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segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Um dirigível pras estrelas

Jorge Finatto
 
ilustração: Maria Machiavelli


ESSA MANIA de escrever pra ninguém é mesmo coisa de doido, difícil de compreender, algo que se prestaria a estudos profundos sobre as razões que movem o ser humano.

Escrever para a nuvem, como se faz num blog, é mais ou menos como mandar uma carta para o espaço dentro de uma garrafa. Provavelmente não estaremos aqui para receber a resposta, quando e se vier.

Um arqueólogo da internet, daqui a alguns séculos (ou segundos, do jeito que as coisas andam depressa), escavará a superfície tênue da blogosfera atrás de registros feitos por antigos blogueiros em cavernas virtuais. Talvez encontre este texto.

O fato é que hoje, nestes confins, por força de um gelado outono (ou invencível melancolia), o cronista escreve para a nuvem e não consegue traçar a primeira palavra do texto de amanhã.

Não há leitores à espera destas mal-traçadas. Acho que nem haverá, além dos arqueólogos da internet. As pessoas têm mais o que fazer, vida difícil, tempo escasso, mil livros pra ler, passam bem sem leituras virtuais.

O problema, se é que existe, é do cronista nefelibata, que não encontra a primeira palavra. O tempo é de acender a lanterna em busca do caminho.

As palavras estão hibernando nos dicionários. Inspiração é só um estado de espírito, e escrever é mais do que isso.

Vivemos um tempo de secas esperanças, mas é preciso seguir em frente.

Como tarda amanhecer quando a escuridão é tamanha!

Nessa hora erma e côncava, vou mesmo é sair por aí no meu dirigível amarelo, deslizando entre nuvens, numa viagem pra fora do planeta.  Quero ir subindo, subindo, numa longa curvatura de silêncio em direção às estrelas. Carrego comigo um novo calepino (como da primeira vez).

No meu dirigível pras estrelas.
 
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Texto revisto, publicado antes em 13.4.2014.
 

domingo, 17 de maio de 2015

Viajar entre as estrelas

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
Solidão é quando cada um se encontra com seu cada qual. No ermo de si mesmo.

Uma travessia sobre o vazio sem rede de proteção.
 
A noite gira a esfera cheia de coisas em movimento, salpicando o espaço com pontos luminosos.
 
Há sempre um trem atravessando a escuridão com um passageiro insone dentro.

O trem divaga sobre montanhas arranhando as alturas. Seu destino é a pequena estação de Passo dos Ausentes.
 
O passageiro levou a solidão pra viajar no cosmos. Anseia por voltar e abrir as janelas da casa da infância outra vez. O sonho.
 
Estes são dias de grande silêncio, exceto pelo ruído espesso do trem cortando o vento.
 
Às vezes o céu noturno está tão perto, claro e límpido, que parece que o trem navega entre as estrelas.
 
Nessas horas dá para ouvir a respiração de Deus.
 

domingo, 15 de junho de 2014

O apanhador de estrelas

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto
 
 
Escrever é estar vivo. Compartilhar isso com o outro é uma forma de claridade . Navego pelo universo a bordo do calepino silencioso, sem sair do lugar. O texto no computador vem depois da viagem.

Esse sentimento aconteceu durante uma bruta falta de luz que lançou a casa e toda a rua e talvez o bairro todo no mais profundo breu.
 
Saí pelos armários e gavetas às cegas, apalpando em busca de coisas capazes de substituir a luz elétrica que desaparecera, pra continuar as anotações que estava fazendo.
 
Me senti um apanhador de estrelas, perseguindo velas, fósforos, lanternas, isqueiros, lamparina a óleo, qualquer coisa que pudesse iluminar a escuridão que me cercava naquele momento.
 
Não tenho apreço pelo lado escuro. O breu das almas, o breu da vida, me desacostuma da alegria. Gosto de claridades.
 
A escuridão me desabriga.
 
Por fim, encontrei uma vela de tamanho razoável com força de moer o escuro. Caderno à mão, retomei a busca de extrair o incomunicável, o desconhecido, o lado escuro dentro de mim, na esperança da rara luz que verte da palavra.
 
O homem é palavra.

O que é um texto, raro leitor, senão um telescópio mirando a espessa névoa dos corações? Quem, senão a palavra, pode vasculhar esse vasto território, dar-lhe alguma voz, forma e sentido?

Quem, senão a palavra, pode nos valer perante nós e o outro?
 
Palavra sem esquecer de ser silêncio. Palavra e silêncio.
 
Na noite calada, o apanhador rumina o escuro, visita distâncias, ruínas, abraça ausências, faz apontamentos, cultiva paciência, estuda as anotações de outros exploradores do universo, ajusta as lentes do seu instrumento. Deseja querer.

É noite de outono, frio, beira do inverno. Viajo pelo cosmos, visito o brilho azul de estrelas que já se apagaram, desvelo sombras inumeráveis, vou à procura do que é e respira, quero conhecer um pouco esse mistério.

O apanhador espreita a noite infinita do mundo em busca de um sinal, um movimento, uma luz generosa e tênue que ilumine os aposentos interiores da casa chamada ser humano.

Eis que a calma luz penetra aos poucos pelas frestas, por debaixo da porta, através do postigo. A luz suave e benigna. 
 
Palavras criam asas, inauguram o vôo.
 
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Texto revisto e atualizado, publicado antes em 9 de janeiro, 2013.

domingo, 13 de abril de 2014

Um dirigível para as estrelas

Jorge Adelar Finatto
 
ilustração: Maria Machiavelli

Essa mania de escrever para ninguém é mesmo uma coisa de doido, difícil de compreender, algo que se prestaria a estudos profundos sobre as razões últimas que movem o ser humano.

Escrever para a nuvem, como se faz num blog, é mais ou menos como mandar uma carta para o espaço dentro de uma garrafa. Provavelmente não estaremos aqui para receber a resposta, quando e se vier.

Um arqueólogo da internet, daqui a alguns séculos (ou segundos, do jeito que as coisas andam depressa), escavará a superfície tênue da blogosfera atrás de registros feitos por antigos blogueiros em cavernas virtuais. Talvez encontre este texto.

O fato é que hoje, nestes confins de abril, por força de um gelado outono (ou invencível melancolia), o cronista escreve para a nuvem e não consegue traçar a primeira palavra do texto de amanhã.

Não há leitores à espera destas mal-traçadas. Acho que nem haverá além dos arqueólogos da internet. As pessoas têm mais o que fazer, vida difícil, tempo escasso, passam bem sem leituras virtuais.

O problema, se é que existe, é do cronista nefelibata, que não encontra a primeira palavra. O tempo é de acender a lanterna em busca do caminho.

Enfim, a questão é que as palavras estão hibernando nos dicionários. A inspiração é só um estado de espírito e escrever é mais do que isso.

Vivemos um tempo de secas esperanças, mas é preciso seguir em frente.

Como tarda amanhecer quando a escuridão é tamanha!

Nessa hora erma e côncava, vou mesmo é sair por aí no meu dirigível amarelo, deslizando entre nuvens, numa viagem pra fora do planeta.  Quero ir subindo, subindo, numa longa curvatura de silêncio em direção às estrelas.

Carrego comigo um novo caderno para escrever (como da primeira vez).

No meu dirigível para as estrelas.
 

sábado, 18 de janeiro de 2014

Milonga del Ángel

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto

 
Habitamos entre nuvens. Os ventos nos açoitam aqui nos Campos de Cima do Esquecimento em sua louca debandada em direção ao sul do continente. 

Juan Niebla fez o convite para ouvi-lo tocar seu bandoneón. Estamos agora na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes. O concerto intitula-se Milonga del Ángel, música de Astor Piazzolla, leitmotiv da reunião.
 
Talvez porque hoje é sábado, e domingo costuma ser um dia agonizante, celebramos a vida escutando músicas que tocam fundo nosso coração.

Niebla é cego, guardião da memória da cidade junto com Don Sigofredo de Alcantis.

Estamos no Café dos Ausentes que é o que restou da velha estação. Fechamos os olhos, sentimos  a melodia que emana dos dedos magros e ágeis.

As mãos do cego apalpam o invisível, ressuscitam sonhos e emoções.

Iniciamos a nossa charla após o concerto, como de costume.
 
Diz Niebla:

- Imaginem uma cidade espiritual, em que os ancestrais vagueiam em silêncio pelas casas e ruas, vivem nos antigos retratos, nas cartas guardadas no fundo de gavetas, sobrevivem na memória dos poucos que ficaram. Isso é Passo dos Ausentes.

- Para onde nos levam os caminhos entre as estrelas, Juan? - indaga Don Sigofredo, piscando o olho em minha direção.

- Não pense que não percebi a piscadela, quimérico amigo. Nunca duvide das antenas deste velho morcego. Mas já que pergunta, na verdade não sei aonde levam aqueles caminhos. Tu és o filósofo, esforçado tradutor do intangível.

- Sou só um cego numa estação de trem abandonda esperando o comboio fantasma que vai levar-me um dia por trilhos desconhecidos. Por enquanto é música e é fraterno encontro, estamos todos vivos, graças a Deus.

- Também ando pela vida à procura de respostas -, continuou Niebla. - Ouçamos o que nos disse o nunca suficientemente lembrado poeta e filósofo Hölderlin, no seu Fragmento de Hipérion*:

"Interrogo as estrelas e elas permanecem mudas. Interrogo o dia e a noite, mas eles não respondem. De mim mesmo, se me interrogo, entoam apenas sentenças místicas, sonhos sem interpretação".

A solidão é o que mais nos aproxima nessas reuniões. Estamos sós na beira dos penhascos. Caminhamos para o oblívio nesse esquecido fim de mundo.

Acreditamos em anjos, nos consolamos. Entre nuvens.

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* Hipérion ou O Eremita na Grécia. Friedrich Hölderlin. Tradução, notas e apresentação por Marcia Sá Cavalcante Schuback. Forense, Rio de Janeiro, 2012.

Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Admitido por concurso público, ocupa o cargo desde 1940, na estação de trem abandonada da cidade. Tem 89 anos, é cego desde os 15.

A cidade perdida: as origens:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/06/cidade-perdida-as-origens.html