segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Ilhas e taperas

Jorge Adelar Finatto


Um dia desses saí a navegar pelo Guaíba no meu barco de papel.
Às vezes ele se chama Sonhador, outras, Solidão.
No itinerário, desembarquei em algumas ilhas.
Confesso me assustei com as taperas que nelas encontrei.
Tapera, do tupi, aldeia extinta.
Habitação em ruína, lugar abandonado.
Filipo, o papagaio que me acompanha, costuma dizer tapera é em nós que ela existe.
Nos nossos gestos vazios, nas nossas omissões, na impotência de mudar a vida.
De tão abandonadas, as ilhas se transformam em território de fantasmas.
Cada um de nós é uma ilha nessas águas tão fundas do viver.
Quando olho em volta da minha ilha, encontro outras ilhas. Muitas ilhas.
Apesar da quantidade e da proximidade, não formamos  um arquipélago.
Existimos isoladamente.
Os habitantes das ilhas querem falar e ser ouvidos.
Raros, contudo, dispõem-se a escutar.
Esse o flagelo que assola o mapa das ilhas.
Habitamos taperas modernas, com computador, blogue, máquina de lavar, tv a cabo, aparelhos de som, ar-condicionado, elevador, mil coisas.
Em nosso íntimo, continuamos homens e mulheres das cavernas, com poucos amigos. Solitários, primitivos.
Lutamos pra sobreviver, saímos à caça todas as manhãs, disputamos ferozmente espaços no  mercado de trabalho, no mercado das paixões.
Desconfiamos quando nos mostram os dentes num sorriso.
Dores e medos são curtidos no recesso como se não existisse mais ninguém no bairro.
As nossas moradias, tugúrios onde nos escondemos. Planejamos a fuga para um lugar que não sabemos se existe, mas deve ser melhor.
Olho o movimento dos barcos na entrada do cais de Porto Alegre.
Ouço o ruído seco do vento na vela branca do meu veleiro.
Uma gaivota atravessa o rio.
O entardecer aprofunda o exílio.
Não conseguimos formar um arquipélago.
O Guaíba embala a solidão das ilhas e taperas.

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Foto: Eduardo Tavares. Veleiros em Belém, Porto Alegre.
Texto publicado em 04 de fevereiro, 2010.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Meu encontro com Walt Whitman

Jorge Finatto

O trabalho mudou minha vida de cenário muitas vezes. Faz muito tempo morei numa cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul. O lugar se resumia a uma igreja católica e outra protestante, algumas ruas e casas. Em volta, a mata. Em certas tardes, eu saía a andar por estradas de chão, solitárias e com aroma silvestre.

Caminhar assim é como andar dentro de si mesmo.

Num dia de sol e frio eu percorria um desses caminhos. Um córrego prateado corria na margem. Numa curva em frente, entre os plátanos, apareceu um homem. Quando nos cruzamos ele me cumprimentou, em silêncio, fazendo um gentil movimento com a cabeça, que eu retribuí. Ele tinha uma barba branca abundante, uns olhos pequenos muito azuis, o cabelo na altura dos ombros. Usava um chapéu escuro com largas abas, a face um tanto rosada. Vestia um velho casaco, a camisa abotoada até o pescoço. Trazia um livro na mão esquerda.

Eu tive certeza de que se tratava do poeta norte-americano Walt Whitman (1819 – 1892).

Fiquei orgulhoso de estar ali, pisando o mesmo chão que o grande Walt. Seria o espectro do poeta o que eu vira? Seria alguém muito parecido?

Encontrei-o em outras duas ocasiões. Como da primeira vez, éramos só nós, a estrada verde, a brisa e o rumor do córrego. Fiquei observando o poeta. Ele entrava num desvio lateral da estrada, subia uns cinquenta metros em direção a uma  pequena casa de madeira.

A casa era muito branca e delicada. Sozinha, lá no alto, mostrava cortinas azuis nas janelas abertas, e flores, muitas flores da estação  no breve jardim em volta.

Walt entrava pela porta dos fundos e desaparecia.

Uma chaminé de alumínio saía pelo telhado.

Pensei em conversar com o poeta. Talvez ele até dissesse alguns versos de Folhas da Relva, sua obra-prima. Mas não. Achei melhor não incomodar. Afinal, os poetas trabalham enquanto caminham em silêncio por estradas de chão.

Um dia chegou o tempo de ir embora da cidade pequena.

A vida seguiu, muitos caminhos eu percorri depois. Mas nunca esqueci que, em certas tardes, numa cidadezinha do interior, eu caminhei na mesma estrada por onde andava Walt Whitman.

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Transbordante de Vida
Walt Whitman

Agora, transbordante de vida, sólido, visível,
No ano quarenta de minha existência, no ano oitenta e três dos Estados,
A alguém que viverá dentro de um século, ou em qualquer número de séculos,
A vós, que ainda não haveis nascido, dedico estes cantos, esforço-me por
alcançar-vos.
Quando lerdes, eu que sou agora visível, hei-de ter-me tornado invisível; então sereis vós, denso e visível, quem lerá os meus poemas, quem se esforçará por compreendê-los,
A imaginar quão felizes seríeis se me fora dado estar ao vosso lado e converter-me em vosso camarada;
Que seja, pois, como se eu estivesse. (Não duvideis demasiadamente que não esteja então ao vosso lado).

Poema extraído de O Livro de Ouro da Poesia dos Estados Unidos, coletânea de poemas organizada por Oswaldino Marques, edição bilíngue, Ediouro, tradução de Manuel Ferreira Santos.

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Publicado no blog em 17, abril, 2010.
Foto: Walt Whitman, feita em 1887 por George C. Cox.
Fonte: Wikipédia.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Coração barroco

Jorge Adelar Finatto


A palavra vale mil imagens.













Coração, por exemplo.


Essa palavra quer ser tudo.

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Fotos: J. Finatto

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O peixe da boca vermelha

Jorge Adelar Finatto


A caminhada polifônica destina-se não apenas ao exercício do corpo como à indispensável atenção às coisas do espírito.

A observação dos seres vivos e da paisagem, a aproximação estética e sensorial  da mãe natureza, a respiração do ar limpo e fresco nas manhãs (ou tardes), a descoberta de inefáveis epifanias durante o percurso, tudo isso faz parte da polifonia andante.


Andava eu nas cercanias do Lago da Neblina, em Passo dos Ausentes, prevenido com a invencível Coruja, a vetusta máquina fotográfica que me acompanha.

Os gansos desistiram de acusar a minha presença. Sabem que sou apenas um caminhante que está só de passagem, um sujeito inofensivo, que anda a bordo de um chapéu de palha branco, com grossas e estapafúrdias lentes nos óculos, catando o invisível.

Um indivíduo assim não oferece risco à fauna e à flora, quiçá a si mesmo.


Nas margens e dentro do lago existe vida pulsante. Estava eu olhando o vazio (essa maneira de encontrar, talvez, o inesperado) quando ouvi um vago rumor na água.


Foi quando me apareceu o amigo (ou amiga) dessas fotos.


Um peixe branco, a boca pintada de vemelho, com traços coloridos espalhados pelo corpo, cerca de 1 metro de comprimento, passou a navegar perto de mim.

Tive a impressão de que sabia da sessão de fotos, ao menos não poupou poses e movimentos. Chegou-se mais para a beira, mas não tão próximo que não pudesse ativar um plano emergencial de fuga caso isso fosse necessário. Não foi.




O peixe da boca vermelha quis dizer alguma coisa com sua presença, e acho que conseguiu. Encheu de beleza a tarde (e o meu coração).



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Fotos: J. Finatto

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O ladrão de livros

Jorge Adelar Finatto

Entre as páginas de um velho livro, encontrei um recorte de jornal amarelecido. Nele se noticia que o homem considerado o maior ladrão de livros da história foi condenado, na Inglaterra, a 15 meses de prisão.

O inglês, cujo primeiro nome é Duncan, furtou, ao longo de 30 anos, mais de 40 mil volumes de bibliotecas, faculdades, igrejas e outras instituições.

O motivo alegado por Duncan, segundo a notícia, era um só: impressionar vizinhos e conhecidos com aparência de erudição. A polícia encontrou os livros guardados desde o porão até o sótão de sua casa de campo, no condado de Suffolk, leste da Inglaterra. Ele foi descoberto ao tentar vender uma das obras num leilão.

O principal objetivo de Mr. Duncan, como se vê, era alardear leituras que nunca fizera. Aliás, comportamento que não é privilégio dele. A vaidade literária se presta, em vários sentidos, à ostentação e esnobismo.

Há grandes leitores de orelhas e resumos de livros que acenam erudição, em conversas e através de resenhas, a respeito de obras que, na verdade, nunca leram. Esse tipo de "leitor" se faz presente em certo meio intelectual e em parte do jornalismo dito cultural. Claro que há pessoas que procuram fazer um trabalho sério. Mas os tempos são difíceis também nessa área.

Uma boa pena alternativa para Duncan, que a meu ver não deveria ir para a cadeia, seria a leitura de livros em asilos, hospitais, prisões e outras lugares, durante algumas horas por semana, para atender pessoas impossibilitadas de ler.

Quem sabe dessa forma ele adquirisse, enfim, o verdadeiro gosto pela leitura e, mais do que isso, descobrisse o quanto é bom ajudar a quem precisa por meio da literatura.
 

sábado, 22 de janeiro de 2011

Os últimos acendedores de lampiões

Jorge Adelar Finatto


À tardinha, quando o sol morre atrás do Contraforte dos Capuchinhos, os dois acendedores de lampiões saem às ruas para dissipar a escuridão. Érico tem 78 anos e Dyonelio, 83. São os últimos remanescentes da Companhia de Iluminação de Passo dos Ausentes. Ao que se quer e espera, muita luz, luzes.

A nostálgica claridade noturna de nossas 20 ruas é invenção de 80 lampiões nelas espalhados. É assim desde 1925. A cidade parou no tempo desde então.

Érico e Dyonelio exercem o ofício desde a adolescência, quando ingressaram na companhia como aprendizes. Com a aposentadoria dos acendedores mais velhos, e diante do brutal esvaziamento da cidade (os jovens muito cedo vão-se embora à procura de estudo, trabalho e aventura; os velhos acabam morrendo e mudam-se em definitivo para os campos da ausência), não houve renovação dos iluminadores.

Somos poucos.

Os últimos acendedores de lampiões fizeram um pacto. Trabalharão até o dia da morte para não deixar a cidade entregue às trevas. Eles acreditam que quando não mais estiverem nas ruas para acender os lampiões forças malignas tirarão proveito da escuridão e expulsarão nossa cidade do sistema solar. Precisamos evitar a todo custo que se cumpra o presságio do padre Eleutério Ombra, enunciado em 1755, de que uma nova São Miguel das Missões se ergueria perto das nuvens, sobre altas montanhas, com graça e fulgor. Advertiu, todavia, que uma grossa sombra rondaria sempre esse lugar e poderia engoli-lo.

Depois que exércitos espanhóis e portugueses destruíram São Miguel, em 1756, alguns padres jesuítas e índios guaranis, sobreviventes do massacre, fugiram e fundaram Passo dos Ausentes.

Uma grande angústia toma conta das pessoas por aqui. Vivemos nesta cidade condenada ao desaparecimento. Cada um é insubstituível.  Nem ao menos figuramos no mapa do Rio Grande do Sul.

Somos poucos.  Somos invisíveis. Somos habitantes dos Campos de Cima do Esquecimento.


O tempo, em Passo dos Ausentes, é uma ferida que não para de sangrar.

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Do livro A cidade perdida: as origens. Editora Vésper, Passo dos Ausentes, 2003.
Fotos: J. Finatto

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

O córrego

Jorge Adelar Finatto


Não quero outra vida
que passar os dias
na beira do córrego
olhando os seixos
                      as folhas
o rosto humano dos peixes

perto do pinheiro
contemplo o lento caminhar
das águas

não indago de onde ele vem
não sofro seu tortuoso destino
nem as lágrimas que traz

quero apenas estar a seu lado
no suave e breve instante
de sua passagem
na minha vida

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Do livro Memorial da vida breve, Editora Nova Prova, Porto Alegre, 2007.
Foto: J. Finatto

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A nave-mãe está cansada e seriamente doente

Jorge Adelar Finatto


A escritora e querida amiga Helena Jobim disse-me, certa vez, que Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim (1927-1994), seu inesquecível irmão Tom (apelido dado por ela, em criança, ao mano), compôs diversas de suas músicas no sítio da família, na localidade de Poço Fundo, município de São José do Vale do Rio Preto, região serrana do Estado do Rio de Janeiro. Uma ocasião o maestro saiu de sua casa e foi até a de Helena, ambas no sítio, e mostrou com o violão a música que acabara de fazer: era Águas de março. Ali também compôs Dindi e tantas outras, e recebeu amigos, entre os quais Vinicius de Moraes e João Gilberto. Naquele lugar, o músico passava temporadas de descanso e lazer, desde pequeno. Ele era uma pessoa encantada com a natureza. Em Poço Fundo aprendeu nomes de pássaros, animais, plantas, conviveu com a mata e com os bichos. Tornou-se um dos primeiros artistas brasileiros a falar de ecologia e a externar preocupação com a destruição do ambiente natural, nele incluídas as pessoas.

A tragédia que se abateu sobre as cidades serranas do Rio de Janeiro destruiu a casa do Tom em Poço Fundo, na manhã de quarta-feira passada, conforme se vê na foto acima, tirada pelo neto Daniel Jobim, que se encontrava no local, mas em outra residência. A forte enxurrada e a subida do Rio Preto, que passa por lá, acabou com quase tudo no lugar.

O desastre que assola o Estado do Rio, fazendo cerca de 700 mortes e milhares de desabrigados, em municípios como Teresópolis, Nova Friburgo, Petrópolis e São José do Vale do Rio Preto, entre outros, é uma demonstração de que a nave-mãe Terra está muito cansada e seriamente doente.  O Brasil não era acostumado a fatos como esse, que vêm se repetindo nos últimos tempos, em várias proporções em quase todas as regiões do país. Temporais, tornados, enxurradas, vendavais, alagamentos, deslizamentos de terra têm causado mortes, medo, traumas e prejuízos incalculáveis. No Brasil e no mundo, percebe-se o grave desequilíbrio: os desacertos do clima, a elevação das temperaturas, o derretimento das geleiras, a redução drástica da camada de proteção atmosférica.

Estamos produzindo lixo além de toda conta, e jogando tudo na natureza. Gases são atirados de qualquer maneira no ar, detritos de inumeráveis espécies vão para dentro das águas. Queimadas, mortandade de animais, produtos tóxicos produzidos e espalhados indevidamente. A sociedade do consumo total, do lucro como valor supremo, da mentira e da vantagem a qualquer custo chega ao limite.

A natureza está devolvendo ao homem o que dele recebe. Se não desenvolvermos uma ética de solidariedade entre nós e de respeito ao meio ambiente, em breve a nave-mãe Terra mergulhará em profunda escuridão.

Precisamos urgentemente fazer as pazes com a natureza. Do contrário, vamos todos desaparecer, sem memória do que fomos e das canções que um dia embalaram nossos corações, como as do grande maestro Antonio Brasileiro.

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Foto: imagem da casa de Tom Jobim, no sítio de Poço Fundo, destruída pelas chuvas. Autor: Daniel Jobim. Publicada no jornal O Globo, online, em 15.01.2011: oglobo.globo.com.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O resgate do sentido humano

Álvaro Alves de Faria • São Paulo - SP


Jorge Adelar Finatto publica pouco. Como costuma dizer, publicar, para ele, é uma exceção e não uma regra. "Um livro me custa anos de espera", observa, para deixar claro que talvez a publicação não seja tão importante, especialmente quando livros de poesia no Brasil se transformaram - há quem diga - numa praga. Claro que estamos falando do lixo que anda por aí assinado por gente rotulada de poeta. Não é o caso de Finatto, que acaba de lançar Memorial da vida breve, livro que lhe mereceu dez anos de trabaho. "Publicar qualquer coisa, publicar por publicar, fazer carreira de poeta, não é o meu caminho", diz ele.

Nos anos 80, Jorge Adelar Finatto fazia parte do Grupo Sanguinovo, de São Paulo, pelo qual publicou sua primeira obra - Viveiro. A seguir, em 83, o livro Claridade foi lançado pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Vieram outras obras poéticas, com destaque para O habitante da bruma, de 1998. Ingressou na Magistratura em 1991, como juiz de Direito. Confessa nunca estar seguro sobre o que escreve. Tudo é sempre um risco. Tem para si que a função da literatura é resgatar o sentido humano. O homem tem origem divina.

Ao ver em Coimbra as águas do Mondego, sente saudades do Guaíba, com seus últimos barcos que partem ao entardecer, deixando atrás o sonho dos homens: "o poema de António Nobre/ escrito na pedra/ à beira do rio/ me recorda Porto Alegre/ seus poetas esquecidos". Estas são as imagens dos versos de Finatto, que tem na poesia uma forma de salvar ainda a possibilidade da vida, diante da brutalização completa de quase tudo.

Nascido em Caxias do Sul (RS), em 1956, Finatto percorre esse campo árido da poesia com o cuidado que se tem com um ferimento. Talvez a poesia seja mesmo assim, pelo menos para os que ainda conseguem pensar. Esta poesia é feita, sobretudo, de generosidades. A vida é maravilha. O tempo de viver é o lugar da alegria e do milagre. As estrelas cadentes são nossas irmãs. E a Deus é preciso devolver a vida emprestada.

Assim segue o poeta, como um peregrino: "afundado/ em seco/ decifro papéis/ que nada me dizem/ a página em branco/ espera o verso/ que não escreverei". O poeta sente a poesia como uma espécie de religião, a transcendência, onde talvez esteja a alma de todas as coisas: "escrever o poema/ é sempre claridade/ na caverna/ mão estendida/ a quem/ não conheço/ teço a canção/ antes do grande/ silêncio".

Este é um poeta que anda à margem do Guaíba à procura da voz da Luz, sabendo que existem caminhos de dor entre ele e a delícia. Há dias em que não suporta o vento e suas histórias: "o relógio da parede/ na casa velha/ espera o menino/ que não voltará", diz ele num poema, ao observar que gostaria de ter sido outra pessoa. E na sua missão de caminhante, escreve que precisa escrever o poema para salvar o dia, um poema que tenha a força de expulsar o desejo de morrer.

Memorial da vida breve é um livro de poemas de um autor que acredita que um dia a poesia poderá salvar o mundo. Quem sabe poderá em tempo incerto trazer de volta a humanidade engolida pelo perverso. Seja como for, o poeta certamente terá razão: "O que resta é esperar/ o retorno da primavera/ o ramo da buganvília/ o regresso do pássaro/ com o humano canto/ em setembro".

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Memorial da vida breve, Jorge Adelar Finatto, Nova Prova, Porto Alegre, 2007, 80 págs. Ilustrações de Paulo Porcella.
Esta resenha, de autoria do poeta e jornalista Álvaro Alves de Faria, foi publicada no jornal literário Rascunho, de Curitiba, Paraná, em agosto de 2007, e encontra-se também na internet: rascunho.rpc.com.br
Imagem: capa do livro.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Os prisioneiros na casa dos mortos

Jorge Adelar Finatto

O texto que transcrevo foi escrito por Paulo, o Apóstolo, em Roma, por volta do ano 61 da Era Cristã. Pequeno, mas enorme em verdade e ensinamento, é uma advertência contra a desumanização das cadeias. Um importante alerta contra a indiferença da sociedade e do Estado, no Brasil e no mundo, em relação à terrível realidade das prisões.

Aceitar ou calar diante da violência e dos maus-tratos, no interior das celas e dos presídios, é aceitar que o mal se multiplique e se espalhe pelas nossas cidades, ruas e casas. A lição vale para todos, cidadãos e autoridades responsáveis pelo sistema prisional. Trabalhar por uma execução criminal eficiente e digna é o caminho para a recuperação dos condenados, para a diminuição da criminalidade e para uma vida melhor em sociedade.

Um bom exemplo de compromisso e envolvimento de juízes e comunidade com a humanização do sistema prisional no Brasil pode ser encontrado no Projeto Trabalho para a Vida, criado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no ano 2000. O projeto parte do princípio de que a profissionalização e o ensino dentro das cadeias, ao lado da participação familiar e social na execução, são essenciais no caminho da tentativa de recuperação daqueles indivíduos que em algum momento se envolveram em atos criminosos.

Os presídios precisam deixar de ser a casa dos mortos para transformar-se na casa da esperança. Neste sentido, lembro o magistral livro de Dostoievski, Recordações da Casa dos Mortos, que nos remete a uma reflexão profunda sobre este mundo de sombras que precisa ser resgatado da escuridão.

Ninguém mais aguenta a barbárie.


Lembrai-vos dos que estão em cadeias, como se tivésseis sido presos com eles, e dos que estão sendo maltratados, visto que vós mesmos também estais ainda num corpo. (Apóstolo Paulo,  Bíblia, Hebreus, 13:3)

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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O sertão entre as nuvens


Jorge Adelar Finatto




O regalório das trevas este mundo é.

Ofício neblinoso em mim reinventado, me fiz poeta. Eu, Farandolino Brouillon, inquilino da quimera.

Os fanicos da alegria no meu coração. Remendos que tecem esperanças. As coloridas e rasgadas vestes com que a melancolia se veste. No interior das pedras se ouvem vozes.

Agora é tempo morto. Espírito morto. Semente clara germina no fundo do meu silêncio.

Ah, quem dera a palavra em mim renascida. As tardes no banco da praça, o invisível canto dos pássaros que um dia foram.

Os cavalos do oblívio atravessam a  ponte. Algaravia nos cascos vermelhos. Moro nesse sertão entre as nuvens que é Passo dos Ausentes.  Sou poeta num tempo trevoso. Esse da morte do espírito. O que se vê. A arte do esquecimento tem uma única lei, o estatuto da deslembrança. O espírito está morto. Eu recolho o que sobra, o farelo das horas, o farelo do farelo. 

A pouca migalha do viver. As musas nem aí diante do triste espetáculo. A pétrea indiferença dos habitantes do gelo. Os afundados na coisa crua. Vivo agora os difíceis dias do abismo. Sentimento  enclausurado. Lágrimas são gotas salgadas (e quentes) que escorrem na face fria.  A melancolia do córrego.

Os Campos de Cima do Esquecimento. Moro no chapadão sobre as nuvens. Acorrentado estou no alto penedo. Arrosto as flechas geladas dos ventos. Eu viajante audaz do esquecimento, mergulhado nos haveres da sobra. O farelo. Espero dias de brisas leves e suaves poemas campestres. Os impossíveis remansos no estar no mundo.  Sou o desconhecido poeta, morador do chapadão.

Esse tal, esse que vem diante de vossa elevada ausência. Esse. Uns dizem filosofia, sintaxe, eu digo viver nessa miséria. Vivo esse tempo  cevado na barriga da escuridão, adaga atravessada no peito. A nossa passagem no mundo.

O que vejo dentro do claustro: a face iluminada de Deus. As manhãs se  fabricam no poço violento da noite. Ah, essas desoladas horas passadas aqui no sertão das nuvens. A fé é um ranchinho branco  em cima do chapadão com a porta aberta, fumaça branca na chaminé, entre camélia e jasmim. Esse lugar onde resisto. O frio glacial, a tamanha ausência.

photo: jfinatto

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Farandolino Brouillon, poeta, colecionador de crepúsculos, estudioso do estranho fenômeno das estrelas cadentes nos céus de Passo dos Ausentes.
Fotos: J. Finatto 1) Ponte na neblina, Laje de Pedra, Canela 2) Pátio  do rancho de Farandolino Brouillon.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Andança

Jorge Adelar Finatto


De tempo em tempo
converso com Deus
na esquina

de tempo em tempo
ardo no frio
da memória

de tempo em tempo
choro como uma estátua
não pode fazer

de tempo em tempo
ressuscito
em teus braços

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Do livro O Fazedor de Auroras, Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1990.
Foto: J. Finatto

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Casa de Villa

Jorge Adelar Finatto

A poesia cotidiana e quase imperceptível da vida comum na música de Guinga.
 

O compositor, cantor e poeta Guinga é uma das melhores revelações da música brasileira nos últimos 20 anos. Em meio ao prato feito (e muitas vezes insosso) dos modismos e imposições da indústria do disco, é raro o aparecimento de um artista com o preparo técnico, a inspiração e a intuição deste carioca nascido no subúrbio. Músico compenetrado em seu ofício, com conhecimentos de música erudita e popular, Guinga prepara  e serve requintadas iguarias com seu violão, seus versos e sua voz.

O cd Casa de Villa foi gravado entre novembro e dezembro de 2006, no estúdio da gravadora Biscoito Fino, e lançado em 2007. É um grande prazer ouvir as sonoridades e harmonias criativas e inusitadas, que fogem muito ao fácil posto. O que se espera de um artista é que seja inventivo e nos abra novos portões no casarão da sensibilidade. Pois surpresa é o que nos reserva este disco do senhor Carlos Althier de Souza Lemos Escobar.

De tempo em tempo, ponho-me a escutar essas trilhas de  encantadora luminosidade. São caminhos que nos levam para um Brasil que existe cálido nas casas humildes, sobrados, quintais e ruas dos bairros das nossas cidades. A poesia cotidiana e quase imperceptível da vida comum está viva na obra deste grande músico.

Guinga aparece como compositor em todas as doze faixas, às vezes só, às vezes em boa companhia. A reverência a Villa-Lobos é uma promessa e um compromisso que se confirmam ao longo do disco. O refinado letrista (poeta) revela-se em versos carregados de simbolismo como: o fogo da refinaria é boitatá (Maviosa).

Mar de Maracanã, a primeira música, é a feliz  abertura disso tudo que faz deste trabalho algo original e belo que merece a nossa atenção do início ao fim.

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Foto: 1) Guinga. Autor: Adriano Scognamillo. Fonte: site oficial do artista: www.guinga.com 2) capa do disco.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Pra que servem os poetas?

Jorge Adelar Finatto


Na oficina invisível onde trabalham os poetas, as portas e janelas da percepção estão sempre abertas.  O artesanato é difícil. Encontrar poesia nos seres e nas coisas,  com o imenso cuidado de não diminuí-la, é tarefa que exige sensibilidade, entrega, perseverança, humildade. É ofício de uma vida inteira.

A que serve o poeta? Ele tenta descobrir e revelar a poesia errante. A rara essência que existe além do que os olhos podem ver. Procura o poeta, com desvelo, colher a revelação através da construção do poema. O fracasso acompanha esse esforço, temperado, aqui e ali, por um feliz achado.
 
A arte desse silencioso artesão é trabalho não remunerado, clandestino, à margem da agitação e do tempo. Quando um novo poema acontece, é a própria maravilha que se desvela à mente e ao coração dos homens.

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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Alguém visitou

Jorge Adelar Finatto


Alguém visitou
minha tristeza
soltou as gaivotas
no azul insular

não quero ser doido
desmemoriado
habitante
do penhasco

embora só
quero estar junto

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Do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998.
Foto: J. Finatto

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Caso Cesare Battisti

 Jorge Adelar Finatto


Ainda não consegui entender a decisão do governo brasileiro de negar a extradição de Cesare Battisti para a Itália. Na sexta-feira passada, 31/12/10, no último dia de seu mandato, o Presidente Lula decidiu não extraditar o ex-ativista político italiano, condenado à revelia por quatro homicídios em seu país. A Justiça Italiana aplicou-lhe a pena de prisão perpétua pelos assassinatos ocorridos entre 1977 e 1979, época em que Battisti (que nega as acusações) integrava o grupo Proletários Armados pelo Comunismo.

A decisão condenatória foi tomada nas três instâncias da Justiça Italiana. A Corte Europeia de Direitos Humanos, à qual recorreu Battisti, entendeu que no julgamento não houve ofensa ao seu direito de defesa e nem nulidades processuais  por perseguição política (ver, a propósito, comentários no blog do jurista Walter Fanganiello Maierovitch, em 22/02/10 e 03/01/11: maierovitch.blog.terra.com.br).

Não encontro justificativa jurídica ou humanista para a decisão do Presidente Lula, adotada com base em argumentos da Advocacia-Geral da União (AGU), entre eles o do alegado risco para a integridade  da vida de Battisti no caso de ser extraditado.

A Itália é um país democrático, uma das grandes democracias do mundo, e o seu Poder Judiciário é uma instituição respeitada. Não se trata de uma ditadura na qual se restrinjam direitos humanos dos cidadãos. Nem existe notícia de que o Judiciário daquele país aja movido por vingança ou perseguições de qualquer espécie, pelo contrário.

Não cabe ao Brasil, portanto, negar à Itália o direito de executar uma decisão soberana. Como em nosso país não existe a pena de prisão perpétua, a extradição, se concedida, restringiria a sanção a 30 anos de prisão, máximo permitido pela legislação penal brasileira.

As nações democráticas devem-se respeito e colaboração entre si, sob pena de favorecer a impunidade e o avanço do crime organizado, que hoje, como se sabe, opera além fronteiras.

Cesare Battisti encontra-se preso na Penitenciária da Papuda, em Brasília, à espera de uma definição do caso, que agora foi remetido para deliberação ao Supremo Tribunal Federal. As autoridades italianas estão indignadas com a decisão e pretendem dela recorrer junto ao STF e à Corte Internacional de Justiça, com sede em Haia, na Holanda, mesmo que esta não tenha força vinculante.

Hoje é a Itália que exige respeito a uma decisão soberana e democrática. Amanhã poderá ser o Brasil.

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Foto: Cesare Battisti na Penitenciária da Papuda, em Brasília, em 17 de novembro de 2009. Autor: José Cruz, da Agência Brasil. Fonte: Wikipédia.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A viagem da umbela

Jorge Adelar Finatto


Agora todos estão dormindo. Escuto o sino que bate na pequena igreja ao longe. Gosto desse som pela música ancestral que ele traz. Estou sentado diante da janela do escritório. Não leio nem escrevo nada. Respiro o ar fresco da noite e é uma ventura esse respirar.

Em certos dias o coração fica seco. Não navego nenhum mar. Nenhum barco me leva. Parado no cais noturno.

Um guarda-chuva passa voando sobre os telhados de Passo dos Ausentes. A mão invisível o carrega pelo ar. De onde veio, pra onde vai? Outras coisas mais pesadas que o vento voam nos Campos de Cima do Esquecimento a essa hora.

Uma aquarela serrana surge em silêncio. Pinceladas de um delicado pintor. A cálida pintura se compõe e se desfaz a cada instante. Nenhum traço jamais se repete. A vida se transforma. A dor acontece e passa.

O guarda-chuva vai perdendo altura e cai no jardim abandonado na neblina. Calado e feliz como um viajante que acabou de chegar. O dia amanhece.
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Foto: J.Finatto

domingo, 2 de janeiro de 2011

Miséria e corrupção

Jorge Adelar Finatto


No discurso de posse, a Presidenta Dilma Rousseff disse, ontem, que seu governo combaterá a corrupção e empenhará todos os esforços pelo fim da miséria em nosso país. Não sei se as alianças políticas feitas para sua eleição permitirão um ataque frontal à corrupção e à má utilização do dinheiro público, que são, de longe, os maiores problemas do estado brasileiro. Partidos políticos retrógrados e conservadores integram a administração que ora se instala. Só o tempo e os atos concretos de gestão dirão a face que terá o governo da sucessora de Lula.

Espero que a primeira Presidenta eleita do Brasil consiga fazer valer o seu projeto e a sua sensibilidade, enfrentando as tristes forças que, insaciáveis comensais da mesa do poder, continuarão a trabalhar pelo atraso e pela injustiça. Não tenhamos dúvida: no momento em que a má aplicação dos  recursos for corrigida e a corrupção for arrostada com seriedade, o Brasil dará um salto, um belo salto pra fora do buraco. Peixe vivo.

Um país tão rico em recursos humanos e naturais não pode prosseguir tão mesquinho com seu povo.

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Foto: Dilma Rousseff. Reuters. Fonte: www.terra.com.br