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sexta-feira, 3 de março de 2017

Abóboras, figos, galos e infância

Jorge Finatto
 
fotos: jfinatto, 02 de março, 2017

UM DOS ENCANTOS de vagabundear pelas estradas da serra, além da visão afundada dos cânions e abismos, é parar nas tendas de beira de estrada. Elas oferecem ao freguês toda sorte de verduras, legumes, frutas, doces, compotas, pães, etc. E são uma dádiva para os olhos.
 
 
Viajando ontem a Porto Alegre, parei numa delas, na altura de Nova Petrópolis. Comprei um cesto de uvas que impregnou a caminhonete com aquele cheiro divino.
 
Mas também levei uma abóbora de pescoço e morangas, sim, belas e nédias morangas verdes e cor-de-laranja (ou cor-de-abóbora...). Também peguei melões e figos, que nesta época estão no auge da doçura.
 
 
Pra completar a cena interiorana, do outro lado da estrada, numa sombra, um galo cantou várias vezes. Era uma tarde ensolarada, por volta de 16h, e ele queria era soltar a voz.
 
Deus, como tudo isso traz de volta a infância...
 
 

domingo, 23 de março de 2014

Um suspiro, um silêncio

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto


Faz 50 anos que a avó morreu. O estranho é que ainda não parou de morrer dentro de mim. É um luto permanente, parece que tudo aconteceu ontem. Às vezes acho que meu coração nunca fechou o caixão da avó.
 
Quando ela morreu eu tinha 6 anos. Morava com ela na cidadezinha do alto da serra. Tínhamos "descido" a Porto Alegre para visitar minha mãe que habitava um apartamento diante do Rio Guaíba. Ficaríamos duas semanas.
 
Conhecer o Guaíba foi uma experiência sensorial indescritível para quem estava acostumado a viver entre pinheiros, córregos, campos e penhascos.

O Guaíba ficava azul nos dias de céu claro, uma pintura. As ondas subiam pela areia e vinham até perto dos guarda-sóis (muitas famílias iam para a beira do rio nas tardes de calor). Doce era o cheiro do vento quando cruzava o Guaíba.

Uma outra paisagem se descortinava aos olhos do menino serrano, o rio se expandia com seus navios em direção à Lagoa dos Patos e ao oceano.
 
Criou-se entre mim e o Guaíba uma afinidade espiritual, uma cumplicidade (só ele sabia que eu era um estrangeiro na cidade).

No dia marcado pela morte, a avó estava no sofá tomando chimarrão e eu ao lado. Era de tarde. Houve um suspiro profundo e, em seguida, um silêncio. Só percebi o que havia acontecido quando a mãe, chegando da rua, deparou-se com ela recostada no sofá, os olhos cerrados, o peito imóvel. Eu brincava no chão e nada notara.

O menino aprendeu então que tudo o que mais amava podia desaparecer num instante, como um sopro no vento. Um suspiro, um silêncio.
 
Há alguns anos passei por momentos muito difíceis. Achei que talvez não houvesse um amanhã. Nos dias mais tenebrosos da doença pensava que se a avó estivesse por perto a travessia seria menos dolorosa.

Havia de me levar a caminhar na beira do córrego lá na nossa pequena cidade. Nos dias de inverno, faria doces, como sempre, no velho fogão a lenha da casinha dos fundos do sobrado. E me levaria à loja dos irmãos árabes pra comprar um sobretudo de lã. Beberíamos com eles aquele chá de aroma inesquecível.
 
Por conta dessas recordações, abril é pra mim o mais triste dos meses (ou o mais cruel, como no verso de T.S. Eliot no poema A Terra Desolada*). Por ele me arrasto como um cão que se perdeu do dono e nunca mais voltou pra casa.

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* T. S. Eliot. Poesia. Tradução (memorável) de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. 8.ª edição.