segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Café Tortoni, escrita e medialuna

Jorge Adelar Finatto

Esculturas de Borges, Gardel e Alfonsina Storni. Café Tortoni. photo: jfinatto


Estou tomando um café no Café Tortoni, em Buenos Aires. Aproveito e leio essa bela descoberta que fiz em Montevideo: o texto enxuto, arrebatador e próximo ao leitor do escritor, pianista, inventor e compositor Felisberto Hernández (1902-1964).

Como alguém consegue escrever desse jeito? Puro espanto. E isso que comecei há não muitas páginas atrás o volume Los libros sin tapas* (Os livros sem capas), e nem sequer abri o outro, Las hortensias, do qual se fala muito bem, com prólogo de Julio Cortázar. Semelhante estranhamento só encontrei no argentino Macedonio Fernández e seu extraordinário Museu do Romance da Eterna.

São textos breves, que irrompem de repente na página e em seguida se espalham com intensidade de um caudal, algo como o Rio da Prata que começa pequeno no Rio Pelotas, a nordeste do Rio Grande do Sul, transforma-se depois em Rio Uruguai e mais adiante se encontra com o Paraná, formando este mar platense.

Houve uma vez no espaço uma linha horizontal infinita. Por ela passeava uma circunsferência da direita para a esquerda. Parecia que cada ponto da circunsferência coincidia com cada ponto da linha horizontal. (In Genealogia, p.66, tradução livre JFinatto).

Um dia me dei conta que estava próximo de perder a razão. Não me atrevia a afirmar se devia ter razão ou se devia perdê-la. Então me decidi viver espontaneamente: se espontaneamente a perdia, bem; e se espontaneamente não a perdia, também. (In Juan Méndez o Almacén de ideas o Diario de Pocos Días, p. 140, tradução livre JFinatto)

Não por menos manifestou-se Cortázar:

Basta iniciar a leitura de qualquer um de seus textos para que Felisberto esteja lá, um homem triste e pobre que vive de concertos de piano em clubes do interior, tal como ele sempre viveu, tal como nos conta desde o primeiro parágrafo. Mas assim que o reconhecemos mais uma vez – bom dia, Felisberto, tudo bem com você? Será que tem um pouco mais de dinheiro, que seus quartos de hotel são menos horríveis, que desta vez vão te aplaudir nos teatros ou cafés? Será que essa mulher que está te olhando te ama? -, nesse reconhecimento que ocupou apenas uns poucos parágrafos logo outra coisa se instala, o salto fulgurante para a única coisa que vale para ele: o estranhamento, o indizível contato com o imediato, ou seja, com tudo aquilo que constantemente ignoramos ou afastamos em nome do que se chama viver.**

Vir ao Tortoni como ao Café Brasilero, em Montevideo, virou uma espécie de vício, um santo vício que tenho me permitido nesses dias. Ah, sim, viciei-me, também, em medialunas, que são croissants, santos croissants, deliciosos croissants em forma de meia-lua (como dizem os nomes).

photo: Café Tortoni, extraída do site oficial***

Testemunho e dou fé: não existem medialunas no universo como as do montevideano Café Brasilero.

O Tortoni (Avenida de Mayo, 825), fundado em 1858, é um dos cafés mais antigos e tradicionais da capital argentina. Por ele passaram fregueses fiéis e veneráveis como Alfonsina Storni, Mario Benedetti, Jorge Luis Borges, Carlos Gardel,  García Lorca, Arthur Rubinstein, Ortega y Gasset e muitos outros.

As paredes exibem pinturas e retratos de diversos artistas, os móveis são bonitos. Em salas adjacentes apresentam-se espetáculos noturnos de tango.

É comum a formação de filas para entrar. Algo como 10, 15, 20 minutos de espera. Mas vale a pena estar no ambiente do século 19 e mergulhar numa espécie de túnel do tempo. Hoje, na mesa ao lado, estão dois cavalheiros vestidos com trajes daquela época, camisas alvas, gravatas de lacinho e cabelos lambidos, portando, claro, bengalas. Parecem atores, mas bem podem ser fantasmas (gentis fantasmas) que vêm do além só para estar no seu café de outrora. Nunca se sabe.

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*Los libros sin tapas. Felisberto Hernández. 1ª ed. El cuenco de plata, Buenos Aires, 2010.
** Fragmento extraído do site da Fundação Felisberto Hernández, Montevideo, Uruguai:
http://www.felisberto.org.uy/   
***Café Tortoni:
http://www.cafetortoni.com.ar/br/