terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Noites do hospital

 Jorge Finatto

photo: jfinatto



O câncer colocou-o pra  flutuar numa nuvem de morfina.

Na sala de cirurgia, gente vestida de branco, teto alto, máscaras, luz chapada sobre seu corpo.  Uma vaga claridade entrava pela janela fechada. Um sono longo e induzido. O corte, o sangue, aparelhos. A urgente luta pela vida.

Tinha passado muitos anos ilhado em gabinetes, mergulhado em processos, decifrando histórias, conflitos, decidindo destinos. Enquanto habitava a ilha, o Guaíba fluía sonoro do outro lado da janela.

O rio e seus barcos. O rio e seus peixes. O rio e os admiradores do pôr do sol. O rio e a promessa de viagens nunca feitas.

Os sonhos há muito tinham batido em retirada. Quando foi a última vez que teve tempo para si, para a família e amigos? Não lembrava mais.

Pensava nessas coisas nas noites do hospital, deitado na cama, quando a dor cedia. Voava na nuvem gris, entre brancos aventais e a parafernália eletrônica.

Depois ficou tudo pra depois.

Passou a olhar o mundo com outra mirada. Nada valia mais do que estar vivo, vivo simplesmente.

O risco de desaparecer fez com que se voltasse, sem mais demora, para o que havia de mais precioso na Via Láctea: o pequeno planeta dos seus afetos. 
Somos um sopro de Deus, pensou. 

Sentia-se por um fio, como um astronauta fora da nave-mãe.
 
Precisava de uma chance pra refazer laços perdidos, dar abraços, agradecer, pedir desculpas.

Precisava sobreviver e chegar do outro lado daquele rio sem margens. 
Uma oportunidade foi tudo que pediu a Deus. 

Naquela noite não dormiu até ver o sol clarear a janela do quarto de hospital. Era o primeiro dia da nova vida. Não podia desperdiçar um segundo sequer.

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Texto revisto, publicado em 26 agosto 2015.