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segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Era uma vez uma rua...

Jorge Finatto

Rio Guaíba. photo: jfinatto



UM DIA EU FUI EMBORA da Rua São João.
Mas a Rua São João não foi embora de mim.
Caí de cara no mundo.
Vi coisas de cortar a alma e secar o coração.
Me tornei sobrevivente num país que agoniza.
As esperanças viraram cinza, o tempo ruiu sobre mim.
Um dia eu fui embora, mas trago comigo uma ilha de sol:
Nunca me despedi do menino que eu fui na Rua São João.


segunda-feira, 30 de maio de 2016

O vendedor de picolé

Jorge Finatto
 
ilustração: Maria Machiavelli

Tinha 12 anos quando encontrei um modo de arrumar dinheiro pra comprar picolé. Foi no verão, período de férias escolares. Fiz o que os meninos pobres da rua, como eu, faziam: tornei-me vendedor de picolé. 
 
Havia uma pequena fábrica de gelados a poucas quadras de casa. O produto era bom, o negócio fez sucesso e se expandiu. A proprietária comprou um sobrado pra diversificar e aumentar a produção. 
 
A venda era feita nas ruas por vendedores ambulantes, em carrinhos refrigerados ou em caixas de isopor. Os maiores levavam os carrinhos e os menores, as caixas com tira de couro pra pendurar no ombro.
 
Esse foi o meu primeiro emprego. Caminhar horas a fio debaixo do astro-rei em pleno calor de janeiro era o de menos. O difícil era ter que dizer, bem alto, "olha o picolé", nas esquinas e na frente das casas. Fazia  isso com grande constrangimento. A timidez me atarantava.

Mas o trabalho durou só três semanas. O salário era tão miserável que desisti. Mal dava pra comprar dois ou três gelados por caixa vendida. Não compensava a sola do sapato, a sede, o suor, o cansaço.

Cheguei a ficar devendo uns trocos pra dona do negócio (sempre de cara feia, acho que sua boca nunca conheceu um sorriso). Devi porque comi picolés além da conta, durante o trabalho; e também porque vendi fiado e não me pagaram. Incauto vendedor! Pra quitar o débito com a patroa, trabalhei uma semana sem nada receber.

Não precisei de grandes teorias para aprender, a partir de então, que a vida do trabalhador é regida pela lei da selva. Os mais fortes devoram os mais fracos na relação capital e trabalho. E não há picolé que adoce essa exploração.
  

segunda-feira, 9 de março de 2015

O prisioneiro da Ilha de Patmos

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto

 
A rua São João era a nossa Ilha de Patmos. Ali todos eram prisioneiros de um tempo e de um lugar e o nosso destino era comum: afundar no esquecimento.

Exilados do mundo, todos alimentavam o sonho secreto de um dia fugir. Fugir para sempre, para qualquer lugar, ainda que fosse o último ato da vida.

A família espiritual de A eram os livros. Os poucos que havia na casa, quando era menino, e depois os outros, que foi amealhando feito formiga, migalha a migalha, com tenacidade e alumbramento.

A família dos livros tinha uma vantagem. Nenhum de seus membros morria ou desaparecia como acontecia com freqüência com os familiares de carne  e osso.

Os livros retirados da biblioteca pública, por empréstimo, eram parentes longínquos. Traziam a aura de quem passou por muitas casas, iluminando solidões diurnas e noturnas. Guardavam o cheiro misturado dos ambientes que tinham freqüentado.

Na casa antiga, havia muitos silêncios. Vultos moviam-se calados. Um relógio velho de parede tentava acompanhar a passagem do tempo, mas nele as horas tinham enlouquecido.

De uma espécie particular de eternidade eram feitos os livros.

O mundo de tinta e papel espantava os fantasmas que habitavam o sótão. O menino sabia que, mais dia, menos dia, acabaria só, como todos.
 
Havia um gato na casa, porque gatos gostam de histórias assombradas. No porão gelado e sombrio, coisas velhas eram esquecidas.

Um retrato de Getúlio Vargas, "o pai dos pobres", ocupava o centro da parede da sala de jantar.

A janela do quarto de dormir olhava o mundo e o mundo era um lugar muito distante.

João era o nome do apóstolo que teve as visões na Ilha de Patmos, no mar Egeu, onde esteve exilado por falar de Deus e dar testemunho de Jesus. Nela escreveu o livro bíblico Apocalipse (Revelação).

A rua São João era a ilha do nosso apocalipse.

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Texto revisto, publicado no blogue em 27, out, 2011.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Quem seca um rio?

Jorge Adelar Finatto
jfinatto@terra.com.br 


 
A lágrima escorreu, borrou a paisagem. O tempo das despedidas. Ele tinha seis anos e não estava preparado pra ir embora de Passo dos Ausentes.

A serra é azul e o menino é feliz.

Limpou o vidro da janela com a manga do casaco.

O trem começou a caminhar, lenta, lentamente, sobre os trilhos de prata. A estação ficou pra trás, os plátanos, a torre da igreja, os amigos, a casa, a vidinha.

O avô acenou na gare diante do vagão. Mais triste que a noite sem fim que se aproximava.

O rumor do vento nas folhas do pinheiro não dá pra esquecer.

A cidadezinha desapareceu.

Ele tirou os óculos (já usava as lentes de fundo de garrafa) e secou os olhos. Mas os olhos não secaram. Quem seca um rio?

O sol caía atrás dos flocos rosados de nuvens do outro lado das montanhas. Uma espécie de calabouço sem nenhuma fresta de claridade se inaugurava dentro de seu peito.

O menino desapareceu naquele fim de tarde dentro do trem noturno. Os olhos não secaram. Quem seca um rio? Chorou em silêncio até adormecer. Sumiu na paisagem rumo ao profundo, frio e traiçoeiro caleidoscópio da cidade grande.

A vida nunca mais seria a mesma.

No entanto, a vida estava apenas começando. Cinqüenta anos depois, ele recorda aquela tarde-noite irreparável nos Campos de Cima do Esquecimento. Mas nesse momento está a salvo ao lado dos amigos, no Café dos Ausentes, na estação de trem abandonada.

Estão todos ouvindo o bandoneón de Juan Niebla na tarde de outono com suas inumeráveis cores.

A velha casa de madeira está outra vez habitada por ele, suas recordações e a família que construiu. Os fantasmas conversam, jogam xadrez e bebem café preto sem açúcar no sótão.

Ali na vetusta estação de trem, com os amigos no café, ele descobre que a memória é sua Arca de Noé. Nela o mundo do menino está a salvo do desaparecimento.

As lentes de fundo de garrafa só têm olhos para a Estação Esperança, na transparência da tarde de outono.
 

domingo, 30 de março de 2014

O prisioneiro da Ilha de Patmos

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto

 
A rua São João era a nossa Ilha de Patmos. Ali todos eram prisioneiros de um tempo e de um lugar e o nosso destino era comum: afundar no esquecimento.

Exilados do mundo, todos alimentavam o sonho secreto de um dia fugir. Fugir para sempre, para qualquer lugar, ainda que fosse o último ato da vida.

A família espiritual de A eram os livros. Os poucos que havia na casa, quando era menino, e depois os outros, que foi amealhando feito formiga, migalha a migalha, com tenacidade e alumbramento.

A família dos livros tinha uma vantagem. Nenhum de seus membros morria ou desaparecia como acontecia com frequência com os familiares de carne  osso.

Os livros retirados da biblioteca pública, por empréstimo, eram parentes longínquos. Traziam a aura de quem passou por muitas casas, iluminando solidões diurnas e noturnas. Guardavam o cheiro misturado dos ambientes que tinham freqüentado.

Na casa antiga, havia muitos silêncios. Vultos moviam-se calados. Um relógio velho de parede tentava acompanhar a passagem do tempo, mas nele as horas tinham enlouquecido.

De uma espécie particular de eternidade eram feitos os livros.

O mundo de tinta e papel espantava os fantasmas que habitavam o sótão. O menino sabia que, mais dia, menos dia, acabaria só, como todos.
 
Havia um gato na casa, porque gatos gostam de histórias assombradas. No porão gelado e sombrio, coisas velhas eram esquecidas.

Um retrato de Getúlio Vargas, "o pai dos pobres", ocupava o centro da parede da sala de jantar.

A janela do quarto de dormir olhava o mundo e o mundo era um lugar muito distante.

João era o nome do apóstolo que teve as visões na Ilha de Patmos, no mar Egeu, onde esteve exilado por falar de Deus e dar testemunho de Jesus. Nela escreveu o livro bíblico Apocalipse (Revelação).

A rua São João era a ilha do nosso apocalipse.


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Texto revisto, publicado no blogue em 27, out, 2011.