quinta-feira, 9 de maio de 2013

Travessia da névoa

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Estou só e escrevo para minha alegria.*
                                               Matsuo Bashô (Japão, 1644 - 1694).
 
Vinha pensando nesse verso de Bashô enquanto ia pra casa, no fim da tarde de outono. Atravessei a ponte no meio da névoa fria, um leve vento nas folhas.

A vida é encontro, mas é também uma constante despedida. Dos outros e de nós mesmos.

O tempo foge a galope, vamos sumindo na bruma.

Alguém notará a minha ausência quando não estiver mais na paisagem de outono? Quando não estiver mais em paisagem alguma? Quem estenderá a mão quando chegar do outro lado da ponte?

Vinha eu pela ponte, pensando esse difícil pensar.

Trazia o calepino e o lápis no alforje. No coração, essas ruminações em torno do inefável.

Mas não é propriamente de solidão que a travessia da névoa fala. Não é bem disso que ela trata.

Há um caminho a percorrer no ermo, ela diz.

O que a ponte espera de nós é o gesto da passagem. O passo corajoso e humilde.

Um movimento além do medo. 

Os poetas constroem pontes através da névoa.

A palavra abre a picada na mata densa e escura. E por ali vamos, colonos do território despovoado, catando o farelo de beleza e mistério.
 
O vento leve toca o sino de bambu.
 
O visível e palpável é apenas um vestígio. Imenso é o que não se vê nem se toca.

Tem dias que habitamos a tapera. Tem dias que brilhamos ao sol.

Por isso gosto dos caminhos do outono, por isso me dei a travessia.

Gosto dessas horas de distância e dispersão.

Escuto a conversa do pássaro no galho invisível.

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*O Gosto Solitário do Orvalho. Matsuo Bashô. Antologia poética. Versões de Jorge de Sousa Braga. Editora Assírio e Alvim, Lisboa, 1986.
O peixe da boca vermelha:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/08/o-peixe-da-boca-vermelha.html