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terça-feira, 3 de março de 2015

Cinema ou sardinha

Jorge Adelar Finatto

Kodak Kodascope¹
 
Na minha cidadezinha, quando éramos crianças, minha mãe perguntava a mim e a meu irmão se preferíamos ir ao cinema ou comer, com a frase festiva: Cinema ou sardinha? Nunca escolhemos a sardinha. 
                                    Guillermo Cabrera Infante


Quando o Dr. Fredolino Lancaster foi a um congresso de medicina em Londres, no distante ano de 1942, não sabia que, ao regressar, provocaria um grande alvoroço na vida da cidade. Na volta, ele trouxe no baú um projetor para filmes de 16mm em silêncio.

A paixão pelo cinema do médico-mor de Passo dos Ausentes transformou a história da nossa  aldeia.

Ainda não conhecíamos a magia da sala escura e da tela grande. A tela, naqueles dias inaugurais da sétima arte entre nós, era um lençol branco estendido com devoção na fachada de basalto da casa do sábio esculápio.

Eu nem era nascido naquele tempo. Ouvi essa história do próprio Dr. Lancaster, que conta 96 anos e está em plena atividade (doença que ele não cura, esqueça, ninguém mais dá jeito).

O primeiro filme a passar no lençol imaculado foi The kid (O garoto, de 1921), obra do nunca suficientemente lembrado Charlie Chaplin. As sessões aconteciam sempre aos domingos, na rua, ao anoitecer, e cada um levava sua cadeira de casa.

Juan Niebla, o músico cego que toca bandoneón na estação de trem abandonada, nunca perdeu um só filme. Alguém descrevia para ele o que se passava na tela (ou melhor, no lençol).

Anos depois, com a inauguração da Sociedade Filosófica, Histórica, Geográfica, Artística, Antropológica, Astronômica, Geológica, Alquímica e Antropofágica, as projeções começaram a ser feitas na sala escura. Introduziram-se na antessala a pipoca, os sucos, os licores, os doces, e as pessoas iam mais cedo para trocar revistas em quadrinhos e livros. Antigos tempos, bons tempos.

Quando escrevi que Ingmar Bergman passou uma temporada em Passo dos Ausentes muitos estranharam. O fato é que ele era amigo do Dr. Lancaster, sabia do amor do médico pelos filmes e era fascinado pelas histórias que este lhe contava sobre a cidade. A casa em que Bergman viveu aqueles dias permanece como ele a deixou. As três latas com os filmes que fez por aqui estão lá, nunca foram abertas.²

Essas recordações surgem agora porque ando lendo Cinema ou sardinha,³ livro sobre a arte do cinema escrito por Guillermo Cabrera Infante. É uma rara iguaria na qual o grande escritor nos oferece sua paixão ancestral pelos filmes servida num texto delicioso. Um livro rico sobre a história do cinema e sobre obras cinematográficas, tudo temperado com o olhar e o sentimento do notável autor cubano.

Vejamos um trecho:

(...) o resultado final de uma filmagem, o filme, a fita, seja qual for o nome que se dê, é um esforço coletivo, antes de tudo do fotógrafo (não há filme sem fotografia), do diretor, que pode ser um gênio, um megalômano obtuso ou um simples artesão, dos atores e dos técnicos atrás da câmera, do assistente de câmera firme, sagaz, até os anônimos eletricistas, as cuidadosas maquiladoras e os homens e mulheres dos camarins e do guarda-roupa, todos, todos colaboram para fabricar o mesmo produto, que até então era um projeto e agora pertence ao produtor e talvez ao público. p. 3

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¹Projetor Kodak Kodascope para filmes 16mm em silêncio:
http://institutoroquearaujo.blogspot.com.br/2011/05/kodak-kodascope-modelo-b-projetor-16.html
²Sótão, porão e assombração:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/12/sotao-porao-e-assombracao.html
³Cinema ou sardinha. Parte 1. Pompas fúnebres. Guillermo Cabrera Infante. Gryphus Editora, Rio de Janeiro, 2013. Tradução de Carlos Ramires

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Entre panchos e chivitos

Jorge Adelar Finatto
 
Guillermo Cabrera Infante
 
Num bom café-restaurante de Montevideo, La Pasiva, na Av. 18 de Julio, fui comer alguma coisa na noite de domingo. Conheci um garçom simpático e educado, por volta dos 40 anos, que veio me atender. Entre a escolha do que comer e beber e a conversa solta de um domingo que escorregava na ampulheta no rumo da segunda, perguntei-lhe de onde era.

Era cubano e estava no Uruguai há um ano e pouco. Gosta muito do país - como eu - mas acha que tudo está muito caro na tierra de José Pepe Mujica. Também nisso concordamos, os preços estão mesmo muito altos, parece até que a moeda corrente é o dólar americano. De fato, o dólar comanda as transações e as moedas locais de nossos países parecem de brinquedo.

O garçom voa de mesa em mesa, desaparece atrás de bandejas de panchos e chivitos, e depois volta a aparecer e continuamos a prosa. A fim de testá-lo, digo versos do poema Tengo, de 1964, do importante poeta cubano Nicolás Guillén (1902-1989):

Tengo, vamos a ver,
tengo lo que tenía que tener.

Ao que ele completa com conhecimento de causa e boa memória:

Tengo, vamos a ver,
tengo el gusto de andar por mi país,
dueño de cuanto hay en él,
mirando bien de cerca lo que antes
no tuve ni podia tener.

Guillén foi uma devoção literária de minha juventude. Ele exaltou as conquistas da Revolução Cubana, mas já era um poeta enorme antes dela, sempre preocupado com temas sociais e com as injustiças. Na sua poesia a negritude surge com força numa linguagem original, sonora, cheia de ritmo e sensualidade.

Resolvi seguir adiante com a literatura cubana, de que tanto gosto, assim como gosto de Cuba e dos cubanos, apesar de nunca ter ido lá, e soltei para o culto garçom:

A máquina de escrever é a verdadeira máquina do tempo.

Não fiz menção ao nome do autor. Ele pensou, pensou e disse que não recordava (o trecho está na pág. 16 do livro A ninfa inconstante, de outro grande cubano, Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), publicado pela Folha de São Paulo, em 2012, tradução de Eduardo Brandão).

Quando revelei-lhe o nome do autor, ele disse que nunca tinha ouvido falar. Não se fala nele em Cuba. Eu lembrei que Cabrera Infante é um dos mais notáveis escritores de língua espanhola de todos os tempos, autor de um clássico raro e saboroso, Três tristes tigres, de 1967, um dos livros mais incríveis que conheço.

O  autor caribenho, aliás, era leitor confesso e encantado de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e de Macunaíma, de Mário de Andrade.*

Acontece que Cabrera Infante rompeu com a revolução quando percebeu o rumo autoritário que tomava. Acabou no exílio, em Londres, onde virou cidadão britânico e escreveu parte de sua obra.

A Ilha passou a ser vista com o manto da memória e da melancolia. Mas sem esquecer os óculos da poesia, do calor humano e da ironia.

Fiquei indignado pelo fato do amigo garçom não ter podido conhecer, em Cuba, por força da censura, um escritor deste porte, um nome que já se pode dizer universal.

O que só vem confirmar que, em Cuba, tudo tem somente um lado, o lado do poder, isto é, o lado da família Castro. A ditadura se prolonga, impunemente, desde  1959.** Tristemente.

Mas o cubano me restituiu a esperança ao dizer que ia procurar um livro de Cabrera Infante no dia seguinte. E me fez prometer - e eu prometi - que ia ler toda a poesia de José Martí.

____________

*Cabrera Infante, por Geneton Moraes Neto:
http://www.geneton.com.br/archives/000035.html
**Os direitos humanos em Cuba:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/02/cuba-e-os-direitos-humanos.html