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quarta-feira, 25 de março de 2015

Os passos no telhado

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
A casa estava sempre lá, no mesmo lugar, a qualquer hora a gente podia voltar. Os mais velhos eram os guardiões do templo cujo maior tesouro era o sentimento. Eles eram os troncos velhos da ponte que ligava o passado com o presente e o depois.
 
O tio Alberto retornou depois de 40 anos vivendo noutros países, noutros planetas. Trouxe baús cheios de quinquilharias e livros em línguas estranhas. Trouxe principalmente muita solidão no semblante calado. 
 
Foi habitar no sótão da casa, dizia que a mansarda era o melhor lugar pra se ver o mundo. Quase não descia de lá. Abria a porta no alto da escada estreita apenas pra receber e devolver as coisas indispensáveis.

- O mundo só é suportável aqui em cima. Vivo em solidão mas quero a companhia do andar de baixo. Amo todos vocês.

E lá ficou com seus livros velhos e uma luneta holandesa do início do século XX.

De raro em raro, quando a porta se abria, a gente corria pra ver a cabeça branca do tio Alberto. Às vezes nos abanava e voltava a se fechar no seu mundo.

Em certas noites, ouvíamos barulho de passos e vozes no telhado. A vó dizia que não precisava ter medo, era só o nosso tio esticando as pernas e conversando com seres que só ele via.
 
O aroma dos cravos (havia cravos) e das rosas perfumava o entorno da casa. Tinha também o cheiro amarelo das margaridas e o branco dos lírios.
 
Era bom dormir olhando para o teto alto de madeira, na certeza de que o dia ia amanhecer na voz do galo, e de que tudo seguiria como sempre.

No inverno as nuvens raspavam nos galhos altos dos pinheiros.

Nos dias de chuva a casa recendia a pão, doces e bolos produzidos no fogão a lenha.
 
Viver era eterno. Todos os córregos e pássaros cantavam para iluminar a nossa vida. 
 
A saudade que estou sentindo agora não é uma coisa triste.

Tudo está vivo dentro de mim.
 
Estou só na madrugada de outono. Mas escuto passos no telhado.
  

terça-feira, 10 de junho de 2014

O homem que roubou o sol

Jorge Adelar Finatto

pintura: Maria Machiavelli


Um homem de coração triste pode entristecer a vida de muita gente.
O sol está preso no sótão da casa do homem sem esperança.

Em uma manhã de infinita tristeza, ele ergueu os braços, apanhou o sol com as duas mãos, como se fosse uma laranja, e o levou para o trevoso lugar. Desde então, não mais o devolveu para a rua onde mora.
 
- Nunca, nunca mais vou soltar o sol -, disse a um grupo de meninos e meninas que foram até a frente de sua porta pedir a libertação do astro-rei.

- Ninguém mais vai ver a luz nem receber calor nessa rua.
 
À noite, os vizinhos observam a estranha claridade que escapa pela claraboia. Raios iridescentes giram entre si, perpassam o espaço e vão em direção ao vazio do universo.

Nenhum, no entanto, fica para iluminar aquele pequeno lugar mergulhado na sombra.
 
O homem triste tem uma pedra enorme, pesada e fria, no coração. Uma lápide com uma inscrição feita numa estranha, obscura língua que ninguém entende. Ele não consegue mais falar nem sentir.

O roubo do sol foi um ato de desespero, de revolta com coisas más que aconteceram na sua vida. Ao agir dessa maneira, privou a rua e seus habitantes de luz, calor e alegria.
 
É preciso trazer urgentemente de volta o homem triste para o convívio da rua, antes que tudo em volta dele congele, antes que os corações esfriem, antes que desapareça a vida daquele lugar.
 
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Pintura: Maria Machiavelli, artista plástica em Passo dos Ausentes.
Texto revisto, publicado antes em 12 de setembro, 2011.