Jorge Adelar Finatto
Em 1975 eu tinha menos de 20 anos, o coração batia no escuro e nada estava perdido.
Carregava comigo alguns poetas mortos. A palavra estava viva.
Esse tempo ficou adormecido como um pôr-do-sol no fundo do rio.
O tempo era noite calada.
A ditadura maltratava os corpos e o pensamento, a livre circulação da emoção, das idéias. Manchava com tarjas pretas a verdade nas bocas e nos jornais.
Mas havia gente que não desistia.
Os pássaros resistiam na praça.
Os pássaros resistiam na praça.
Escondida como um segredo, havia uma rua quieta com perfume de açucena.
Eu trazia na alma a felicidade de estar vivo. Perdoai.
Existia um certo olhar, um cabelo em cacho nos ombros, uma saia azul adolescente. Esse olhar e esse cabelo inventavam um jeito de ser feliz. Habitavam um lugar claro na escuridão.
O Guaíba fazia o trabalho de levar nossas lágrimas para o mar em negros cargueiros.
Havia eu estar vivo e ter menos de 20 anos.
Havia aquela estrela brilhando na minha vida, apesar das bombas de gás lacrimogêneo, das prisões, dos desaparecimentos, do medo.
Coração aberto, peixe vivo.
O azul e branco do céu desenhado nas águas e naqueles olhos.
Um peixe voava entre as nuvens. Perdoai.
Sobrevivi àquilo em secreto, como quem descobriu um tesouro na ilha de pedra enquanto a cidade dormia.
Existia o rio, seu caminho largo para o sul em direção ao oceano.
A luz amarela do sol escorria entre as folhas e os galhos da Praça Dom Feliciano. Lilases habitavam as flores dos jacarandás.
Havia uma promessa de primavera. Eu tinha menos de 20 anos.
De passo em passo o tempo se cumpria. De mão em mão a manhã se erguia.
Não era ainda a primavera o que se via, mas um rascunho de flor no gradil da janela.
O coração colado à esperança.
Tinha o rio no fundo daqueles olhos, o horizonte de mar, o líquido azul infinito.
O sentimento navegava ao largo da cidade, seus medos e seus mortos.
O tempo era noite calada.
Tinha menos de 20 anos, a vida saltava feito peixe vivo.
A estrela brilhava em meu caminho. Perdoai.
Texto publicado em 22 de dezembro, 2009 (primeiro texto do blog).