sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

A dureza da lei e o intérprete juiz

Jorge Finatto
 
Dura lei, mas lei. Este brocardo é curto, mas em compensação não presta. A vida em si mesma já é tão dura que eu acho um exagero de mau gosto fazê-la ainda mais dura com a dureza da lei.¹
            
ESTA FRASE é da crônica "Crime de casar", escrita por Rubem Braga (1913-1990) para o jornal Folha da Tarde, de Porto Alegre, em 1939. Penso que todo juiz, ou candidato a, devia lê-la. Suscita questões importantes em torno da aplicação da lei. É uma reflexão construtiva, sutil, bem-humorada, irônica, que vem em proveito da difícil arte de julgar.
 
Acredito, como o notável cronista de Cachoeiro de Itapemirim, que a aplicação fria da lei mais escurece do que ilumina. O que é a aplicação fria? É a desconsideração do fator humano.
 
O julgador precisa considerar as circunstâncias pessoais do indivíduo e do meio que o cerca. Estamos falando de processos onde isso tem relevância, não em demandas em que a realidade objetiva se sobrepõe, como quando se discute, por exemplo, matéria técnica de natureza tributária.
 
Mas nas ações que envolvem sentimentos, o estudo e a decisão devem ir além da obviedade da regra jurídica. É necessário aprofundar o exame daquilo que a aparência muitas vezes esconde. Evidente que há uma zona cinzenta em que não é fácil fazer esta avaliação. O desafio é justamente não desistir.

Lá em cima, além, muito além da estratosfera, como diria Alencar, na região puríssima da moral absoluta, faz frio demais, e falta pressão: falta pressão sentimental. A vida humana não é possível sem uma certa pressão.²
  
A aplicação humana da lei é pressuposto essencial para fazer justiça no caso concreto, o que contribui para o aperfeiçoamento da vida em sociedade. Ninguém vive no interior de um laboratório asséptico livre de vicissitudes e imperfeições. Não significa negar validade à norma (salvo quando inaplicável ou inconstitucional), mas operar com lucidez sobre o tecido dos fatos.

A lei deve vir ao mundo real, freqüentar o ambiente humano.

A lei é uma moldura indispensável para a convivência social. O trabalho do juiz consiste em temperar a dureza da lei, sua abstração ideal, com os matizes da vida.

Na verdade, sinto que fiz muito bem em não querer ser juiz. Como simples cidadão, sou respeitador das leis: se fosse juiz, num caso desses, eu a desrespeitaria. E antes ser um bom sujeito que um mau juiz, penso eu.³
 
Se julgar fosse tão só aplicar glacialmente o regramento legal, não precisaria haver juiz. Um computador poderia fazer melhor o serviço e de forma infinitamente mais rápida e barata. Mas isto, por óbvio, não seria fazer justiça.
 
O que se espera do juiz, no ato de julgar, é que concilie conhecimento jurídico e técnica com sensibilidade e humanismo. Diante disso, discordo do mestre Rubem Braga: creio que teria sido um grande juiz.
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¹ Morro do Isolamento. Rubem Braga. Crônica "Crime de casar", pp. 55/57. Global Editora, 7ª edição. São Paulo, 2018.
² idem, p. 56.
³ idem, p. 57.