Mostrando postagens com marcador Heitor Saldanha. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Heitor Saldanha. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Escritores fantasmas reúnem-se em Passo dos Ausentes

Jorge Adelar Finatto
 

photo: j.finatto


Uma tapera solitária, à beira da ruína, será o local de reuniões do Congresso dos Escritores Fantasmas de Língua Portuguesa, a realizar-se nos primeiros dias do outono em Passo dos Ausentes.

O evento é uma das principais atrações culturais dos Campos de Cima do Esquecimento, ao lado do festival Música do Fim do Mundo, que acontece em junho, e do Teatro Kabuki na Névoa, em novembro. A sessão de abertura ocorrerá no dia 22 de março próximo.

O fantasma de Álvaro de Campos está entre nós e falará na abertura do encontro. Foi o que declarou ontem Heitor dos Crepúsculos, poeta suicida, assombração-mor da cidade, organizador do conclave. Disse, ainda, que o bardo português é o anfitrião designado este ano para o congresso. Também já chegaram os fantasmas de Oscar Wilde, Rainer Maria Rilke, Bashô, Heitor Saldanha e Henrique do Valle, convidados especiais que serão homenageados nesta edição.

Estão todos hospedados na pensão Ao Viajante Solitário, com ampla vista para o Vale do Olhar. O atual administrador do estabelecimento, António Alto da Noite, afirma que os literatos fantasmas não são maus hóspedes:

- Não comem nem bebem nada. Não usam o banheiro nem tomam banho. Em geral fazem silêncio. Às vezes arrastam móveis, principalmente nos dias de chuva (neste lugar chove pelo menos uma vez ao dia). Materializam-se a qualquer momento, mas não costumam demorar.

- É gente do sossego, leitura. São sentimentais, são estranhos. Mas cada um no seu cada qual. No café da manhã, sentam-se calados ao redor da mesa, olhando um ponto invisível à frente. De repente, desaparecem. É o jeito deles.
 
fachada da pensão Ao Viajante Solitário.
photo: j. finatto

A solidão da escrita será um dos temas do encontro, que terá ainda a leitura de textos pelos próprios autores na biblioteca da cidade, programa aberto ao público.

Mocita de La Vega, diretora da biblioteca e única funcionária, organiza o Salão dos Passos Perdidos para receber os poetas, escritores e convidados. Está tirando o pó dos móveis e livros e organiza o fichário, um tanto abandonado nos últimos 30 anos devido à falta de leitores (a população reduziu-se pela metade, a juventude não fica mais aqui). A diáspora dos ausentes.

Revelou a bela bibliófila que, ao passar o espanador numa mesa, ficou surpresa ao ver o fantasma do poeta Rilke sentado na poltrona diante da janela dos vitrais roxos. Vestia casaco e calça de lã cinza-escuros e uma gravata lilás sobre a camisa branca.

Ao ser descoberto, o poeta de Praga descruzou as pernas, esboçou um meio-sorriso e, levantando-se, convidou-a pra dançar. O vate das Elegias de Duíno segredou-lhe coisas à concha do ouvido.

- Um perfeito sedutor na palavra escrita como na falada, disse Mocita.

E saíram os dois a rodopiar entre as estantes, sob os lustres de cristal, bailarinos de um tempo fora do tempo, ao som de uma inaudível melodia sentimental de Amadeus Mozart.

Heitor dos Crepúsculos, acolhedor-geral do encontro, é a alegria em pessoa nos últimos dias, voa de um lado para outro, toma mil providências, fazendo esvoaçar sua echarpe cor-de-rosa. Materializa-se e desmaterializa-se com grande animação em toda parte, deixando no ar um pó branco cintilante.

Quando menos se espera, Dos Crepúsculos aparece sobre a copa de uma árvore estendendo um tecido de seda. Outras vezes, espalha bandeirinhas coloridas nos portais das casas ou desfia novelos amarelos de lã em torno dos bancos da Praça da Ausência.

Todos notamos um certo exibicionismo da parte de Heitor, mas afinal é o momento dele. E fantasmas são, por natureza, exibidos, do contrário não seriam fantasmas.

Passo dos Ausentes engalana-se para receber os voláteis escrevinhadores. Até jornalistas do Japão estão chegando para acompanhar o fantasmagórico congresso.

Desde que a cidade foi fundada por alguns padres jesuítas e famílias de índios guaranis sobreviventes do massacre de São Miguel das Missões, em 1756, não se via tanto entusiasmo por estas bandas.

O blogue acompanhará de perto o encontro, que já tem confirmadas as palestras de Machado de Assis, Lima Barreto e Eugénio de Castro. A programação completa bem como o nome dos participantes serão divulgados nos dias vindouros.

Um painel que promete, segundo alguns comentam, é aquele sobre os escritores mortos-vivos, isto é, os que estão vivos mas não têm leitores. Cerca de 1.200 mortos-vivos já se inscreveram para este dia. A este respeito, assim se manifestou Heitor dos Crepúsculos:

- A parte do esquecimento que nos cabe, nesse mundo de ruidosas vaidades e egos exacerbados - o velho mundinho da literatura -, é pequena se comparada à dos escritores mortos-vivos. Nós, pelo menos, não temos contas pra pagar nem espelho em casa.
Texto revisto, publicado em 04 de março, 2013.
 

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Os esquecidos e os lembrados

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto.Aparados da Serra, RS.
 


Integração
 
tem dias que me sinto
tão em tudo
que me parece que não vou morrer
construo-me a cada instante
no próprio ar que respiro
me pouso longe
tranqüilo
onde no olho do pássaro
o vôo já está completo
onde no pouso do pássaro
fica vibrando a distância
que a ave traz inserida
ao repentino do vôo
duma iminente partida
são as pequenas coisas
que fazem a nossa vida
eu vivo o que deslimito *
 
                            Heitor Saldanha
 
Nunca entendi bem os motivos que fazem de certos escritores ilustres desconhecidos. Embora tenham um bom trabalho literário, permanecem na sombra. Ao passo que outros, com pouco ou nenhum mérito, são convidados para almoçar todos os dias no Olimpo dos deuses das letras e  ocupam generosos espaços nos meios de comunicação.
 
O livro, na minha visão, é um objeto espiritual, antes de qualquer coisa. Quanta ingenuidade! Na visão dominante, livro é negócio como outro qualquer. Existe uma luta de facão, no mundo editorial, para impor autores no mercado. Tudo ou quase tudo passa pelo departamento comercial.

O que se vê é que não há mais divulgação desinteressada em jornais, revistas e meios eletrônicos. Tudo tem um preço. A começar pela colocação de livros nas livrarias, onde cada setor tem um valor, dependendo da localização. Provavelmente existem exceções, poucas.

Torna-se cada vez mais comum ver detentores de espaços escritos/falados/televisados, na imprensa, propagandearem, sem nenhum pudor, suas próprias produções, de forma insistente. Apropriam-se dos veículos de informação como se fossem algo pessoal e não social.

Claro que há escritores de qualidade que conseguem furar o bloqueio. Mas o sistema em vigor é altamente excludente e privilegia a homogeneidade autoral em vez da diversidade. Trocam-se os nomes dos escrevinhadores, mas o texto é sempre o mesmo.

A tal ponto a mesmice se instalou, que dificilmente veremos surgir, hoje ou no futuro próximo, no Brasil, um escritor com a sintaxe genial de João Guimarães Rosa. O ambiente é totalmente desfavorável à literatura enquanto invenção.
 
Criadores de talento, em todas as áreas, amargam na úmbria do anonimato. O fenômeno não começou agora. Mas atualmente está muito pior do que há 20 anos.

O tempo, às vezes, faz justiça e resgata alguém que ficou esquecido na álgida furna. Mas o tempo é um senhor muito velho, de longas barbas de nuvem, e tem lá seus muitos lapsos de memória.

O que restou de democrático, no fim das contas, é a internet, pelo menos enquanto não vier um marco civil criando uma internet ruim para pessoas comuns como nós e uma outra, rápida e poderosa, para os grandes meios de comunicação.

Na literatura, como na vida, uma atitude é essencial: persistência. Um escritor apenas razoável talvez não se torne um escritor brilhante. Mas, com trabalho e coragem para evoluir, poderá melhorar muito o resultado de sua escrita.

O que importa é não publicar qualquer coisa, e não desistir nunca. Além disso, temos a eternidade pela frente, porque ninguém se importa mesmo.

Não falo essas coisas por mim, que já fui inscrito no livro-tombo do esquecimento em vida, escritor interiorano, cronista de temas pastorais, correspondente do fim do mundo. Falo por autores de real importância que não têm voz. E pelos leitores que não os conhecerão.

Lembro alguns deles, aqui do Rio Grande do Sul, mas existem outros: Jorge Jobim, pai de Tom Jobim; Heitor Saldanha, Henrique do Valle e Paulo Corrêa Lopes, todos excelentes poetas, todos encobertos pela névoa da indiferença.

Se você leu ao menos um deles, parabéns. Se não, procure descobrir em algum livro-velheiro, pois não são editados há muitos e muitos anos (já falei sobre cada um deles no blog). O que escreveram é da melhor qualidade, mas nenhum escritor, crítico, professor ou jornalista se ocupa deles (com raríssimas exceções). Por quê? Eu me pergunto e não sei a resposta. Simplesmente não estão entre os eleitos. Habitam a caverna dos esquecidos.

Alimento meu coração de leitor e minhas estantes com o que vasculho nos sebos. E que as musas não nos abandonem nunca.

________________

*A Hora Evarista, Heitor Saldanha. Instituto Estadual do Livro, Porto Alegre, 1974. p. 18.
 
Escrever em língua portuguesa:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/05/escrever-na-lingua-portuguesa.html