domingo, 6 de junho de 2021

Depois que tudo isso passar

 Jorge Finatto

photo: jfinatto


Depois que tudo isso passar vou tomar banho de mar. Vou procurar amigos que não vejo há muito tempo. Vou beber cerveja da Patagônia, espessa, gelada, salutar. Está decidido. Não dá mais para esperar.

Irei ao mercado público de Porto Alegre sentir o cheiro misturado de peixe com erva mate, entre outras tantas fragrâncias daquele lugar. Pedirei salada de fruta com sorvete na Banca 40, vou me esbaldar.

Escreverei cartas depois que a peste passar. Tantas que faltarão carteiros para delas se ocupar. 

Vou caminhar pelas ruas do bairro até o sapato gastar. Cumprimentarei todo mundo na rua. Os maldosos dirão que estou diferente, nem pareço o cáctus de antigamente. Falarão que estou com medo da morte, o que não deixa de sarapantar.

Depois que tudo isso passar vou sentar no café pra ler jornal, beber cappuccino, ver o movimento passar. Coisa boa assim não há.

Depois que tudo isso passar deitarei no fundo do meu barco de papel e mirarei o céu até a vista cansar. Navegarei pelo Guaíba, Lagoa dos Patos, Atlântico em alto mar. Rumarei pelo Sena até Paris. 

No Quartier Latin guardarei o barquinho no bolso do capote azul marinho e me hospedarei no hotelzinho da praça da Sorbonne Velha. Andarei na mesma calçada onde caminharam Rimbaud, García Márquez e Cortázar. 

Descerei a Rue Cujas, dobrarei à direita no Boulevard Saint-Michel em direção a Place Saint-Sulpice, em Saint-Germain-des-Prés. Entrarei no café, na tabacaria e sentarei no mesmo banco em que Georges Perec, durante três dias, no outono de 1974, escreveu Tentativa de esgotamento de um local parisiense*.

Tudo isso eu vou fazer quando o mundo voltar a respirar. 

E prometo nunca mais fazer rima rica em ar.

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Tentativa de esgotamento de um local parisiense. Georges Perec. Tradução de Ivo Barroso. Editora G. Gili Ltda. São Paulo, 2016.