicação da coluna "Os últimos mistérios do mundo" do senhor Filipe Penaverde. O blog não se responsabiliza por opiniões estapafúrdias do escritor ausentino.


EU TAMBÉM já fui escritor mimoso, eu também já fui candidato ao Prêmio Nobel. Os meus dois leitores amontoavam-se com sofreguidão na porta da única livraria de Passo dos Ausentes, disputando cada novo livro de versos com meu nome estampado na capa.

Naqueles quandos eu tinha de reservar um dia inteiro na semana para atender a insaciáveis jornalistas do Correio Ausentino e da Rádio Ausência.

Esgotado com a faina literária, viajava a Paris. Da janela do meu humilde estúdio, avistava os barcos que iam e vinham pelo Sena enquanto centenas de flashes fustigavam meus olhos exaustos de tanto frenesi em torno de minha obra.

Os sinos de Notre-Dame feriam de melancolia meus moucos ouvidos.

Os convites para jantares e palestras pseudo artístico-intelectuais acumulavam-se sobre minha escrivaninha sem que pudesse atendê-los. A vida social e cultural de um escritor bem sucedido é fatigante na Cidade Luz.

Um dia cansei da celebridade. Retirei oficialmente a candidatura a Nobel de Literatura. Dizem que houve frisson na Academia Sueca. Esses suecos sempre tão suscetíveis.

Hoje vivo na pasmaceira de Passo dos Ausentes. Ninguém me procura e, se procura, não me acha. Desisti da vida literária. Só me importam os livros e os versos que construo em surdina. Passo maior parte do tempo na mansarda. Vivo esse entrementes na casa do entretanto.

Converso com meus fantasmas conversas de antigamente. Falares de tempos mortos.

O que mais sinto é falta de Cléria, não vou negar. Ela sumiu no mundo cansada de me esperar das noitadas de autógrafos. Dizem que foi viver em Rarogne, aquilo sim um fim de mundo onde o gato perdeu as botas. Dizem que passa as tardes lendo poemas de Rilke, sepultado ali ao pé da igrejinha.

Eu aqui, em osso e carne, nesses confins, sem Nobel, sem Paris, olhando a vida da mansarda. Esperando a volta de Cléria. Enquanto ela me trai com o fantasma sedutor de Rilke.

A vida é uma esculhambação.
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Filipe Penaverde é poeta e secretário da Sociedade Literária, Filosófica, Artística, Histórica, Geográfica, Astronômica, Antropológica, Musical e Antropofágica de Passo dos Ausentes. Ex-candidato ao Prêmio Nobel.

sábado, 15 de dezembro de 2018

Éramos eternos e perfeitos

Jorge Finatto
photo: jfinatto


ÉRAMOS ETERNOS e perfeitos até que o previsível aconteceu: nossos arquiavós, dona Eva e seu Adão, foram convidados a retirar-se do Paraíso. 

Descumpriram o acordo, comeram do fruto da árvore do conhecimento. Foram expulsos do Jardim do Éden onde viviam com toda a mordomia. 

Graças ao mau gênio de ambos, deu no que deu, carregamos a condena até hoje. E pior pra nós: o Arquiteto dos Destinos nos fez nascer aqui no Brasil.

Vivemos com uma mão na frente, outra atrás, sem eira nem beira, nessa Tristíssima República.  Muita é a dor, e pouca é a paz. Acho que está na hora de fazer as pazes com o Criador pra ver se pelo menos diminuímos esta quizumba, que a coisa tá insuportável. 

Ninguém agüenta mais o cheiro de enxofre.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Um futuro agora para o Brasil

Jorge Finatto

photo: jfinatto

 
O EFEITO mais perverso e doloroso da crise ética que assola o Brasil é o abandono do nosso maior capital como nação: as crianças e os adolescentes. Tal se materializa na permanente falta de creches para os filhos enquanto pais e mães (principalmente) trabalham (aqueles que ainda têm onde trabalhar). E nas famílias destroçadas pelo desemprego, com suas terríveis conseqüências.
 
O que se vê são crianças sozinhas a maior parte do dia, às vezes entregues aos cuidados de irmãos "mais velhos", também eles crianças. Muitas vezes vivendo em circunstâncias onde só a mão de Deus pode livrá-las do pior.
 
A grande herança da corrupção sem limites que invadiu o país, à esquerda e à direita, são gerações de meninos e meninas atônitos, feridos, famintos por comida e atenção, desorientados, desiludidos e, o pior, sem esperança.

Essa a face mais cruel, a lágrima que não seca.
 
A reconstrução do Brasil deve começar por esses milhões de seres invisíveis. É preciso que o Estado vá às comunidades com serviços essenciais, boas creches, saúde, esportes, além de implementar por todo o país, sem mais demora, os Centros Integrados de Educação Pública, idealizados pelo antropólogo Darcy Ribeiro.

Só a partir de então poderemos falar num futuro para o Brasil. Um futuro que não pode mais esperar. 
 

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

A hora do farelo

Jorge Finatto

photo: jfinatto


ENQUANTO FILÓSOFOS desvelam(?) os insondáveis mistérios da condição humana, eu espero pelo pinhão cozido na chapa do fogão a lenha. A noite de inverno pulsa ao som dos Noturnos de Chopin.

O vento roça o telhado e as janelas do velho sobrado. A estrela cadente desapareceu atrás das montanhas, eu a vi cair para os lados do vale.
 
Esta é a hora imprópria, do farelo.
 
Observo o canto inumerável da vida. O tempo é curto pra conhecer, sentir tanta coisa.
 
Existe, na revelação do farelo, o sentimento de que faltam mais encontros com os amigos, mais conversas nos cafés, caminhadas de mãos dadas. Faltam mais corações à solta. E mais tempo pra ficar com as pessoas que amamos. Há um excesso intolerável de realidade.

A calada da noite impõe austeridades. Ermos são os caminhos da hora do farelo. As folhas secas do tempo caem em volta da hora nua.
 
A beleza da vida está no voo de borboleta, no passo da joaninha.

A hora do farelo traz a vontade de visitar o ínfimo, atravessar o desconhecido.
 
Se um anjo surgisse dizendo que o meu tempo não foi em vão…
 
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Texto revisto, publicado em 8 de março de 2010.
 

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

A biblioteca de cada um

Jorge Finatto

Hermann Hesse*
 
Um dos melhores livros que li sobre livros e leitura - talvez o melhor  deles - é este Uma biblioteca da literatura universal¹, do escritor suíço-alemão Hermann Hesse (1877-1962), Prêmio Nobel em 1946. Encontrei-o no início deste ano, em Lisboa, garimpando estantes da Livraria Fnac no bairro Amoreiras. Editado pela Cavalo de Ferro, de Portugal, com tradução de Virgilio Tenreiro Viseu, é a primeira versão em língua portuguesa.
 
Trata de questões que afligem leitores que, como eu, se sentem pequenos diante de intermináveis bibliotecas e da "obrigação" de ler certos livros, imposta por discutíveis cânones , "autoridades no assunto" e confrarias. Isso nada tem a ver com a paixão pelos livros e o amor pela leitura.
 
Herman Hesse nos liberta das relações de "imperdíveis", daquelas obras que "ninguém pode deixar de ler" pena de virar um asno. A sabedoria vem de um homem que lutou pelo autoconhecimento e contra as inúmeras amarras sociais que sufocam o crescimento espiritual das pessoas. Escritor abençoado pelo reconhecimento ainda em vida, escreveu livros notáveis como O lobo da estepe e O jogo das contas de vidro. Inspirou várias gerações com seu comportamento libertário.
 
"Não existem cem ou mil 'livros mais belos', há, para cada indivíduo, uma escolha particular baseada naquilo que lhe é afim e compreensível, caro e precioso. Por isso, é impossível constituir uma boa biblioteca sob encomenda; cada um de nós deve seguir as suas próprias exigências e preferências, e criar, pouco a pouco, uma coleção de livros, da mesma forma que se criam amizades. Então, uma pequena coleção poderá para o leitor significar o mundo inteiro. Os leitores verdadeiramente bons foram sempre aqueles cujas exigências se restringiram a pouquíssimos livros; uma simples camponesa, que não possui nem conhece nada além da Bíblia, leu-a mais a fundo e extraiu dela uma maior soma de saber, de conforto e de alegria do que um qualquer ricaço mimado poderá alguma vez obter da sua luxuosa biblioteca."²

A lucidez e a humildade do escritor diante do fenômeno literário nos ajudam a espantar fantasmas de autores e livros não lidos. Ele nos ensina que o que vale  é o prazer da descoberta literária e a felicidade que nos desperta.

Que livros são essenciais? Aqueles que vamos encontrando pelo caminho aqui e ali e elegemos como companheiros de viagem pelo bem que nos fazem. O afeto é o único critério que liga o leitor e o livro escolhido. Se é amor, não pode ser imposto, determinado por duvidosos "donos do saber". Não importa a quantidade de livros lidos, mas a qualidade do que nos passam e nos acrescentam em consciência.

Não existe, portanto, uma lista pronta e universal. Os cânones são referências que passam pela subjetividade, pelas necessidades, idiossincrasias e interesses de quem os elabora.

Em suma, cada um deve construir a própria biblioteca com os gostos, expectativas, desejos e informações que o orientam. Tendo-se clareza de que, qualquer que seja o caminho percorrido, jamais se poderá ler tudo que se escreveu de bom nos diversos gêneros, culturas, países e línguas. Sabendo-se, também, que haverá sempre no ato civilizado da leitura um tanto de esforço e de superação, mas sem automutilação.

O próprio Hesse, que afirma ter lido cerca de dez mil livros, sabia que muita coisa boa e valiosa tinha ficado fora de seu radar de leitor atento. Por exemplo, creio que dificilmente terá lido o nosso extraordinário Guimarães Rosa ou o uruguaio Juan José Morosoli, seja pela falta de edições disponíveis onde vivia, seja pela barreira do idioma, seja por nunca ter tido oportunidade de conhecer estes escritores.

Existe sempre um mundo de livros por descobrir.

Tratando-se de construção pessoal, íntima, e que encontra limites em nossos limites de tempo, dinheiro e outras circunstâncias existenciais, criemos com carinho nossas pequenas bibliotecas caseiras. Nelas poderão faltar muitos livros que por certo nos encantariam. Só não faltará amor.

"A venerável pinacoteca da literatura universal está aberta a todos os homens de boa vontade, ninguém se deve deixar intimidar pela sua riqueza, porque aquilo que conta não é a quantidade. Há leitores que, durante uma vida inteira, se limitam a ler uma dúzia de livros e que são, no entanto, verdadeiros leitores. E há outros que devoraram tudo e que sabem falar de tudo e, não obstante, os seus esforços foram vãos. (...) A leitura sem amor, o saber sem reverência e a cultura sem coração estão entre os piores pecados que se podem cometer contra o espírito."³
 
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¹ Uma biblioteca da literatura universal. Hermann Hesse. Editora Cavalo de Ferro, 2ª edição. Amadora, Portugal, fevereiro de 2018.
² Idem, p. 53.
³ Idem, pp. 12,13.
* O crédito será registrado assim que conhecida a autoria da foto.