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quinta-feira, 27 de março de 2014

A morte das ciclistas: crônica de uma tragédia diária

Jorge Adelar Finatto 
 
ilustração: Maria Machiavelli
 

Na última quinta-feira, 20 de março, duas jovens foram mortas enquanto andavam de bicicleta em Porto Alegre. Elas foram atropeladas por ônibus em diferentes bairros da cidade, às 8h30min e às 16h30min.
 
Patrícia (21 anos) e Daise (19) eram estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na qual cursavam, respectivamente, Pedagogia e Psicologia.

Ambas tinham, com certeza, projetos e sonhos. Pelos cursos que escolheram, cultivavam uma visão humanista da vida, sendo pessoas importantes para o presente e para o futuro da cidade e do país. A sua morte, por todas as razões, é inaceitável.
 
Os dois terríveis acontecimentos foram notícia nas rádios, televisões e jornais. Mas hoje começam a cair no esquecimento (exceto para as famílias, amigos e colegas ciclistas).

É assim: mortes no trânsito são diárias, fazem parte disso que se convencionou chamar, erradamente, acidente.  Um eufemismo, entre tantos, na linguagem de uma sociedade que se desumaniza de forma assustadora como a brasileira.

Com algumas exceções, não se trata de acidentes. Na maioria dos casos, são fatos absolutamente previsíveis e evitáveis, que resultam do mau comportamento dos motoristas.
 
Desconheço detalhes dos trágicos eventos que vitimaram as universitárias. A realidade, contudo, é que morrer no trânsito virou, infelizmente, coisa banal entre nós.
 
Recolhem-se os corpos, lava-se rapidamente o sangue, libera-se o tráfego, porque a cidade não pode parar. É o modus operandi. A coisa é cirúrgica. Sentimento nem pensar.

Como estão todos ocupados em tocar a vida, não se pára para refletir sobre a urgente necessidade de mudança de comportamento de cada um.  
 
A barbárie toma conta das ruas das cidades brasileiras.

O sistema de trânsito em vigor privilegia o transporte individual em detrimento do coletivo. O transporte público é muito ruim, caro e ineficiente. As ruas, naturalmente, estão entupidas. Não há mais espaço, existindo um conflito permanente entre os condutores. E o pior de tudo: muitas pessoas esquecem que são seres humanos ao tomar a direção de um veículo.
 
Existe em Porto Alegre um número considerável de pessoas que faz da bicicleta meio de transporte. Estão criando uma nova cultura. É gente que quer desbrutalizar a cidade, encontrar uma solução para o caos e a violência das ruas, acabar com a matança, eles próprios alvos indefesos nessa loucura.
 
Os ciclistas, entre eles muitos estudantes, procuram uma saída para melhorar a vida de todos. Enquanto isso, são atropelados. Até quando? 

A dor das famílias e amigos das duas jovens é insuportável. Eu que também sou pai imagino o que é conviver com a perda em tais circunstâncias. Sei que é uma dor dilacerante, sem limites e que ninguém jamais devia passar por isso.
 
Tenho um filho que resolveu aderir à bicicleta. Vivo com o coração na mão. Estou no interior, distante de Porto Alegre, em constante vigília.

A cidade faz parte de mim, nela vivi muitos anos, os filhos estão lá, mas quero dizer que tenho medo, muito medo, por eles e por todos os filhos que andam nas ruas e calçadas deste triste porto que a cada dia perde sua alma.
 

domingo, 23 de março de 2014

Um suspiro, um silêncio

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto


Faz 50 anos que a avó morreu. O estranho é que ainda não parou de morrer dentro de mim. É um luto permanente, parece que tudo aconteceu ontem. Às vezes acho que meu coração nunca fechou o caixão da avó.
 
Quando ela morreu eu tinha 6 anos. Morava com ela na cidadezinha do alto da serra. Tínhamos "descido" a Porto Alegre para visitar minha mãe que habitava um apartamento diante do Rio Guaíba. Ficaríamos duas semanas.
 
Conhecer o Guaíba foi uma experiência sensorial indescritível para quem estava acostumado a viver entre pinheiros, córregos, campos e penhascos.

O Guaíba ficava azul nos dias de céu claro, uma pintura. As ondas subiam pela areia e vinham até perto dos guarda-sóis (muitas famílias iam para a beira do rio nas tardes de calor). Doce era o cheiro do vento quando cruzava o Guaíba.

Uma outra paisagem se descortinava aos olhos do menino serrano, o rio se expandia com seus navios em direção à Lagoa dos Patos e ao oceano.
 
Criou-se entre mim e o Guaíba uma afinidade espiritual, uma cumplicidade (só ele sabia que eu era um estrangeiro na cidade).

No dia marcado pela morte, a avó estava no sofá tomando chimarrão e eu ao lado. Era de tarde. Houve um suspiro profundo e, em seguida, um silêncio. Só percebi o que havia acontecido quando a mãe, chegando da rua, deparou-se com ela recostada no sofá, os olhos cerrados, o peito imóvel. Eu brincava no chão e nada notara.

O menino aprendeu então que tudo o que mais amava podia desaparecer num instante, como um sopro no vento. Um suspiro, um silêncio.
 
Há alguns anos passei por momentos muito difíceis. Achei que talvez não houvesse um amanhã. Nos dias mais tenebrosos da doença pensava que se a avó estivesse por perto a travessia seria menos dolorosa.

Havia de me levar a caminhar na beira do córrego lá na nossa pequena cidade. Nos dias de inverno, faria doces, como sempre, no velho fogão a lenha da casinha dos fundos do sobrado. E me levaria à loja dos irmãos árabes pra comprar um sobretudo de lã. Beberíamos com eles aquele chá de aroma inesquecível.
 
Por conta dessas recordações, abril é pra mim o mais triste dos meses (ou o mais cruel, como no verso de T.S. Eliot no poema A Terra Desolada*). Por ele me arrasto como um cão que se perdeu do dono e nunca mais voltou pra casa.

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* T. S. Eliot. Poesia. Tradução (memorável) de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. 8.ª edição.