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quinta-feira, 24 de novembro de 2016

A tristeza de Porto Alegre

Jorge Finatto

Cais, vista parcial, Porto Alegre. photo: Lorenzo Finatto
 
Eu vou escrever uma coisa triste. Quero falar de Porto Alegre, cidade do meu coração. Do medo que sinto em andar por suas ruas. Da saudade que tenho do tempo em que isto era possível. Do sentimento de isolamento que nos invade com o cerco da violência.

Difícil acreditar que Porto Alegre é, hoje, uma das capitais mais perigosas do país. Pouco saio de casa temendo assaltos, sequestros, tiros, que ocorrem nas calçadas,  nos semáforos, nos estacionamentos de shoppings, em toda parte.

É doloroso não poder caminhar como antes por suas ruas cobertas pelas copas de tantas árvores. E o que dizer de seu rio, de suas praças e parques, do cais, dos barcos e navios, de seu lindo pôr-do-sol, de sua gente acolhedora? Está tudo escondido, hibernando à espera de melhores dias.
 
Segundo dados oficiais, o número de latrocínios (roubos com morte) aumentou este ano, chegando, entre janeiro e junho, a 23 vítimas em Porto Alegre e 89 vítimas no Estado. Mata-se por um celular, um par de tênis, um relógio velho, um carro, um pacote de supermercado, muitas vezes por nada, e sem qualquer reação das vítimas. No mesmo período, os homicídios dolosos saltaram para 351 em Porto Alegre e 1.276 no Estado. Isto sem contar outros crimes.*
 
O Estado não cumpriu a obrigação de construir novas casas prisionais diante do incremento da criminalidade. A superlotação dos presídios impede o atendimento individualizado aos presos, a começar pelo indispensável acompanhamento psiquiátrico. As condições desumanas dos estabelecimentos penais e o despreparo da sociedade em receber o egresso de volta são responsáveis pelo fenômeno da reincidência criminal, que ultrapassa os 70%. Inexiste ressocialização dos apenados.

O que as pessoas não se dão conta, parece, é que tudo de horrível que acontece no interior dos presídios retorna para as ruas.

Nos anos em que atuei na execução criminal, empenhei-me junto com colegas juízes e entidades civis pela humanização dessas casas de mortos (no dizer de Dostoievski). Trabalhamos com projetos de melhoria das condições carcerárias, buscando inserção social através do trabalho, do estudo, de encontros, palestras, livros, bem como pelo envolvimento da comunidade e das famílias dos presos nas atividades de ressocialização. Os resultados foram bons, confirmando que não existe execução criminal que dê frutos sem a participação da comunidade. A Lei de Execução Penal é sábia nesse sentido.

Pois bem, Porto Alegre possui um dos piores estabelecimentos penais do Brasil, se não for o pior, o Presídio Central. É o fundo do poço.
 
Não se chegou a este estado de coisas, portanto, por acaso. São décadas de omissão e indiferença do Estado e da sociedade. Não se combate a criminalidade sem investir, lá atrás, na concretização de direitos elementares como habitação, creches, escolas, saúde, centros comunitários e de convivência, oportunidades de trabalho, etc.

Não, a pobreza não é fábrica de criminosos. A imensa maioria da população não vai para o crime. Mas o que se vive no Brasil é uma situação de indigência social e abandono. O mundo do crime sabe cooptar seus integrantes em todos as classes, inclusive entre as pessoas mais vulneráveis, em situação de alto risco e desespero.
 
Os maus governantes devem estar orgulhosos do trabalho que fizeram, assim como aqueles que se beneficiaram deste iníquo sistema de coisas. E nós, cidadãos, temos nossa parcela de responsabilidade por escolher quem escolhemos. E por cultuarmos ferozmente a filosofia do eu-sozinho, esquecendo-nos do nós.
 
O dinheiro que falta para a realização do bem comum e para uma vida mais digna  está depositado nos bolsos sequiosos e insaciáveis dos corruptos, conforme estampado nos noticiários todos os dias.
 
O colapso de Porto Alegre não é um caso isolado, é só um triste recorte do Brasil. Esta é a herança que estamos recebendo e passando adiante, construída pelas pessoas da minha geração e das que nos antecederam.  Muitos de nós  achavam que a democracia era, por si só, a panaceia para todos os males, quando na verdade é apenas o começo do caminho a ser percorrido, e só Deus sabe a que preço.
 
Estamos atravessando um dos momentos mais agônicos da história brasileira. A falta de ética na vida pública nunca foi tão evidente. Ninguém aguenta mais tamanha desfaçatez. Precisamos urgentemente de mulheres e homens que reinventem o país com base no sentimento de solidariedade social. Um novo tempo de respeito ao próximo e de intolerância a todas as formas de corrupção é a nossa esperança.
 
________
 
*Dados divulgados pela Secretaria da Segurança Pública do RS. Informação atualizada no blog em 3/12/2016.

http://www.ssp.rs.gov.br/?model=conteudo&menu=348

Os números publicados anteriormente a 3/12/16, nesta matéria, continham erro.
 

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Violência na praça

Jorge Finatto
 
porto de Porto Alegre, vista parcial. photo: jfinatto

No sábado (25 de junho), fui ao Museu de Arte do Rio Grande do Sul, na Praça da Alfândega, para o lançamento de um livro. Não costumo freqüentar o Casco Velho da cidade, perto do porto, por uma razão bastante triste: tenho medo de ser assaltado (o que seria de menos) e levar um tiro de bandidos que atuam na região.

A Praça da Alfândega e suas cercanias constituem cartão-postal da capital do Rio Grande do Sul, lugar histórico, berço social e cultural da cidade. Não por acaso ali estão órgãos importantes como o Margs e a Casa de Cultura Mario Quintana.

Naquelas ruas e passeios vi gente como Mario Quintana, Dyonélio Machado, Caio Fernando Abreu, Rubem Braga, Carlos Reverbel, Paulo Hecker Filho, Jorge Amado, José Cardoso Pires, entre tantos. Na praça se realiza, anualmente, na primavera, a Feira do Livro de Porto Alegre.

No entanto, nos últimos 30 anos o lugar vem se degradando, transformando-se na coisa lamentável que é hoje: uma área desumanizada e muito perigosa.
 
A motorista de táxi que me levou recomendou cuidado na travessia da praça até o museu. Disse que naquele trecho ocorrem diversos assaltos a cada dia, e que isto não espanta mais ninguém.
 
Fiquei uns 50 minutos no Margs, comprei o livro e fui embora. Com receio fiz o percurso de volta até encontrar um táxi numa rua próxima. Policiamento não vi nenhum. Encontrar policiais nas ruas é coisa raríssima em Porto Alegre.

O problema nem é ser despojado dos poucos bens materiais, mas perder a vida, como infelizmente tem acontecido diariamente nas ruas. Porque aqui os bandidos não se contentam mais em subtrair o patrimônio das vítimas, querem também a sua vida.

O mais perverso é que internalizamos o medo e perdemos a liberdade e a alegria de andar pela cidade. Difícil manter a saúde mental num ambiente assim. E desta forma vamos vivendo (?) no Brasil.
 

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Passos para o abismo

Jorge Adelar Finatto

photo: reprodução. fonte: g1.globo.com*
 
O bairro Menino Deus, em Porto Alegre, é um dos mais tradicionais e bonitos da cidade. Um lugar de ruas antigas, onde havia um belo casario, que aos poucos foi sendo derrubado e substituído por edifícios. Um bairro de vizinhos, de pessoas que se conhecem e convivem.
 
O escritor Caio Fernando Abreu viveu num desses sobrados em seus últimos anos de vida junto da família. Costumava dizer que morava no Menino Deus e não em Porto Alegre. Porto Alegre era apenas o que estava no entorno. Caetano Veloso fez uma música para o Menino Deus. Além das ruas arborizadas e interioranas, há o Guaíba que navega perto. 
 
Tenho uma ligação afetiva com o bairro. Morei lá alguns anos na juventude. Foi lá que conheci a namorada com quem me casei. Dois de meus filhos nasceram quando morávamos no Menino Deus. Perdi a conta das vezes em que os levei a passear por suas praças e ruas. No Menino Deus eles aprenderam a andar de bicicleta e descortinaram, pela primeira vez, as águas, os barcos e as gaivotas do rio. Infelizmente, esse tempo ficou para trás, em todos os sentidos.
 
Em meio ao colapso da segurança pública que assola o Rio Grande do Sul, este bairro querido já não é e nem poderia ser uma ilha. Muitos de seus habitantes estão entre as incontáveis vítimas da violência crua e cotidiana, que invade as ruas e as casas, na forma de furtos, roubos e homicídios, entre outros crimes.
 
Um triste exemplo foi a morte do comerciante Elvino Nunes Adamczuk (49 anos), atingido por uma bala perdida na sexta-feira passada (4/9), enquanto passeava com seus dois cães.  Por volta das 22h, sua mulher ouviu um tiroteio e saiu da padaria Santo Antônio, na Av. Getúlio Vargas, que pertencia ao casal, na qual ela, o marido e os três filhos trabalhavam.  Queria se certificar de que Elvino estava bem.

Um dos cães correu até ela, solto da coleira, e o outro estava ao lado do dono, atingido com um tiro no abdômen. O pequeno empresário foi levado ao Hospital de Pronto Socorro e operado, mas não resistiu e morreu na terça-feira (8/9).
 
Conforme registra o jornal Zero Hora, edição desta quarta-feira (9/9), teria havido na ocasião uma troca de tiros entre policiais e assaltantes.

A reportagem dos jornalistas Adriana Irion e José Luís Costa esclarece que o comerciante costumava acordar às 4h e abria seu estabelecimento às 7h. Tinha uma clientela fiel e era estimado por todos na vizinhança.
 
Moradores de rua escreveram uma carta destinada à família, testemunhando que Elvino Adamczuk era uma pessoa "que sempre esteve junto a nós" (foto acima). Vários deles eram clientes da padaria Santo Antônio. Ele costumava ajudá-los, inclusive dando comida. Também auxiliava entidades assistenciais. Um homem bom, exemplar.
 
Os salários em atraso do funcionalismo público estadual, atingindo integrantes da área da segurança pública, geram paralisações e precariedade no atendimento da população. Os atrasos agravam uma realidade que, muito antes disso, já estava no limite. A criminalidade fugiu do controle.

Os salários pagos aos policiais civis e militares não estão à altura de sua difícil missão, com risco da própria vida.  Além de tudo, esses profissionais enfrentam dificuldades de toda ordem, entre elas a falta de pessoal e a deficiência de equipamentos. Do lado oposto, os criminosos agem em toda parte e a qualquer hora. Com os atrasos, a situação torna-se desumana.
 
Este foi apenas mais um caso, mais uma vítima fatal, num Estado e num país que estão se deteriorando assustadoramente. A falta de segurança é apenas um dos sintomas.

Nunca vi antes o Brasil e o Rio Grande numa situação como essa. Vivemos um momento de densa escuridão, estando o Brasil entre os países mais violentos do planeta. Já escrevi aqui sobre corrupção, desgoverno, violência, indiferença, gastos bilionários com copa do mundo e olimpíadas,  e não vou cansar os poucos leitores voltando a esses assuntos. Ninguém suporta mais tamanha incompetência e insensibilidade dos governantes.
 
Só quero dizer que a perda de pessoas como Elvino Adamczuk é uma barbaridade que nos remete a um imenso vazio de sentidos e a incertezas sobre se ainda estaremos vivos no dia de amanhã. Uma certeza, contudo, existe: sair de casa, nos dias que correm, é um passo em direção ao abismo.

Quando os nossos vizinhos são mortos gratuitamente, como estamos habituados a ver, é sinal de que não existem mais ilhas e de que há muito habitamos o território do medo, da injustiça e da barbárie.

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g1.globo.com
http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2015/09/moradores-de-rua-entregam-carta-familia-de-comerciante-morto-no-rs.html
 

terça-feira, 23 de junho de 2015

Racismo continua fazendo vítimas. Até quando?

Jorge Adelar Finatto
 
Plínio Marcos*
 
 
O racismo é um fuzilamento a priori.  Às vezes o fuzilamento é moral, outras é tragicamente real. Pretende-se eliminar o outro pela cor da pele, pelo tipo de cabelo, pela forma do nariz  e dos lábios, pela circuncisão, pela religião, pela cultura, pela origem, por coisas que nada têm a ver com o interior e com os valores da pessoa.

Certa vez, conversando com Plínio Marcos (1935-1999) - o grande dramaturgo brasileiro - ouvi-o dizer que, no Brasil, a discriminação não é dirigida somente contra o negro, o índio, mas contra os "encardidos" de modo geral.

O encardido, segundo entendi, é o pobre que luta arduamente para não morrer de fome a cada dia, cuja aparência sofrida, em razão dos maus tratos da vida, da exposição a toda sorte de humilhações e dificuldades, nas ruas banhadas de sol ou molhadas de chuva, acaba sendo comum a todos na sua situação. Na visão de Plínio, há uma forte discriminação social contra os oprimidos.

A vítima de racismo é agredida porque é negra, judia, indígena, árabe, asiática, cigana, etc., tudo isso agravado quando é portadora de deficiência física. O racista quer destruí-la porque é diferente. Não tolera a diversidade no modo de ser, no pensamento e nos traços. Recusa-se a conviver por várias razões, inclusive por temer disputas no mercado de trabalho e no acesso a serviços de bem-estar social. Como se os discriminados fossem párias sociais, e não trabalhadores e geradores de riqueza.

O ódio advém de uma raiva ancestral a quem é diferente. A prepotência está de tal forma arraigada que alguns só saciam sua sede de vingança com sangue derramado. É difícil precisar de onde vem esse sentimento monstruoso. Mas sabe-se que muitas vezes tem origem no interior de famílias refratárias ao afeto e ao conhecimento.

Na noite de 17 de junho passado, mais uma vez teve lugar o horror, nos Estados Unidos. Um jovem branco matou nove pessoas no interior de uma igreja tradicional da comunidade negra da cidade de Charleston, na Carolina do Sul. As pessoas estavam reunidas para fazer estudo bíblico quando o homem começou a atirar.

A governadora da Carolina do Sul, Nikki Haley, disse: "Enquanto ainda ignoramos os detalhes, sabemos que jamais entenderemos o que motiva uma pessoa a entrar em um dos nossos locais de oração e tirar a vida de outros". ¹ De fato, não há compreensão possível para semelhante barbárie. Foge completamente a qualquer entendimento.

No Brasil, este tipo de assassinato não costuma acontecer desta maneira. Mas os jovens negros continuam sendo maioria entre as vítimas de violência. ²

Existem, como se sabe, inúmeras formas de racismo. A maior parte delas é velada entre nós. O racismo à brasileira é ardiloso. Como racismo é crime inafiançável e imprescritível, o racista não passa recibo. Mas se manifesta na hora de negar "sutilmente" a vaga no emprego, ao prejudicar o acesso a um direito, ao agir com desprezo, indiferença e má educação.³ 

Só a aplicação rigorosa da lei e a educação poderão mudar este quadro, no Brasil e em toda parte. Sem esquecer, por óbvio, as ações afirmativas já em curso como quotas para negros e índios em instituições de ensino e carreiras públicas.

Não nos iludamos: o racismo é algo ainda muito presente. É assombroso falar em racismo numa nação caracterizada como das mais mestiças do planeta.

A diversidade é a identidade por excelência do Brasil e é a melhor contribuição que podemos dar ao mundo. 

_________

¹ globo.com:
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/06/atirador-de-charleston-sentou-com-fieis-na-igreja-diz-policia.html
² Inesc:
http://www.inesc.org.br/noticias/noticias-gerais/2015/maio/indicador-inedito-mostra-que-jovens-negros-sao-principais-vitimas-da-violencia-no-brasil
³Racismo à brasileira
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/05/racismo-brasileira.html
 *O crédito da foto de Plínio Marcos será registrado assim  que conhecido.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

A barbárie nossa de cada dia

Jorge Adelar Finatto

Estação Hidráulica Moinhos de Vento. P.Alegre.  photo: jfinatto
 

A barbárie invadiu nossas vidas. A sociedade brasileira se habituou ao sangue derramado.

As agressões e assassinatos acontecem a toda hora nas ruas do país. A tragédia virou rotina nas páginas dos jornais, já não causa espanto. Virou fato normal e nada se faz para dar um basta na situação.

As desculpas são sempre as mesmas: faltam recursos para o combate ao crime, para construir prisões decentes, para a saúde, para a educação, para a moradia, para as creches, para o transporte, para o saneamento, para a alimentação, para o emprego, para a cultura, para os espaços de lazer e convivência. Mas curiosamente sobram - e como sobram! - recursos para a corrupção e a gestão temerária.

Ninguém se importa verdadeiramente, enquanto não acontece com alguém próximo. Acredita-se - ou finge-se acreditar - que a desgraça deve ser enfrentada como sendo algo pessoal. Não é.
 
A nossa capacidade de indiferença ultrapassou todos os limites. Vivemos uma realidade doentiamente individualista, escondidos atrás de grades e sistemas de segurança que nada resolvem.

Cada um recolhido no seu casulo de silêncio e medo, pouco se importando com o que acontece ao vizinho. É melhor nem saber.
 
O espaço público virou território de bandidos. À solta e agindo livremente, eles são os donos das nossas cidades. São eles que, de fato, governam dentro de suas leis próprias e de seus códigos perversos.
 
Os maus exemplos de conduta, que induzem todo o processo, vêm desde os mais altos escalões da vida nacional. A inexistência de um projeto de nação responsável, humano e solidário está levando o país à autofagia. O Brasil está se destruindo assustadoramente.

Enquanto isso, vende-se a ideia de que a vida vai melhorar com ajustes na economia, o que é uma visão distorcida das coisas. A vida do brasileiro só irá melhorar com educação que permita a construção de valores. Não é só uma questão de melhorar os números da economia, mas, antes e acima de tudo, de formar consciências.

Os bilhões e bilhões manejados pela corrupção demonstram que o problema primacial do Brasil está longe de ser a crise econômica, esta simples consequência dos desmandos. É, isto sim, a falta de competência, respeito e honestidade na administração do patrimônio público.

Reduzir os impasses do país, como se está tentando fazer, à mera questão econômica é, no mínimo, subestimar o poder de percepção, a inteligência e o sofrimento do povo.

A ausência de responsabilidade social e a indiferença pelo bem comum abriram as portas à selvageria e explodiram qualquer ideia de vida em sociedade em nosso país.

Teoricamente, vivemos todas as liberdades democráticas. Na prática, porém, nunca a vida foi tão agredida e desprezada.

Esta é a terrível herança que estamos construindo.
 

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Encarceramento degradante, danos morais

Jorge Adelar Finatto
 
Para que o tema não caia no esquecimento, como sempre acontece, reproduzo este texto que publiquei em 17 de setembro de 2012. Infelizmente, o assunto continua sendo tratado como de menor importância pelos governos.
Também acredito que as vítimas, no Brasil, estão ao abandono, jogadas à própria sorte, o que é o outro triste lado desta terrível equação.*
 
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro condenou o Estado do Rio a indenizar, por danos morais, presos que estiveram recolhidos na 110ª Delegacia de Polícia de Teresópolis, em razão de encarceramento em condições degradantes. A ação foi ajuizada pela Defensoria Pública e o valor a título de indenização foi fixado em R$ 2 mil, para cada recluso autor da demanda.

A decisão, em sede de embargos infringentes (Processo nº 0009573-98.2005.8.19.0061), foi prolatada na quarta-feira passada, 12 de setembro, e está divulgada no site do TJRJ. O acórdão ainda não foi publicado. Destaco o seguinte trecho, divulgado no site:

“Urge reconhecer que a crueldade no cumprimento da pena se configura diante da superlotação carcerária e do tratamento desumano aos presos. In casu, os autores não têm camas, ou mesmo espaço suficiente para dormirem todos no chão ao mesmo tempo (o que já seria indigno). A aeração é insuficiente e a umidade excessiva. Também falta luz solar e local apropriado para as necessidades fisiológicas dos presos. Tudo a contribuir na proliferação de bactérias, fungos, vermes e vírus, além das mais diversas doenças. Não é demasiado asseverar, nessa linha de raciocínio, que o tratamento dispensado aos presos no Brasil equivale a verdadeiro delito de tortura”, afirmou o desembargador Rinaldi no voto vencido quando da apelação.

O entendimento do desembargador Luciano Rinaldi de Carvalho, antes vencido na 14ª Câmara Cível, acabou prevalecendo nos embargos por 5 a 0.

A decisão é importante por marcar a posição do Judiciário em relação à absurda realidade dos estabelecimentos penais brasileiros. Embora sujeita a recurso, é de se esperar que outras decisões venham, em breve, obrigar o poder público a cumprir a Constituição Federal (art. 5º, XLIX: é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral) e a Lei de Execução Penal (nº 7.210/84).

A superlotação das penitenciárias é fonte primária de produção de violência e desumanização da sociedade brasileira. As péssimas condições de vida dos detentos, na maioria das prisões, são bastante conhecidas.

A situação retrata a pouca importância que o Estado tem dado ao problema e reflete, também, uma inaceitável tolerância com a violação dos direitos humanos no cárcere. O resultado mais evidente é o aumento da criminalidade nas nossas cidades.

O alto índice de reincidência criminal é uma calamidade no Brasil.

Novidade? Nenhuma. Os apenados um dia regressam para as ruas. Sem ter recebido tratamento adequado, sem oportunidade de se reintegrar socialmente, voltam ao crime, fazendo novas vítimas. Minha percepção, dos muitos anos em que atuei como juiz da execução penal, é de que parcela significativa dos apenados não volta ao crime se tiver oportunidade de mudar de vida. Creio que este número pode chegar a mais de 60%.

Os prejuízos econômicos e sociais causados pela reprodução do crime, a partir da execução penal ineficaz e desumana, são imensos, afetando o próprio desenvolvimento da nação. Alguma autoridade já parou para analisar o custo da criminalidade? Não só pelas perdas materiais, mas pelo insuportável dano psicológico representado pela destruição de vidas e da saúde de milhares de pessoas todos os anos.

Neste aspecto, o Brasil ainda vive no subsolo. É dever do Estado receber presos em condições mínimas de salubridade, possibilitando trabalho e ensino profissional, estudo, acompanhamento médico e psicológico, desenvolvimento de atividades úteis à comunidade, além da indispensável convivência com familiares. O rompimento dos laços, ainda que precários, é uma agravante na vida do recluso.

Se a Constituição e a LEP forem cumpridas, haverá mais dignidade nos presídios e cadeias do país. E os cidadãos sofrerão menos com a violência aqui fora.

Isto, é claro, nada tem a ver com oferecer hotel cinco estrelas a quem praticou crimes.

O caminho para a ressocialização é possível, mas é preciso decisão política e investimento (assim como na saúde e educação). O abandono dos presos e presídios, nas atuais condições, só se presta à perpetuação de uma sociedade violenta e sem perspectiva real de dar um salto civilizatório.

As penas acessórias (ilegais, degradantes e cruéis) presentes nas penitenciárias, desde a violência sexual até as doenças lá contraídas, precisam ser eliminadas.
 
Lembrai-vos dos que estão em cadeias, como se tivésseis sido presos com eles, e dos que estão sendo maltratados, visto que vós mesmos também estais ainda num corpo. (Bíblia, Apóstolo Paulo, Hebreus, 13:3)

O texto de Paulo, escrito em Roma, por volta do ano 61 da Era Cristã, é rico em sabedoria e uma séria advertência contra a desumanização das cadeias. Um importante alerta contra a indiferença da sociedade e do Estado em relação ao esquecimento dos prisioneiros.

A urgente construção de novas casas prisionais, dentro de requisitos mínimos previstos na lei, é uma decisão que não pode mais ser adiada.

Este mundo de sombras e de morte tem de ser eliminado, deixando de ser casa para cadáveres vivos, no lúcido dizer de Dostoiévski, em seu livro Recordações da Casa dos Mortos, para transformar-se na casa da esperança.

O Brasil é hoje uma das grandes democracias do planeta. É injusto para o cidadão ter de conviver com esse sistema que não respeita direitos humanos de presos e tampouco das vítimas, reais e potenciais, que sofrem as consequências do caos instalado.

E, por favor, não se fale em falta de recursos como razão para manter as coisas como estão. O país que tem dinheiro para realizar a Copa do Mundo de Futebol em 2014 e a Olimpíada em 2016, entre outros "investimentos", não pode se valer deste argumento.

___________

*Apontamentos sobre direitos das vítimas no Brasil:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/03/breves-anotacoes-sobre-direitos-humanos.html
 

quarta-feira, 19 de março de 2014

O país das quaresmeiras em flor

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto, 15.3.2014
 
Só agora me dou conta, raro leitor, de que elas andam por aí, anunciando a Páscoa e o advento do outono. A nova estação chega cheia de significados
 
(fala de Ressurreição e de urgentes renascimentos)
 
As flores das quaresmeiras têm tudo a ver com sentir claro, respirar limpo, passar longe dos abismos.

É o que eu penso nesse instante vendo-as vibrar na claridade, apesar da densa sombra que se abate sobre o Brasil com sua triste face de corrupção e violência social

mas não é só aqui, dizem os intérpretes do caos, mas sendo aqui, digo eu, já me basta, é o suficiente para danar a minha/nossa vida.

Estamos perplexos, temerosos, impotentes, humilhados diante da realidade que nos assola.

(dizer que saímos da escuridão abissal da ditadura e acabamos nisso, nesse buraco sem fundo que suga nossa alegria, nosso trabalho, nossa paz, nosso sangue, nossos sonhos

ceifa vidas diariamente nas ruas do país sem lei, sem autoridade, sem saúde, sem educação, sem esperança (tudo, claro, garantido no papel),

trágicas ruas onde se afunda o famoso, nunca demais louvado, não obstante sempre negligenciado estado democrático de direito

- de que estado e de que direito estamos falando mesmo? -

ninguém sabe ao certo se existe de fato e o que é isto no aqui e agora, nem mesmo se depois de tanta indiferença, omissão, arrogância, malandrice, cinismo e incompetência haverá ainda um país para chorar)

photo: j.finatto, 15.3.2014
  
Mas olhando as quaresmeiras em flor, nesta hora e neste lugar, ao menos nesse efêmero instante, a morte não tem nem pode ter guarida.

As flores das quaresmeiras são o oposto da morte, negação do desespero e do abandono (longo abandono de séculos). 
 
(a delicadeza dos ramos, pétalas e cores remete a um mundo outro)
 
Um tempo de recolhimento e silenciosas caminhadas por estradas interiores nos habita na quaresma.

Olhar atento ao solitário vôo do pássaro sobre os fios de luz, tecendo destino e distância com a nossa esperança (por um fio).
 
Tempo de resistência

(como sempre)

de atravessar a ponte
 
(sobre o rio das mortes)
 
e chegar vivo do outro lado. 


photo: j.finatto, 15.3.2014
 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Viver com medo

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto


Um empresário português do ramo de restaurantes contou-me, em Lisboa, que viveu durante 20 anos no Brasil. Chegou ao Rio de Janeiro com apenas um dólar, ficou pouco tempo em casa de parentes e em seguida começou a trabalhar no setor de panificação, num bairro carioca da zona sul. Trabalhou duro, acabou construindo sua própria empresa. Progrediu, constituiu família, sentia-se feliz.
 
Um dia bandidos entraram no seu estabelecimento, encostaram o revólver na sua cabeça, ameaçaram matá-lo e levaram todo o dinheiro. Disseram-lhe para não fazer alarde do roubo, pois conheciam bem a ele, a mulher e os filhos. Coisas piores poderiam acontecer.

Naquele dia tomou a decisão de ir embora do Brasil. Disse-me que não poderia viver com medo. Hoje é proprietário de um bom restaurante na Praça do Comércio, à beira do Tejo, que freqüento quando estou em Lisboa.
 
- Não existe coisa mais terrível do que viver com medo. Jamais poderia me adaptar a uma situação como essa. Preferi deixar tudo para trás, recomeçar do zero.
 
Entendo o que ele sentiu. Nas grandes cidades brasileiras, e mesmo nas médias, vive-se com medo. A violência está fora de controle. Latrocínios, assassinatos, roubos, furtos, estelionatos, tráfico de drogas, maus-tratos, etc., acontecem a todo momento. Pra não falar da criminalidade no trânsito com grande número de vítimas fatais e mutilados.*
 
Vivemos com medo no Brasil. Experimente sair à noite pelas ruas de Porto Alegre e ficará surpreso ao ver que pouca gente ocupa os espaços públicos, como parques, praças, calçadas, passeios (falamos de uma cidade com 1 milhão e 400 mil habitantes). Motivo: medo do bandido, do assalto, do tiro, do estupro, de ser mais uma vítima. Falei à noite, mas de dia a preocupação com a violência também é constante.

O que faz com que os criminosos ajam com tanta desenvoltura? Eles contam com a impunidade, sabem que têm muitas chances de que nada lhes aconteça. O índice de responsabilização penal é muito baixo entre nós.
 
As autoridades policiais trabalham no limite de suas forças, com muito pouca estrutura, pouco pessoal, pouco investimento. Os criminosos contam com  isso. As investigações recaem sobre os delitos mais graves. Daí que muitas pessoas simplesmente não registram as violências que sofrem, porque sabem que dificilmente serão apuradas. Há desta forma um buraco na estatística da criminalidade.
 
Os magistrados que atuam na área penal convivem com a absurda situação dos estabelecimentos penais superlotados, que não oferecem condições mínimas de encarceramento e ressocialização. Porto Alegre tem hoje o maior e pior presídio do Brasil, o Central, com mais de 4 mil presos onde caberiam no máximo 2 mil.

As péssimas condições já foram denunciadas à Corte Interamericana de Direitos Humanos, tribunal da Organização dos Estados Americanos, que está cobrando ações práticas das autoridades. Encarceramento em condições sub-humanas só gera mais violência, mais crimes e mais desumanização.
 
Os governantes conhecem os problemas. No entanto, o que fazem para alterar este cenário - quando fazem - é muito pouco. A realidade não muda, pelo contrário, se reproduz.

Teremos neste ano a Copa do Mundo de Futebol e o ambiente é este. Estão havendo gastos públicos exorbitantes para este evento que é um luxo que o Brasil não poderia se dar. E logo depois, em 2016, vêm os Jogos Olímpicos, outra aventura que vai custar muito caro.

Enquanto isso faltam recursos para obras essenciais em serviços de saúde, segurança, educação, transportes, moradia, infraestrutura e por aí vai. 
 
É necessário lucidez e um grande esforço para transformar esse triste panorama. E tudo começa na cabeça e no sentimento das pessoas.

Padecemos no paraíso, raro leitor. Num estado e num país de imensas possibilidades humanas e naturais. Mas precisamos estar à altura desse patrimônio. 

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*Dados oficiais divulgados pelo Governo do Estado na terça-feira, 18/02, revelam que em 2013 morreram nas estradas e ruas do Rio Grande do Sul 1984 pessoas, contra 2091 mortes em 2012.