terça-feira, 30 de abril de 2013

A vida vale um caco

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto

Existe beleza nos cacos de uma xícara quebrada, agora eu sei.

Juntei os restos de louça espalhados no chão do escritório, acondicionei-os em folhas de jornal, preparei o material para descartar no lixo seco. Desci, coloquei tudo no recipiente próprio. Depois subi a escada Santos Dumont e voltei ao trabalho.
Enquanto labutava, percebi num canto da sala uma reminiscência da xícara em forma de lasca colorida.

As cores e o formato daquele caco me chamaram a atenção. Eu descobri que havia beleza naquilo. Fui em seguida até o lixo e resgatei os outros pedaços.

photo: j.finatto
O objeto xícara havia se partido acidentalmente ao cair no chão. Deu origem a vários outros miniobjetos com formas, cores e volumes próprios.

No ato trágico de morrer da xícara-mãe, os fragmentos renasceram individualmente, dando inicio a novas "vidas". No ato de nascer, receberam a marca intransferível da solidão que caracteriza as coisas e os seres deste mundo.

Sei, por experiência de quem é astrônomo do farelo e observador de miudezas, que não existem outras lascas iguais a essas.

photo: j.finatto


São entes novos no universo. Estão aí com sua intransferível verdade, têm uma face própria, uma maneira de ser, uma sombra, ocupam um certo espaço, a claridade os ilumina todos as manhãs, existem.
A asa da xícara ficou incólume, contudo não é mais uma asa. Aderente à superfície convexa, lembra mais uma orelha.

Um orelha que escuta talvez a voz de uma boca ausente, de uma canção impossível.

Libertou-se, a asa, da antiga e rígida situação funcional. Ninguém mais poderá tratá-la ou esperar dela que se comporte como se singela asa fosse. É uma nova entidade, um corpo mutante com uma estética particular. Perdeu a natureza acessória com que veio à existência.

photo: j.finatto

De certo modo, os fragmentos estão mais vivos do que quando formavam um todo orgânico e fechado. Aproveitaram a chance, gozam agora de uma liberdade que antes não conheciam.

O que aconteceu com os cacos foi um reviver após a morte súbita da mãe-xícara. Estão agora soltos no mundo, rebentos recém paridos, cada um a seu jeito. Como todos os seres, correm riscos e o futuro lhes é incerto. O preço de estar vivo.
Olho os restos no canto da escrivaninha. São parecidos com tudo que é vivente. Aprenderam na pele que, às vezes, cair um baita tombo, bater com a cara no chão, ficar reduzido a estilhaços, pode ser o caminho para um novo, jamais imaginado, belo e colorido recomeço.

domingo, 28 de abril de 2013

Maestro Antonio Brasileiro, entre o Guaíba e Ipanema

Jorge Adelar Finatto
 

photo: Tom Jobim

Tom Jobim (1927 - 1994). Músico, compositor genial, cidadão do mundo. Amante das palavras, amigo das pessoas, dos bichos, das plantas. Deixou um legado de superação, amor à vida e à música.
 
Quando ouvimos a música de Jobim, quando lemos seu verso e sua prosa, estamos mais perto de algo parecido com felicidade.
 
O que pouca gente sabe é que o maestro era filho de um gaúcho de São Gabriel, Jorge Jobim, e que por pouco não nasceu em Porto Alegre.


O coração do homem que nunca mais voltará resiste em silêncio. O navio avança nas águas do Guaíba em direção à Lagoa dos Patos. Jorge Jobim perde de vista o contorno de Porto Alegre.

A figura melancólica recorta-se na memória da tarde de inverno. O grande mar de água doce (Mar de Dentro) remete Porto Alegre ao Atlântico. O Rio de Janeiro é o destino onde irá concluir o curso de Direito.

O tempo voa longe. No dia do futuro, alguém abre a gaveta. A claridade ilumina velhos papéis de Jorge Jobim. Eis ali o poeta e sua palavra.
 
photo: j.finatto. cais antigo de Porto Alegre

Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim nasceu em 25 de janeiro de 1927, no Rio de Janeiro, filho de Nilza Brasileiro de Almeida, carioca, professora, e de Jorge de Oliveira Jobim, gaúcho de São Gabriel, bacharel em Direito que teve passagem pela carreira diplomática. O casal se conheceu e casou em Porto Alegre, onde o pai de Nilza, Azor, servia como capitão do exército.

Por pouco o menino Tom não veio ao mundo na capital do Rio Grande do Sul. A família regressou antes para o Rio.

O desejo de Nilza era morar perto de seus familiares. Isso fez com que o jovem casal não ficasse no sul. No meio materno foi criado Tom-Tom, apelido dado pela única irmã, Helena Jobim.

O guri criou-se entre as montanhas e o mar do Rio de Janeiro. Os longos passeios pela mata e pela praia, as pescarias, o contato com bichos e plantas fizeram nascer o interesse e a estima pelas coisas da natureza. Tornou-se não apenas profundo conhecedor como defensor do meio ambiente.

Antonio Carlos teve que reinventar o pai, que perdeu aos oito anos. Acariciou suas mãos ausentes ao piano (alugado pela mãe), nas antigas manhãs da casa de Ipanema.

O piano cantou a canção paterna: a nostalgia do sul, a saudade da família, dos amigos, do amor que se perdeu.

Era preciso calar o esquecimento.
 
Entre os professores de música que o maestro teve, está o alemão naturalizado brasileiro Hans-Joachim Koellreutter, que lhe ensinou a transposição das fronteiras que separam a música erudita da popular. Alguns mestres o inspiraram: Debussy, Bach, Stravinsky, Villa-Lobos.

Jorge Jobim e os filhos Antonio Carlos e Helena.
Fonte: Arquivo Jobim Music 
 
Amoroso das palavras, Tom Jobim foi um leitor dedicado. Cultivou, entre tantos, João Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Nas letras e textos que escreveu, percebe-se o artesão meticuloso do verbo.

A obra de Tom Jobim constrói-se na esfera da genialidade, unindo palavra e melodia. Soube como poucos aliar talento a muito trabalho. As composições que nos legou transcendem as ensolaradas cercanias de Ipanema: são patrimônio espiritual da humanidade.

Águas de março, Garota de Ipanema, Lígia, Dindi, Samba de uma nota só, Chovendo na roseira e Samba do avião são algumas das inesquecíveis canções que integram a sua produção.

Um dos criadores da Bossa Nova, o maestro foi também um dos principais nomes da música mundial no século XX.

A descoberta da obra jobiniana nos leva a um mundo de delicadezas, antecipa-nos a maravilha. 

Antonio Brasileiro parece dizer-nos que um dia encontraremos o amor. E que aqui poderá ser outra vez o paraíso, se a natureza não virar jardim calcinado, se nos tratarmos como irmãos nesse planeta cada vez mais frágil e pequeno.

 
A vida era por um momento.
Não era dada. Era emprestada.
Tudo é testamento.
                                          Antonio Carlos Jobim*

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Foto: Antonio Carlos Jobim. Fonte: Acervo do Instituto Antonio Carlos Jobim: http://www.jobim.org
Texto publicado originalmente no blog em 05 de junho, 2010.
*Palavras finais de ACJ na apresentação do disco Urubu, 1976.
Leia texto de Helena Jobim, irmã de Tom:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2011/04/o-livro-na-praca.html
 

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Zeca Afonso

Jorge Adelar Finatto

 


Grândola, vila morena
terra da fraternidade
o povo é quem mais ordena
dentro de ti, ó cidade*

Uma tarde de inverno europeu em 2002, de passagem por Coimbra, onde estava para conversar com estudantes da Faculdade de Letras, ouvia a chuva bater na janela do quarto do Hotel Botânico. Meu espírito andava às voltas com António Nobre, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Eugénio de Andrade e o Mondego, esse rio que me traz saudades do Guaíba.

Em Porto Alegre, o Guaíba me dói porque não me deixa esquecer o Mondego.

A tarde já caminhava para a noitinha quando liguei a televisão na RTP (Rádio e Televisão de Portugal). Foi quando ouvi, pela primeira vez, falar dele. No dia seguinte, fui a uma loja e comprei uma caixa com dois discos.

O que há no canto do poeta, compositor e cantor português José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos - o Zeca Afonso - que faz o coração da gente bater fundo e claro?

Dentro de ti, ó cidade
o povo é quem mais ordena
terra da fraternidade
Grândola, vila morena

Que emoção é esta que nos convida a sair pelas ruas de mãos dadas?

De que profundeza brota essa vaga azul de sentimento que se alteia no horizonte e depois invade a cidade, distribuindo esperança em meio ao feroz egoísmo?

Em cada palavra que pronuncia, no canto geral que celebra a vida, Zeca Afonso fala-nos da gente, da terra, do compromisso com o justo. A voz que sincera se levanta vem de uma alma sensível, sedenta de justiça, harmonia entre os homens e beleza. Vem das origens de um povo esta voz forjada no sonho e na luta.

Zeca Afonso nasceu em Aveiro a 2 de agosto de 1929, filho de pai juiz e mãe professora primária, com os quais viveu em certos períodos, tendo, em outros, ficado aos cuidados de tios e tias. Morreu em Setúbal, em 23 de fevereiro de 1987.

Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
terra da fraternidade

Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
em cada rosto igualdade
o povo é quem mais ordena

O canto de Zeca Afonso, comprometido com a fraternidade, simples e rico, oferece abrigo e consolo a pessoas oprimidas do mundo inteiro. Não por acaso a belíssima Grândola, Vila Morena, é uma canção-símbolo dos novos tempos nascidos em Portugal com o movimento que se cristalizou na Revolução dos Cravos, a 25 de abril de 1974, que levou democracia ao país depois da longa escuridão da ditadura.

Nós do Brasil precisamos conhecer a obra do Zeca Afonso.

À sombra duma azinheira
que já não sabia a idade

jurei ter por companheira
Grândola, a tua vontade

Grândola, a tua vontade
jurei ter por companheira
à sombra duma azinheira
que já não sabia a idade

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* Grândola, Vila Morena, letra e música de José Afonso.
Foto: José Afonso. Fonte: imagem do Google. O crédito será dado tão logo tenha informação sobre o autor. Texto publicado em 16 de junho de 2011.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Série Retratos 17 (fria manhã de outono)




photo: j.finatto



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photo: Jorge Adelar Finatto, 24 de abril, 2013
Fria manhã de outono. Passo dos Ausentes



quarta-feira, 24 de abril de 2013

Série Retratos 16 (outono em Passo dos Ausentes)



 
 
 
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photo: Jorge Adelar Finatto, 23 de abril, 2013
Outono em Passo dos Ausentes
Pedidos de reprodução podem ser feitos ao autor pelo e-mail
j.finatto@terra.com.br
 

terça-feira, 23 de abril de 2013

Os gatos e o medo de voar

Jorge Adelar Finatto

 
ilustração: Maria Machiavelli


Dizem que os gatos pressentem quando o dono vai morrer.

Desde que Nefelindo Acquaviva me convidou pra fazer com ele o vôo inaugural do dirigível O Invencido (que construiu no galpão do quintal de sua casa, como todas as estrovengas voadoras que criou) meu gato Pituca não saiu mais de perto de mim.
 
Nefelindo Acquaviva é considerado o pioneiro da aviação em Passo dos Ausentes. Um doido com alma de Ícaro.

O que seria do mundo sem os loucos, ele costuma perguntar, apontando ambas as mãos para o peito. E ele mesmo responde: ainda andaríamos de quatro e moraríamos em grutas úmidas, malcheirosas e povoadas de morcegos.

Tudo que alguma vez voou nesses céus dos Campos de Cima do Esquecimento passou pelas mãos de Acquaviva. Da mesma forma, todas as geringonças que se espatifaram no chão também foram obra dele. Ele coleciona 22 quedas com seus objetos voadores, não incluídos aí os tombos na fase de decolagem, mais de trinta.¹ 
 
Sim, eu temo pela minha vida. Como temi das outras vezes em que concordei em acompanhá-lo em vôos abissais pelo Vale do Olhar. Sou amigo do nosso Santos Dumont e é difícil dizer não a um amigo.

A vontade de voar é tão antiga quanto a presença do ser humano neste mundo de Deus.

Se o Criador não nos deu asas, deu-nos pra compensar a capacidade de sonhar e é o que fazemos na maior parte do tempo, do contrário a vida seria insuportável.

Da última vez em que saí pelos ares com Acquaviva, estávamos a bordo do Besouro Voador, espécie de motociclo com São Cristóvão ao lado, onde eu estava, e duas pequenas asas. O aparelho começou a soltar vários estouros em pleno vôo, a 100 metros de altitude, até que parou de funcionar.

Caímos em queda oblíqua em direção à igreja. Cerca de meio minuto depois, arrebentamos e atravessamos o vitral principal. Desabamos na frente do altar, diante do padre, em plena missa das seis da tarde.

O acidente causou um sério desentendimento entre a Igreja Católica e a Aviação em Passo dos Ausentes, que culminou com o rompimento de relações.

Há muito que Nefelindo e o padre Krauss trocam farpas por questões filosóficas e em razão de um outro acidente aéreo que quebrou a torre da igreja.²  O padre acha que os ataques são propositais, parte de um plano de Acquaviva para acabar com a igreja.

Por milagre, não morremos ali mesmo, no meio dos cacos coloridos do vitral. Impossível não lembrar as fortes palavras que o senhor pároco nos dirigiu na ocasião, impublicáveis neste espaço.

A questão é: como posso dizer não a Acquaviva sem magoá-lo, sem ferir de morte seu sonho de voar no mais pesado que o ar? Por outro lado, como dizer sim, sem morrer logo em seguida?

A única pessoa, além de mim, que sempre aceitou voar com ele é Juan Niebla, o músico cego do bandoneón, que toca na estação de trem abandonada. Mas Niebla está com 88 anos. 
 
Em janeiro último, Acquaviva terminou de construir O Invencido, utilizando o motor de seu antiquíssimo fusca. Quando entrei no galpão naquela manhã de sábado, ele tomava chimarrão sentado cabisbaixo sobre um pelego, encostado na carroça que também faz as vezes de cama.Vestia o gasto macacão azul-marinho e as botas pretas de cano longo.

A negra cabeleira escorrida e o grosso bigode nem de longe denunciam o jovial homem de 70 anos.

Ao me ver, seu rosto se iluminou e ele abriu um sorriso. Veio lépido na minha direção, me pegou pelo braço e disse que tinha algo para mostrar lá no Ninho do Esqueleto. Com emoção, retirou o enorme lençol que cobria o dirigível.

- Faltam poucos dias pra ficar pronto, só mais uns detalhes. Olha a maravilha. Nunca ninguém construiu algo assim. Um dirigível compacto, pra duas pessoas, com seis pequenas janelas pra admirar tudo lá de cima. Tem um beliche, uma geladeirinha, um minifoguareiro, um armarinho, um mínúsculo banheiro e o painel com os instrumentos de navegação, entre os quais aquele telescópio pra ver as estrelas. Não só chegaremos a Porto Alegre desta vez como vamos até o mar. Prepare-se, partiremos em meados de maio. O dia glorioso se aproxima.

O Pituca não sai mais do meu lado. Onde quer que eu vá o gato vem atrás. Mia de um jeito estranho e insistente, quase não me deixa trabalhar no escritório.

Desconfio que ao invés de uma placa comemorativa, no dia da glória vamos ganhar um epitáfio: Aqui jazem dois idiotas, gravado na lápide do túmulo que reunirá o que sobrou de nossos corpos, se é que alguma coisa vai restar depois do desastre anunciado.

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¹Nefelindo e o aeroplano:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/05/nefelindo-e-o-aeroplano.html

²A queda do Águia Negra: 
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/09/queda-do-aguia-negra.html
 

domingo, 21 de abril de 2013

O senhor do tempo

Jorge Adelar Finatto
 

ilustração: Maria Machiavelli
 

De antigo senhor das horas, o meu velho relógio virou vítima do tempo e hoje sofre com longos intervalos de ausência.

É um relógio que me acompanha desde o século passado. É um objeto austero e simples. Não existem outros como ele à venda. É um dos últimos exemplares vivos de sua geração, se não for o último.
 
Registrou com precisão a passagem do tempo durante muitos e muitos anos. Esse mesmo tempo agora volta-se contra ele.
 
O calendário numérico funciona às vezes, e o escrito perdeu-se na bruma. Esquece em que dia da semana estamos, não sabe bem se é segunda, sábado ou domingo. A passagem das horas confunde-lhe o mecanismo e, por vezes, ele pára sem saber o que fazer, como alguém que perdeu a memória numa esquina, de repente.
 
Em suma, o relógio que por séculos me guiou na mata escura dos dias precisa agora ser guiado.
 
Não tenho coragem de separar-me dele, jamais o faria e me recuso a sequer falar no assunto. Contudo, sem que ele soubesse, tive outros relógios, mais funcionais e modernos. Nenhum, porém, conseguiu substituí-lo no meu afeto. 
 
Toda vez que abria a gaveta, encontrava-o calado, sem nada reclamar, olhando as paredes internas do cubículo sombrio. Ao perceber minha presença, olhava-me nos olhos como quem se coloca à disposição para o trabalho e a luta. Um companheiro valente e digno.

Resgatei-o agora das trevas.
 
Se ele é hoje apenas a lembrança do relógio que foi um dia, por outro lado não posso negar-lhe reconhecimento pelos serviços prestados. Além disso, atravessamos momentos difíceis juntos, vivemos muitas situações complicadas e dolorosas nessa vida, coisas que atormentam o pensamento e queimam o coração. E às vezes fomos felizes também.
  
Carregar o tempo nas entranhas, como ele sempre fez, segundo a segundo, ano após ano, sem descanso, num giro interminável e monótono, é ofício dos piores.
 
Mandei-o à oficina já por três vezes, mas não resolveu o problema. Decidi poupá-lo das internações inúteis no hospital dos relógios, pois observei que o magoam pelo ar de tristeza com que retorna a casa.
 
Não sou mais escravo do tempo. Eu faço o que quero do meu tempo. (Por favor, raro leitor, não se iluda: essa disponibilidade é tão sedutora quanto terrível). 
 
Trago o antigo relógio no pulso outra vez. Faço-lhe ajustes manuais e tocamos a vida. Quando é necessário, em razão de compromissos e viagens longas, levo um outro, no bolso ou na mala, sem que ele perceba. E assim levamos o nosso barco.
  

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Memória nas ruas de Paris

Jorge Adelar Finatto

 
"Em memória das crianças, alunos dessa escola [Lycée Henri IV], deportadas de 1942 a 1944 porque nasceram judias, vítimas inocentes da barbárie nazista, com a cumplicidade ativa do governo de Vichy. Elas foram exterminadas nos campos da morte. Não as esquecemos jamais". (tradução e photo: j.finatto)


Paris, novembro, 2011. Uma das coisas que admiro nos franceses é o respeito que têm pela memória histórica. Acredito que a maioria dos cidadãos deste país cultua a verdade como valor essencial, o que explica muitas das conquistas da civilização aqui ocorridas.

Em Paris, a cada passo encontramos placas informativas nas vias publicas. Elas contam coisas boas e ruins que aconteceram na cidade. Há um apreço pela transparência que ajuda a formar as consciências.

Não se trata de uma memória seletiva, hipócrita.

Numa escola de crianças, no Quartier Latin, há uma placa na parede ao lado da porta, voltada para a calçada, informando que, durante a ocupação nazista, muitos meninos e meninas judeus daquele colégio foram levados para os campos de concentração dos alemães, com a concordância e participação das autoridades francesas, sendo depois assassinados (foto).

Na esquina dos bulevares Saint-Michel e Saint Germain, uma outra placa informa que, naquele local, no dia 19 de agosto de 1944, Bottine Robert foi morto pelos nazistas por lutar pela libertação de Paris.

Naquele mês, Hitler ordenara a destruição completa da cidade antes de uma retirada das tropas alemãs diante do avanço das forças francesas de Charles de Gaulle e dos aliados. O comandante alemão em Paris, general Von Choltitz, no entanto, negou-se a cumprir a insana determinação, e a cidade foi poupada.

photo: j.finatto
 
São fatos diferentes dentro de um mesmo contexto histórico, revelados nas ruas da cidade, à luz do sol ou da lua, para quem quiser saber. É importante que assim seja, que todos saibam e sintam, para que essas coisas nunca mais voltem a acontecer.

Que a história contada e sabida sirva de farol dentro do negrume do nosso tempo, em que a crise mundial testa diariamente a capacidade dos povos em solidarizar-se para melhorar a vida das pessoas.
 
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Post revisto, publicado anteriormente em 22 de novembro, 2011.
 

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Calle de los suspiros

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto


De não ver os olhos estão vazios.
De não escutar os ouvidos estão ocos.

Um dia encontrei no mapa aquela cidade ao sul.
Um lugar que nasceu num tempo muito antigo.
Nela havia uma rua chamada Calle de los suspiros.
Fui até lá como atrás de um segredo.

A rua dos suspiros está povoada de passos perdidos.
Os fantasmas ocupam as casas coloniais.

Quem mora na rua dos suspiros?

A moça da janela olha as buganvílias.
O homem que não sai de casa vê seres incorpóreos nos telhados.
A luz das luminárias é amarelo calmo.

À noite se ouve nas pedras a batida de cascos de cavalos que não existem mais.

A rua dos suspiros é um camafeu pregado no oblívio.

Os ventos se reúnem na calle antes de sair a galope pelo mundo.

A dor envelheceu nesta rua.
Neste lugar, todos sofrem para dentro.

Há um salão de baile desabitado com mesas no escuro.
A orquestra foi embora carregando a música e os casais que dançavam.

A rua dos suspiros habita um retrato caído no tempo.

Quem chora a essa hora na calle deserta?

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Foto: J. Finatto
Imagem de Colonia del Sacramento, Uruguai.
Texto publicado no blog em 18/12/2010.
 

terça-feira, 16 de abril de 2013

As massas polares

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 

A solidão é um negro espantalho que habita os corações.

Agora chegaram as massas de ar polar. Aqui nos Campos de Cima do Esquecimento é assim: aos primeiros movimentos de violoncelo do outono, o tempo se enregela.

Estava arejando livros antigos sobre a escrivaninha, aproveitando uma réstia de sol que penetrava pela clarabóia*, quando o ar gelado da tarde começou a tomar conta.

As primícias do inverno mandam notícias.

Lá fora os ramos e as folhas perdem viço. Tentei resistir só com a blusa de lã, mas não teve jeito. Resgatei o capote azul-marinho do armário.
 
O frio antecipado traz de volta costumes, reclama providências. Na tarde de domingo, fui até o pinheiro mais robusto do quintal ver se havia caído alguma pinha. Ainda não. As pinhas permanecem penduradas nos verdes galhos, entre grimpas pontiagudas.

Cozinhar pinhão, na chapa do fogão a lenha, é um dos prazeres do frio. 
 
Enquanto olhava a copa da araucária, deu-se que, no profundo azul do céu, passou voando - num vôo suave e elegante -  uma ave de longo pescoço e asas de larga envergadura. Era vôo alto, coisa de duzentos metros, em direção ao poente. Senti gratidão.

As andorinhas já não voam por estas paragens. Partiram em arribação para o Norte, em busca de dias cálidos. Neste canto do planeta, a circulação das seivas diminuiu.

As massas polares vêm me lembrar também que faltam abraços no mundo. Faz muito frio nas almas.

Vertem lágrimas nos olhos das estátuas nas praças. 

Mas alguns ainda são capazes do humano gesto. Trazem o sol dentro de si. Esses herdarão a primavera. 
 
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*Nos textos do blog, continuo usando a ortografia atual, e não a do acordo ortográfico, conforme o Decreto 7.875, de 27/12/2012, que postergou a obrigatoriedade das novas regras, no Brasil, para 1º de janeiro de 2016. Até lá, ambas as nornas estão em vigor.
Sobre o assunto:
O acordo ortográfico fazendo água:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/03/o-acordo-ortografico-fazendo-agua.html
 

segunda-feira, 15 de abril de 2013

A boca oca

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 


a
li
te
ra
tu
ra
é
um
belo
caminho
mas
porém
contudo
sem
fim                        

(infinitos
 livros
 vogam
 nas estantes)

eu
finito                               
                                     
(silêncio
 da
 boca
 oca)

um
de
nós
terá
de
se
adaptar                
           
 

sábado, 13 de abril de 2013

Efêmera canoa

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Canoa no Guaíba
 

Diante de Porto Alegre, atravessa lenta e quase invisível uma canoa.

Vista do continente, parece uma figura saída de um velho livro de fotografias. Recordação de um passado distante.

Observo-a deslizando no rio, em mansa e agonizante viagem em direção ao crepúsculo.

O homem atrás do peixe e do repouso.

O pescador e o peixe à sombra da cidade desolada.

O observador, na beira do rio, alimenta a ilusão de beleza e permanência do instante.

O olho faminto registra o calado movimento, a passagem da canoa em seu delicado itinerário.

Nenhuma imagem é tão bela como a cidade espelhada no seu rio.

A canoa, a cidade, o homem, o peixe, habitam o efêmero.

Todos rumo ao oblívio.

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Texto revisto, publicado antes em 24, fevereiro, 2012.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Cinema de rua

O Cavaleiro da Bandana Escarlate



Este é um blog primitivo. Se o leitor observar, notará vestígios de textos escritos a caneta em guardanapo de papel. Me disseram que o autor desta página pode ser visto em cafés, lendo e rabiscando coisas. Essas anotações ele depois datilografa no computador. O editor do blog é do tempo da máquina de escrever. Para ele, o notebook nada mais é do que uma vetusta olivetti com luzes dentro. Às vezes, desconfio que, em menino, banhou-se nas águas do Dilúvio.

Este é, portanto, um blog arcaico, com raros e valentes leitores. Aqui não se ouvem músicas nem sons temáticos, não se encontram imagens cambiantes nem filmes. Tudo se passa como no tempo do cinema mudo. O fazedor da página deve amar Charles Chaplin (1889-1977).

Eu não devia ficar me dando ares. Sou convidado a escrever sobre cinema. Mas o fato é que quase não tenho saído de casa. Ultimamente, passo os dias na biblioteca do modesto solar, nas cercanias da praça Maurício Cardoso, em Porto Alegre. Abro as janelas dos fundos pra ver os pássaros no breve jardim. Eles vêm alimentar-se. Sirvo-lhes frutas. Em troca me oferecem o canto, dentro da lógica capitalista de que não existe almoço de graça.

Saio pouco de casa por temperamento e porque tenho medo de assalto. Não tenho mais fôlego pra correr dos bandidos. Fumei durante muito tempo, hoje me falta o ar. Contrariando o médico, ainda fumo charuto escondido, principalmente nos entrementes de uma garrafa de vinho.

Meu físico assaz patético é um convite aos ladrões na via pública.

Uma pequena história: os primeiros filmes que vi foram aqueles do tempo de menino em Passo dos Ausentes. Não havia sala de projeção naquele fim de mundo. Um dia, no final dos anos 1940, o médico da cidade, Dr. Fredolino Lancaster, numa viagem de estudos à Inglaterra, adquiriu um projetor. Na volta, começou a passar filmes na fachada de sua casa, sobre um lençol branco. As famílias levavam cadeiras para assistir às sessões de filmes mudos, que aconteciam no primeiro sábado do mês. Ali conhecemos o grande Carlitos.

Eram as noites mais esperadas do ano. Alberta de Montecalvino se encarregava de distribuir a pipoca. Nefelindo Acquaviva organizava a platéia. Juan Niebla, o músico cego do bandoneón, executava inefáveis melodias, conforme a história se passava na tela e lhe era segredada na concha do ouvido por Heitor dos Crepúsculos.

O miserável andarilho vaga pelo universo com sua surrada roupa, chapéu-coco e bengala. Carlitos mudou nosso modo de sentir e ver a vida. O vagabundo que vive na pobreza, com modos de sobrevivente e dignidade de cavalheiro, nos devolveu alguma coisa que havíamos perdido pelo caminho. Assistir a um filme de Carlitos é receita infalível contra depressão e vontade de morrer.
 
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Foto: Chaplin como o vagabundo Carlitos (11 de abril de 1915). Autoria não informada. Fonte: Wikipédia. Texto publicado em 2 de junho, 2011.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Encher o chapéu com folhas de outono

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 
 
Escolhi esta tarde cinzenta pra caminhar por caminhos de silêncio e folhas arrastadas no chão. O coração quis fugir da sala fechada e da tristeza dos últimos dias.

Fui respirar um pouco do ar transparente de abril. Desapareci entre as árvores na distância como quem desaparece ao penetrar numa luminosa aquarela.
 
O silêncio só era cortado aqui e ali pela voz de algum pássaro ou pelo rumor das folhas dos plátanos na passagem do vento.
 
Uma paisagem fora do tempo. Um território só sentimento. Um instante longe da dor, perambulando nos Campos de Cima do Esquecimento.


photo: j.finatto
 
 
A bordo do chapéu de palha e dos óculos de fundo de garrafa lá me fui, misturado nas cores outonais como quem vai em busca da urgente seiva pra continuar vivo. 
 
Tem dias em que é preciso estancar a ampulheta e sair por aí numa tarde cinzenta.

Encher o chapéu com as folhas do outono, e andar, andar e andar pela aquarela até flutuar sobre os telhados e sobre a copa das nuvens.
  

terça-feira, 9 de abril de 2013

In memoriam

Jorge Adelar Finatto
 

Romeu Marques Ribeiro Filho
Fonte: site Tribunal de Justiça do RS
 

Porque sois uma bruma que aparece por um pouco de tempo e depois desaparece.
      Tiago 4: 14

A morte tece sua teia invisível, implacável. Num instante, retira de perto da gente pessoas que nos são queridas.
 
No meio da tarde de quarta-feira (3 de abril) recebi o telefonema dando conta da morte do colega. Ele havia jogado tênis pela manhã. Depois foi para casa pela hora do almoço. Passou mal e, em seguida, veio a morrer do coração. Não houve tempo pra nada.

Um mero e fatal instante: já não estava mais entre nós. Tinha 57 anos, havia se aposentado há alguns meses como desembargador.

Conhecia-o há mais de 20 anos. Tivemos uma convivência próxima quando, em 1991, trabalhamos na comarca de Rio Grande, cidade ao Sul, porto marítimo. Havia então o hábito do convívio entre colegas, não apenas no foro como em almoços e jantares de fim de semana.
 
Tinha admiração pelo ser humano e pelo juiz que ele era. Em Porto Alegre, a convivência diminuiu. Se o interior aproxima, a grande cidade tem o condão de nos distrair do trato diário. O invencível excesso de trabalho e as mil preocupações facilitam o isolamento e, se não nos damos conta, nos distraímos até de viver.

Algum tempo atrás, nos encontramos pela última vez. Era uma época especialmente difícil pra mim em razão de uma doença grave. Como não havia muito o que dizer, ele veio ao meu encontro, me abraçou e me deu um beijo. O gesto me comoveu, e me deu força.
 
Há momentos na vida em que tudo que mais precisamos é de um abraço e um beijo. Infelizmente, não pude fazer isso por ele.

Vou levar para sempre aquele beijo na minha face, enquanto durar a bruma que também sou.
 
A Romeu Marques Ribeiro Filho,  o beijo e o abraço, saudade e afeto, in memoriam.
 

domingo, 7 de abril de 2013

Nagai Kafu e as histórias da outra margem

Jorge Adelar Finatto
 
 
Nagai Kafu entre mulheres.
Kafu Nagai with strippers @ Asakusa Rokkuza, 1952
Fonte: the setting sun*
 
 
 
Oyuki era uma musa que ressuscitara em meu coração tão cansado imagens de um tempo  distante e saudoso. O manuscrito há tanto tempo abandonado sobre a escrivaninha, não fosse por ela ter aberto seu coração para mim - ou, ao menos, não fosse por eu ter achado que esse coração se me abrira -, já estaria há muito tempo no lixo.¹
                      Nagai Kafu
 
Mais por falta de livros traduzidos do que por outro motivo, no Brasil temos pouco conhecimento da literatura oriental.
 
Mas isso começa a mudar. Na medida em que editoras brasileiras investem na tradução de autores daquele lado do mundo, vamos descobrindo pérolas até aqui escondidas.
 
Ultimamente tenho folheado livros de pintura japonesa, de autores como Hokusai e Hiroshige, e lido textos de escritores japoneses. Não é pouca nem recente a admiração que sinto pela cultura do Japão.
 
Entre os autores daquele país mais conhecidos por aqui, temos Bashô (poesia) e Yasunari Kawabata (prosa, Prêmio Nobel de 1968 ). Mas existem outros de grande qualidade.
 
Acabo de ler Histórias da outra margem, do escritor Nagai Kafu (1879 - 1959), esse da foto com as moças. Trata-se de um livro de 123 páginas, que transita entre a ficção, o diário, a poesia, a crônica e as memórias do autor.

Eu não tinha mais aonde ir. As pessoas que eu queria rever estavam todas mortas.²

O enredo se passa na Tóquio da década de 1930. Tadasu Oe é um escritor de quase 60 anos que vive uma história de amor com uma "mulher da vida", na zona de prostituição do bairro Tamanoi, a leste do rio Sumida.

Oyuki é jovem, pobre, bela, alegre, foi gueixa antes de prostituir-se. Ao conhecer Tadasu Oe, pensa abandonar a zona e casar-se com ele. Oe, por seu turno, encontra na jovem inteligente e cheia de vida um cais cálido onde ancora sua solidão nos fins de tarde.

Ao mesmo tempo em que narra o seu romance, Oe conta detalhes do livro que está escrevendo, no qual um professor aposentado abandona a família. O desenvolvimento é surpreendente.

A história é, em vários aspectos, a história do próprio Nagai Kafu. E de muitos homens e mulheres por este mundo afora.

Histórias da outra margem é um livro com uma curiosa e envolvente construção. Nagai Kafu revela-se um excelente escritor, com uma narrativa que combina técnica esmerada e sensibilidade poética, sem cair em literatices.

Como se isso não bastasse, a obra tem ainda belas ilustrações de Shohachi Kimura (1893 - 1958). Um livro, enfim, pra se ter nas mãos.
 
___________________
 
¹,²Histórias da outra margem, pp. 109, 117. Nagai Kafu, Editora Estação Liberdade, São Paulo, 2013. Tradução do japonês e notas por Andrei Cunha.
 

quinta-feira, 4 de abril de 2013

As Variações Goldberg ( ou o fantasma da casa demolida)

Jorge Adelar Finatto


Variação Goldberg 13. Fonte: Wikipédia
 

Outro dia encontrei um homem sentado no meio-fio, diante de um casarão que estava sendo demolido. Era viúvo, devia ter por volta de 80 anos e chorava discretamente. Parei e perguntei o que havia.

Ele estava bastante desolado. Disse que o único filho e a nora venderam o imóvel onde vivera por mais de 70 anos. No lugar será erguido um edifício de 30 andares. Trocaram a casa por dois apartamentos e pequena soma em dinheiro.

Era um imóvel dos anos 30 do século passado, com amplo quintal, que ele herdou dos pais. Afirmou que não queria passar o resto de seus dias no apartamento do filho, onde morava agora. Não sabia o que fazer, pra onde ir.

Um homem sensível e educado. Acrescentou que não quis opor-se ao negócio, porque o filho passava por um momento difícil financeiramente. Mas lamentou não ter morrido antes da demolição.

O que dizer? Falei apenas que era importante ele manifestar sua aflição para a família. Conversar sobre o problema é a maneira de começar a enfrentá-lo, seja ele qual for.

A vida e o tempo atropelam tudo pela frente. Aquele homem era o fantasma vivo daquela casa.
 
Quando um casarão como esse vem abaixo muitas coisas desmoronam com ele.

As lembranças e sentimentos dos antigos moradores ficam sem o lastro físico que as sustenta.

O velhos fantasmas são jogados no meio da rua. E levarão muito tempo até encontrar outro lugar, se é que não ficarão vagando para sempre pelas ruas vazias da cidade.

Os ninhos dos passarinhos, nas reentrâncias do telhado, vão para o espaço.

As sombras, por sua vez, ficam sem as paredes e o chão para projetar-se como antes. Somem no ar.

Um mundo passa a habitar o invisível.

A memória é talvez a última morada da qual ninguém pode nos expulsar.

Quando cheguei na minha casa, fiquei feliz ao certificar-me de que ainda estava de pé (graças a Deus). Abri as venezianas do escritório, nos fundos, para o ar fresco, as plantas e árvores do pátio.

Botei as Variações Goldberg, para cravo, de Johann Sebastian Bach (1685 - 1750) pra tocar. Tentei salvar o que restava daquele dia.

Posso dizer que a música do João Sebastião cumpriu com rigor, naquele fim de tarde, a finalidade da arte que é consolar os homens na sua difícil passagem (mil variações) pelo mundo. E foi assim que o sublime compositor alemão, que nada tinha a ver com essa história, passou a fazer parte dela.
 

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Ensaio sobre as remotas cores do outono

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 

A trevosa sintaxe da vida.

A escuridão das almas. Fugidias imagens me perseguem. Nos urdimentos do bandoneón, busco outras claridades. Viver longe do abismo, no vero amanhecer, eu busco. Eu, Juan Niebla, venho do neblinoso. (Trouxe o calepino?)

Tenho andado pela vida à procura de luz. Essa que vem de dentro. A escuridão está por toda parte, principalmente nos corações.

As trevas-mestras sustentam o mundo.

Bem-vindo o que vem em paz e desarmado. Os regulamentos da amizade eu cumpro. A minha casa está sempre aberta. Nos enquantos, porque amanhã é escuro. (Anote, por favor.)

A treva foi inaugurada com a luz principial.

Isto é demanda antiga. A velha contradição, o bem contra o mal. A luta imemorial. Mas também o complemento ideal, um não existe sem o outro. Em termos de arriscada filosofia, caminho em beira de precipício.

A maldade não tem sala na minha casa. Sou músico de bandoneón e antiga memória, na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes.

Espero com o ouvido a chegada do invisível trem. Cego desde os 15 anos, sim, senhor. O resto é breu e se dissipa quando toco meu instrumento no velho banco.

A vida é dura? Pra completar, é breve. Somos um ato-falho da criação.

Sou homem de fé, Deus me perdoe. Se vive. Fazemos o que é possível, às vezes muito menos, às vezes pouco mais. Somos ferida em carne viva, vivo sentimento. Vive-se. (Está anotando?)

O certo é que, na vida como na arte, a gente fracassa sempre. Falta aquele grito, aquela palavra certa, aquela revolta, o remate contra a escuridão, aquilo que não foi dito nem lembrado.

O ora-veja na arte só a divina obra tem. Deus é artista caprichoso, no atacado e no miúdo, como outro não há. (Conseguiu escrever?)

Pediram-me um ensaio falado sobre as cores remotas do outono. Mas eu só sei, só vejo isso que sinto.

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Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Admitido por concurso público, ocupa o cargo desde 1940, na estação de trem abandonada da cidade. Tem 88 anos, é cego desde os 15.
Texto revisto, publicado anteriormente em 23 de março, 2011.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Um poeta voando por aí

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto
 

Nascer em Passo dos Ausentes é uma condenação ao degredo eterno. Essa cidade não está sequer no mapa do Rio Grande do Sul.

Somos seres perdidos no vento.
 
A situação em que eu, Filipe Penaverde, me encontro: abismado e solitário, poeta lírico, 21 anos, lúcido e à margem. Trago perplexidades que não querem silenciar.

Quanto mais eu penso mais eu quero sumir desse lugar. Mas ir pra onde? Viver do quê?

A solidão não é um problema geográfico, eu sei. É no interior da alma que ela habita. Estamos sozinhos em toda a parte. Uma espécie de cósmico exílio.
 
Por aqui não existem outros da minha idade, exceto uns quatro ou cinco beirando os trintanos. Os que não estão muito velhos estão de partida para o além.

Um cansaço existencial viver aqui no fim do mundo.

Muitos abandonaram a cidade em busca de um futuro. Mas que futuro? Eu escolhi ficar nesse ambiente demasiado esconso, demasiado ventoso e perdido, porque tenho medo do lado de lá das montanhas. 

Espero que Deus não me abandone nessa lonjura.

Fica perto de quê, alguém pergunta.  De lugar nenhum.

Passo dos Ausentes é um pueblito no frio. Um cochilo do Senhor na criação do mundo.
 
Se ao menos eu tivesse a coragem que me falta. Fico quando quero partir. Morro quando devia viver.

Estou no meu caminho de angústia voando entre abismos. Don Sigofredo de Alcantis, filósofo-mor, diz que é assim mesmo, mas que depois tudo vai melhorar. Quem me dera.

Peneiro o invisível até encontrar a saída luminosa.
 
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Filipe Guilherme Telles Correa dos Santos Penaverde é jovem poeta e secretário da Sociedade Literária, Filosófica, Artística, Histórica, Geográfica, Astronômica, Antropológica, Musical e Antropofágica de Passo dos Ausentes.