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sábado, 5 de agosto de 2017

Van Gogh: a vida em amarelo

Jorge Finatto
 
Girassóis, 1889, Van Gogh, Van Gogh Museum, Amsterdam
 

A PINTURA DE VAN GOGH expressa o grito de um animal ferido, desesperado na selva do mundo. Alguém que não podia suportar a realidade e encontrou na arte um meio de sobreviver e fugir do grande nada que o cercava. Não conseguindo sustentar-se, vivendo na eterna dependência do irmão mais moço, Theo (também ele com dificuldades financeiras), o dia a dia era para ele uma jaula com raras oportunidades de movimento.
 
Aí entra  a pintura, a composição obsessiva de um quadro após outro, única maneira de sentir-se útil e esperar algum reconhecimento (que quando chegou, de forma inequívoca, no Salon des Indépendants, de Paris, em março de 1890, não lhe disse muita coisa, pois já estava concluindo a travessia da dolorosa ponte que o levaria à morte em julho daquele ano). A literatura era outro caminho de fuga. Não apenas escrevia muito (cartas basicamente) como lia bastante.
 
Os últimos três anos da vida de Van Gogh (1888 - 1890) foram extremamente produtivos. A explosão das cores. A vitória do talento sobre a pobreza e o abandono. A criação alcançou a plenitude do gênio. Por outro lado, os acontecimentos de Arles (cortou com navalha a orelha esquerda após desentendimento com Paul Gauguin), as sucessivas internações hospitalares, as discussões, a rejeição da comunidade local a esses e outros eventos que o envolveram, acabaram por desestruturá-lo mais ainda internamente. À doença psíquica (nunca esclarecida e nem tratada a jeito) junta-se a miséria material.

Autorretrato, 1887. Van Gogh Museum
 
Van Gogh era um homem visceralmente carente e sentimental. Tinha o temperamento muito difícil e explosivo. Conviver com ele não era tarefa fácil.

A esses traços soma-se o artista superdotado e autodidata, possuidor de extraordinário poder de observação. Alquimista das formas e das cores, nas suas mãos o mundo transmutava-se em ofuscante e singular beleza.
 
Ser feliz não fazia parte do seu cotidiano, salvo quando criava, ou nos eventuais momentos de calmaria. As crises sucediam-se qual as rajadas do impiedoso Mistral que, seco e frio, leva tudo por diante, incomoda ao bater portas e janelas, ao levantar saias e desfazer cabelos, varrendo as folhas do outono. (Não poucas vezes perdeu o chapéu de palha na passagem do vento cortante.)
 
A tudo ele enfrentou e respondeu do único jeito que sabia e podia: no silêncio da tela, com o mistério e a força de sua paleta, ao ar livre, perto da natureza, nos dias de trabalho longe da ingente loucura, sua e dos outros.
 
O amarelo foi talvez a mais alta paixão de Van Gogh, a que correspondeu e jamais o traiu. La vie en jaune. A obra que nos deixou é o testemunho vivo de que, apesar de tudo, havia  doçura, amor e esperança em seu coração. A vida em amarelo num mundo de sombras.
 

terça-feira, 17 de março de 2015

O balão e os girassóis

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto

Uma criatura mortal  não pode dar-se ao luxo de perder tempo com coisas que não valem a pena. A areia não pára de escorrer na ampulheta. Cada dia pode ser o último.

Não se deve repetir velhos erros. Foi por isso que, tempos atrás, desisti de dar a volta ao mundo num balão ao lado de Nefelindo Acquaviva, inventor e construtor de objetos voadores em Passo dos Ausentes. Sou um sobrevivente nesse tipo de voo e não quero arriscar mais.

Há duas semanas, contudo, repeti a besteira e quase morri.
 
Entrei outra vez num balão a pedido de Nefelindo. Ele foi tão insistente e eu tão fraco que, para não contrariar o louco amigo, não soube dizer não. E lá me fui ao ar, mais uma vez, num cesto instável, a bordo daquela estrovenga.
 
Estávamos a mil metros de altura e tudo parecia bem. Até que veio um forte vento do Contraforte dos Capuchinhos e começou a nos arrastar e sacudir. Eu pressenti ali o fim dos meus dias. Não os de Nefelindo, que já sofreu mais de quarenta quedas e está aí muito bem, obrigado.

Com a ventania, sentei-me no fundo do cesto e rezei. Me arrependi dos pecados, dos dissabores que causei, das vezes em que não fui melhor com meu semelhante, das vaidades e dos tantos enganos.

Enquanto me apressava em acertar as contas com o Eterno, o balão começou a rodopiar e afundar como uma rolha solta num tanque de lavar roupa que se esvazia. Naquele tormento perdi meus óculos de fundo de garrafa. De repente comecei a ver umas cabeças amarelas me olhando na boca do balão enquanto o aerostato se arrastava e batia em coisas que pareciam cordas.

Nefelindo gritava e ria (sim, ria às gargalhadas como um louco em surto), ao mesmo tempo em que tentava manusear os instrumentos de direção do equipamento. Momentos antes de o balão bater contra o solo, ele despencou de cabeça pela borda. Só vi as pernas desaparecendo no ar, seguindo o resto do corpo.

photo: jfinatto

O baque do balão no chão foi forte. A muito custo saí me arrastando do cesto emborcado. Quando enfim abri os olhos, o que vi foi um amarelo radiante inundando o ar.

Nefelindo apareceu como por milagre na minha frente e me ajudou a levantar. Não sei como, mas estava vivo, cheio de folhas amarelas pela roupa:

- Uma experiência inolvidável, meu amigo, um voo inesquecível. Tudo como havia previsto,  inclusive com a perigosa travessia do Vento Roncador de março. Um momento soberbo. Essa máquina é uma conquista da ciência aeronáutica, meu caro. Toma lá os teus óculos, te apruma enquanto faço algumas anotações.

Os meus óculos estavam com os aros retorcidos, mas as lentes permaneciam intactas. Então Nefelindo retirou do bolso do casacão de aviador (que lhe desce até os tornozelos) o Moleskine vermelho. Livrou-se do capacete de couro da Primeira Guerra Mundial (de um seu avô). A abundante cabeleira negra escorreu até os ombros. Sentou-se encostado no que sobrou do balão e começou a escrever e resmungar coisas.

- Um grande acontecimento, uma aventura impressionante -, conjecturava alisando o grosso bigode virado pra cima nas pontas. Mostrava uma energia difícil de entender num homem de 70 anos.

A queda vertiginosa sobre uma plantação de girassóis, no Vale do olhar, com a mão de Deus nos amparando, foi o que restou daquele passeio. E o maluco se vangloriando. Sobrevivemos porque Deus quis.

Só mais tarde, um pouco mais calmo, percebi a beleza daquele lugar. Estávamos cercados de girassóis dentro de um quadro de Van Gogh.

- Um cara na sua idade, tendo levado já tantas sacudidas na vida, não devia permitir-se essas loucuras ao lado de um sujeito perigoso como Nefelindo Acquaviva - disse com preocupação meu Anjo da Guarda.

Um Jeep foi nos buscar. Quando cheguei em casa, às cinco da manhã, com uma dor latejante espalhada pelo corpo, atirei-me no sofá do escritório, enrolei-me na manta e pedi ao meu Anjo da Guarda, entre envergonhado e exausto,  não me acordasse antes da Páscoa...

Um girassol não faz amarelo sozinho.