terça-feira, 22 de abril de 2014

Leitor, anônimo criador da literatura

Jorge Adelar Finatto

livros. fonte: jornal Público, Lisboa
 
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente. 
 Cesário Verde *

As palavras não vivem senão nos olhos do leitor. E não possuem outra vida além daquela que lhes dedicamos na leitura. Existem tantas leituras de um texto quantos são seus leitores. Cada um lê de uma maneira, recria ao seu jeito, de acordo com sua sensibilidade e subjetividade.
 
Um livro são muitos livros, tantas são as interpretações que lhe emprestamos. É na cabeça e no coração do leitor que as histórias e poemas são recriados e ganham corpo. O que alguns denominam autonomia do texto é, na verdade, autonomia de leitura.
 
Por isso, acho que, das três pedras sobre as quais se constrói o edifício da literatura -escritor, texto e leitor-, é o último a mais importante, a verdadeiramente indispensável, aquela sem a qual a palavra escrita se esvazia de sentido e perde a razão de ser.

A atividade de ler é a mais generosa e civilizada do universo dos livros.
 
O destino final do texto literário é você, raro leitor, somos nós, anônimos e ilustres desconhecidos que damos vida à página escrita, os únicos que podem resgatar das geleiras e ilhas ventosas da indiferença as palavras em solidão concebidas.

Em solidão concebidas para a solitária aventura da leitura. A palavra escrita é pura travessia humana.
 
Se a partir de hoje não surgisse mais nenhum autor (vamos bater três vezes na madeira), a literatura ainda assim estaria a salvo. Os livros publicados até hoje são suficientes talvez para o resto da eternidade.

Mas se fosse o inefável leitor o desaparecido (bater seis vezes na madeira), toda a literatura produzida simplesmente deixaria de existir. E só renasceria um dia aos olhos de um redivivo legente em algum remoto recanto da Via Láctea.
 
Cada um de nós (leitores) torna-se responsável pela preservação desse patrimônio espiritual que nos chega desde as camadas mais profundas da experiência humana sobre a Terra.
_____________

O Livro de Cesário Verde.  Cesário Verde. Editorial Minerva, Lisboa, junho de 1952. Trecho inicial do poema Contrariedades, pág. 53.