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quinta-feira, 23 de abril de 2020

Onde estás, alegria?

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto


Cada um se vira como pode pra catar alegria em dias assim tão sombrios. Eu tenho me valido das crônicas do sempre lúcido, terno e lírico Rubem Braga (1913 - 1990). Em qualquer livro, qualquer crônica,  o senhor Braga nos enche a alma de felicidade e faz esquecer a peste que assola o planeta e que, infelizmente, já fez tantas vítimas.
 
Um desses livros é "50 crônicas escolhidas", de Edições BestBolso, de 2016. Pequeno, de bolso, leva-se pra qualquer lugar, mais a leveza e o encanto. Inefável alegria poder ler um autor com tanto a dizer e de um jeito único.
 
Ouvir música também é um asseio contra o mau agouro. Descobri no YouTube uma música deliciosa de Chiquinha Gonzaga e Machado Careca, de 1895: Corta-Jaca, um maxixe. Maxixe é uma dança criada, segundo o professor Google, por afrodescendentes brasileiros (caso da própria Chiquinha, compositora e maestrina extraordinária). A interpretação - cantante, dançante e belíssima - é de Lysia Condé.
 
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Corta-jaca. Lysia Condé, YouTube:

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Uma fada no front

Jorge Adelar Finatto

Rio Guaíba e Porto Alegre. photo: j.finatto

 
Mas também não avisam nada! Foi por acaso que eu notei: a primavera chegou. Olho pela janela e vejo um céu esbranquiçado e murcho. Na água cinzenta do rio arrasta-se uma chata de carvão. E um débil mormaço faz a cidade quase feia. Ah, mas não tem importância. Leio no cabeçalho do jornal: terça-feira, 26 de setembro de 1939. Assim, pois, a primavera chegou, e é de meu dever digirir-lhe as saudações de praxe.
                                                 Rubem Braga, Uma fada no front *

Esses dias falei sobre o livro O lavrador de Ipanema, seleção de crônicas de Rubem Braga (1913-1990), abordando seu amor à natureza e publicado em 2013, em primorosa edição. Agora pesquei na estante, no fim de semana que passou, para reler, Uma fada no front, antologia de crônicas que ele escreveu  no período de julho a outubro de 1939, quando viveu em Porto Alegre. Os textos foram escritos originalmente para o jornal Folha da Tarde.

A edição que tenho é a primeira, de 1994, e teve organização e introdução do jornalista gaúcho Carlos Reverbel, amigo do autor. Conforme conta Reverbel, Rubem Braga chegou a Porto Alegre viajando num vapor, como era costume naquela época. Ao descer no cais da cidade, foi preso juntamente com Reverbel, que o aguardava. A prisão ocorreu por ordem de Filinto Müller, chefe da polícia política de Getúlio Vargas durante o regime ditatorial do Estado Novo (1937-1945).

Devido à intervenção do proprietário da Companhia Jornalística Caldas Júnior, Breno Caldas, junto ao interventor do Estado, Cordeiro de Farias, a ordem de prisão foi ignorada e ambos foram libertados passadas algumas horas. Breno Caldas contratou Rubem Braga para ser redator do Correio do Povo e para escrever uma crônica diária na Folha da Tarde. A primeira crônica foi publicada na edição de 11 de julho e a última, em 28 de outubro, num total de 91 textos. Desses, Reverbel selecionou 40 para Uma fada no front.

Interessante observar como o jovem Rubem Braga se parece com o velho no modo de escrever. É o mesmo escritor. O cronista tinha na ocasião apenas 26 anos, havia passado por algumas redações e publicado seu primeiro livro, O conde e o passarinho. Na altura já era um escritor no domínio do ofício. As mudanças de vida que vieram depois serviram para ampliar sua visão das coisas, tornando-o mais experiente. Mas o escritor de mérito já estava presente no jovem de 26. Não se tratava mais de uma promessa.

Também chama a atenção a facilidade com que o escritor se apropria em tão pouco tempo da vida de Porto Alegre, do jeito da cidade, seus habitantes, seu rio. Isto sem deixar de lado o que se passava no país e no mundo. Pelo contrário, estava atento a tudo. Na Folha escreveu sobre o início da 2ª Guerra Mundial tão logo eclodiu, com a invasão da Polônia pela Alemanha nazista em 1º de setembro de 1939. Infenso ao totalitarismo, dentro e fora do Brasil, repudiou o nazismo e tudo que representava. Sempre ou quase sempre judicioso nos juízos que fazia:

Deus encheu meu coração de um frio desprezo pelo nazismo e de um cálido amor pela Alemanha. (idem)

A Porto Alegre da época contava 400 mil almas. Uma cidade em que as pessoas ainda possuíam reservas de tempo, de bom humor e disposição para o convívio e o encontro. Um lugar onde os habitantes se cumprimentavam.

Nas crônicas porto-alegrenses de Rubem Braga, encontramos os bondes, a rua da Praia, uma figueira velha, manacás, bambus, jacarandás, Itapoã, Belém Velho, Petrópolis, Associação de Artes Plásticas Francisco Lisboa, o abandono dos índios guaranis, artistas e escritores locais como Carlos Scliar, Telmo Vergara e Erico Verissimo, entre outros temas. A obra trata com lucidez os problemas sociais e o indivíduo no meio deles.

O livro vale por isso e muito mais. É difícil não sentir empatia pelo escritor nascido em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, desde as primeiras linhas. Ele tem o dom de fundir a crônica diária de jornal com o mais intenso e despojado lirismo. Foi, ao lado de Alvaro Moreyra, o mestre da crônica literária no Brasil.

Voltemos à rua da Praia. Voltemos, que hoje é sábado e faz sol. A tarde vai ser linda. Eu, por mim, voltarei. Eu me plantarei no meio da rua, vagarei para cá e para lá. Vagarei triste e vagamente aflito, sem ganhar sorrisos, mas ao mesmo tempo satisfeito porque haverá sol e haverá mulheres lindas andando ao sol e essa coisa boba e simples me comove e me faz bem, muito mais bem que a música e os versos e qualquer outra coisa do mundo. (idem)
 
 A crônica de Rubem Braga convida o leitor a passear por seus aposentos interiores, suas alamedas e pátios. Mesmo quando o autor parece triste, suas palavras passam esperança e um desejo de que tudo dê certo. Nas páginas de Uma fada no front ninguém sai ileso de poesia.
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* Uma fada no front. Rubem Braga, 154 pp. Seleção e introdução de Carlos Reverbel. Iustrações de Joaquim da Fonseca. Editora Artes e Ofícios, Porto Alegre, 1994. Os excertos são das páginas 87, 31, 112, respectivamente.

O lavrador de Ipanema:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/11/o-lavrador-de-ipanema.html 

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

O lavrador de Ipanema

Jorge Adelar Finatto
 
Rubem Braga. fonte: divulgação

Não, esta crônica não pretende salvar o Brasil. Vem apenas dar testemunho, perante a História, a Geografia e a Nação, de uma agonia humilde: um córrego está morrendo. E ele foi o mais querido, o mais alegre, o mais terno amigo de minha infância.*

                                          Rubem Braga

Quando vou a Porto Alegre, costumo visitar uma livraria que tem, logo na entrada, uns caixotes com livros em promoção. Descobri esse espaço não faz muito tempo e o incluí no meu roteiro literário.
 
Nos caixotes há centenas de volumes e é preciso ter paciência e tempo para garimpar. Eu tenho. O prêmio pode ser um livro daqueles de não se esquecer e a preço encorajador nesses tempos difíceis. 
 
Da última vez em que lá estive, a sorte estava comigo. Encontrei um livro que considero uma preciosidade editorial. Trata-se de uma edição primorosa de crônicas de Rubem Braga (1913-1990), versando sobre o seu amor à natureza. Intitula-se O lavrador de Ipanema.
 
É uma antologia recente (2013), organizada com visível carinho e esmero por Januária Cristina Alves e Leusa Araujo. O belo projeto gráfico tem a autoria de Leonardo Iaccarino. Capa dura, papel excelente, tipo de letra, cores e diagramação impecáveis. Mesmo um sujeito com grossas lentes como eu sente-se à vontade diante das páginas.

A sensível e esclarecedora nota editorial é feita pela escritora e editora Guiomar de Grammont. Pra completar, povoam o volume belas ilustrações de Andrés Sandoval.
 
É o tipo de livro que todo escritor gostaria de fazer. Um livro que é, ao mesmo tempo, uma jóia. A edição está à altura dos textos do Príncipe da Crônica, como o chamava o editor da revista Manchete, Adolfo Bloch.

capa e duas das ilustrações. fonte: site Editora Record

A extraordinária beleza das crônicas, sua simplicidade e seu conteúdo humanista nos levam para esta ilha de felicidade que só a leitura proporciona. É o que eu sinto ao ler e reler os 14 textos que compõem a obra.
 
Rubem Braga é um clássico da crônica em língua portuguesa. Faz parte da seleta estante onde figuram autores que deram dignidade e relevo ao gênero, tais como Machado de Assis, Alvaro Moreyra, Drummond, Nelson Rodrigues e José Carlos Oliveira, entre outros.

Com ternura e sem ostentação, o escritor revela-nos histórias sobre plantas, pássaros, rios, córregos, matas, cidades e pessoas, chamando a atenção para a conflituosa relação homem-natureza. Assim fazendo, humaniza-nos. É bastante conhecido o fato de que transformou o terraço da cobertura onde vivia em Ipanema, na cidade do Rio, numa plantação de árvores frutíferas e outras plantas.

Rubem Braga foi amigo e defensor da natureza muito antes dos movimentos ambientalistas. É o escritor comprometido com a vida. Trabalha com poucas palavras, mas com tal riqueza, elegância e força expressiva que acaba fazendo de cada crônica uma obra de arte.

O autor conseguiu, com seu humanismo e maestria de artesão, extrair das palavras aquilo que elas podem dar de melhor.
 
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*O lavrador de Ipanema, Rubem Braga. Trecho da crônica Chamava-se Amarelo (págs. 78/83). Editora Record, Rio de Janeiro, 2013.
Leia também sobre Rubem Braga: A borboleta amarela
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/01/a-borboleta-amarela.html
  

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Saudade da crônica

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto. Oceanário de Lisboa
 
Por que se gosta de um autor? Gosta-se de um autor quando, ao lê-lo, tem-se a experiência de comunhão. Arte é isso: comunicar aos outros nossa identidade íntima com eles. Ao lê-lo eu me leio, melhor me entendo. Somos do mesmo sangue, companheiros no mesmo mundo. Não importa que o autor já tenha morrido há séculos... 
                                                                             Rubem Alves*

Como leitor de jornais e revistas, quero partilhar uma falta. Não encontro hoje nenhum grande cronista na imprensa brasileira. Assim como o futebol, a nossa crônica passa por momento de pungente anemia.

O mais que se lê, com poucas exceções, são textos de autoajuda ou de rasa interpretação da realidade, escritos por jornalistas ou escritores que, apesar do esforço, não encontram na crônica sua melhor forma de expressão.
 
O bom cronista, na minha opinião, é aquele cuja arte nos encanta. Sentimos sua falta quando não o lemos. Esse que nos faz sonhar e ver o mundo de um modo diferente. Nele encontramos o prazer da leitura. Um certo mal-estar nos invade na ausência de seus textos.

Quando vou à banca da esquina, hoje, não tenho mais a quem procurar.

O cronista de que sinto falta é o que cultiva a minha sensibilidade, apurando-a. Pela mão dele as pequenas coisas do cotidiano ganham relevo. Ele ilumina a vida comum com sua lente sensível e, assim procedendo, me ilumina. É o artista que sabe ver os fragmentos que fazem da existência esse curioso, difícil e belo caleidoscópio.

Agora, para encontrar um cronista de fé, tenho de recorrer a velhos jornais e velhas revistas, ou aos livros. Menciono alguns deles, mas existem outros: Tarso de Castro, Nelson Rodrigues, Alvaro Moreyra, José Carlos Oliveira, Rubem Braga, Drummond, João do Rio, Rubem Alves (este, infelizmente, falecido no último sábado).

Todos grandes talentos, todos mortos. Os meios de comunicação prestariam um relevante serviço aos leitores se republicassem, de vez em quando, alguns de seus textos. E se os lessem em rádio e televisão.

Estarei exagerando? Não estou fazendo justiça aos cronistas da praça? Caso o leitor conheça algum, terei prazer em registrar aqui a informação.

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Ostra feliz não faz pérola, Rubem Alves, Editora Planeta, pp. 178/179, São Paulo, 2012.
 

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Alvaro Moreyra

Jorge Adelar Finatto
 
 
Alvaro Moreyra
 
 

Se um dia tiver de escolher um cronista pra levar para a ilha deserta (essa pequena ilha imaginária que  todo mundo tem, de náufrago, com uma só palmeira, perdida no meio do oceano), este cronista será o porto-alegrense Alvaro Moreyra (1888 - 1964).

O Brasil tem cronistas de valor, o sempre lembrado Rubem Braga é, com justiça, um bom exemplo. Mas nenhum tem a sintaxe tão refinada, natural, despojada e poética de Alvaro Moreyra. Não será exagero dizer que ele fundou a moderna crônica brasileira, conforme afirmou Guilhermino Cesar:

Alvaro Moreyra teve o privilégio de criar a crônica moderna no Brasil. Chegou a ser o mais lido dos nossos cronistas. A influência que exerceu é perceptível em muitos autores que vieram depois. Rubem Braga, por exemplo, parece dever alguma coisa ao autor de Um sorriso para tudo.¹
 
As palavras parecem gostar de ser tocadas pela mão do escritor. Passeiam com ele, brincam, mergulham, saltam da página, seduzem e se deixam seduzir. Adoram estar perto do senhor Moreyra (ele acrescentou o y ao nome em lugar do i).
 
Não há sobras nem há faltas no texto do autor (principal influência literária de Carlos Drummond de Andrade, nos anos de formação, entre os escritores brasileiros).

São breves composições que têm a invulgar capacidade de traduzir sentimentos, pensamentos, estados de espírito, aquarelas da alma que normalmente são difíceis de pintar.
 
A leveza, o humor, a bondade, a delicadeza e a ironia inteligente (que nunca se confunde com grosseria) são sua marca.
 
Dele disse Drummond:
 
Uma impressão de magia singela: com poucas e leves palavras, um y e algumas reticências, ele soube dizer finas coisas, que nos tocaram.²

Um olhar amoroso sobre os seres e a vida é o traço deste artesão do verbo.

A injustiça e o sofrimento das pessoas não passam despercebidos nas páginas deste comunista devoto de São Francisco de Assis.

Poeta, cronista, diretor de revistas importantes onde publicou autores como Oswald de Andrade e Carlos Drummond, produtor e apresentador de programas culturais de rádio, teatrólogo (iniciou o movimento de renovação do teatro em nosso país junto com a mulher, Eugênia Moreyra, através do Teatro de Brinquedo),  Alvaro Moreyra sempre levou Porto Alegre e o Guaíba no coração por onde andou.

Estas impressões vêm a propósito de ter descoberto agora a edição de uma antologia de crônicas do escritor, recolhidas dos vários livros que publicou no gênero. É a primeira publicação desta natureza dedicada ao autor de Havia uma oliveira no jardim. A obra faz parte da Coleção Melhores Crônicas, da editora Global, com seleção e prefácio de Mario Moreyra.

Tomo a liberdade de sugerir aos meus dois leitores que não deixem de levar para casa este livro. Estou certo de que viverão momentos de felicidade na companhia do senhor Arlequim da Silva (pseudônimo de Alvaro).

... E fico a ver navios. É um passatempo. O mar, por ser sempre o mesmo, é diferente sempre. Às vezes, verde, com franjas de espuma. Outras vezes, azul, parado, imóvel. Em certas manhãs, parece uma cauda de pavão... Eu gosto do mar. Paro, horas esquecidas, na areia da praia, olhando as ondas, marujamente, cheio de uma nostalgia deixada em mim pelos portugueses meus ancestrais... E fico a ver navios...
É o que tenho feito em toda a minha vida...³
 
                                         Alvaro Moreyra *

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Foto de Alvaro Moreyra: reprodução de fotografia do escritor publicada na revista  Para Todos, de 19 de março de 1927 (coleção do autor do blog).
 
¹Alvaro Moreyra, Jorge Adelar Finatto. Tchê e RBS. Porto Alegre, 1985. p. 65.

²Cadeira de Balanço, Carlos Drummond de Andrade. Livraria José Olympio Editora, 8ª ed., Rio de Janeiro, 1976.


³Alvaro Moreyra, Coleção Melhores Crônicas, p. 54. Seleção e prefácio de Mario Moreyra. Global Editora, São Paulo, 2010.
 
Leia mais sobre Alvaro Moreyra:
 
A memória do coração:

Páginas de velhas revistas:
 
Teatro de Brinquedo:
 
Este post foi revisto e ampliado, tendo sido publicado pela primeira vez em 07 de março, 2012.