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sexta-feira, 3 de abril de 2015

A manhã expulsa a escuridão

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto

É muito triste andar só, embora a gente esteja quase sempre sozinho.

Nunca nos falte essa luz, Maria, a do espírito. Sim, essa que nos guia pelos caminhos sombrosos do treva-mundo.
 
Pode faltar o pão, mas não nos falte a luz interior. A escuridão mata, porque através dela nada podemos encontrar e já não somos encontrados.
 
A escuridão é o oposto do respirar claro, Maria, é o contrário do sol, do calor humano e da presença de Deus.
 
O que eu mais quero na vida é claridade, como a que eu sentia quando pegava na tua mão naquela hora em que tudo em volta era motivo de aflição.
 
Procuro luz para admirar as coisas do mundo, para enxergar o semelhante, para ter encanto na vida.
 
Luz pra desviar das armadilhas, dos monstros noturnos e diurnos, dos abismos.
 
Noite é bom pra conversar na varanda, olhar a luz das estrelas e da Lua. Sonhar e esperar o amanhecer.

É muito triste andar só, embora a gente esteja quase sempre sozinho.

Se tiver que caminhar no escuro um dia desses, que pelo menos os vaga-lumes apareçam. 
 
De tanta escuridão neste mundo estou bem farto.

Por favor, Maria, não deixe que anoiteça sobre mim. Mas se tiver que acontecer, me dê a tua mão na hora de apagar a luz e fechar a porta.
 

quarta-feira, 11 de março de 2015

Jasmim do meu jardim

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto
 
O jasmineiro é a prova viva de que nem tudo está perdido. E de que pode haver vida em meio ao caos. Ninguém está livre de encontrar uma flor de jasmim pelo caminho e salvar o seu dia.

É preciso resgatar alguma coisa viva entre os escombros.

Do meu jardim vem esse perfume. As pequenas flores brancas gostam de subir pelo tronco das árvores junto ao escritório.
 
Em tempos de crise profunda, o jasmineiro funciona normalmente, suas flores espalham aroma e graça, sem nada exigir em troca.

Bem-vindas, criaturas de luz e bondade!

É talvez egoísta falar do próprio jardim num momento desses. Mas hoje eu não consigo falar de outra coisa. O mundo está nublado. Por aqui, o Brasil derrapou na curva e saiu da estrada.

Há um sentimento estranho no ar. Não consigo vislumbrar claridade e esperança. Só vejo breu.

Mas o tempo ensina que tudo passa.
 
Enquanto não, eu falo de flores. Desculpem. Se aí do outro lado você consegue sentir um pouco desse perfume e dessa frescura, eu me dou por satisfeito.

O sujeito pode andar desiludido, cansado, revoltado com tanta corrupção no país e com tanta falta de vergonha na cara, pode até querer ir embora ou partir num foguete para as estrelas, mas ainda assim nunca poderá ignorar o perfume etéreo do jasmim (serve ao menos de consolo nessa hora tremenda).

O jasmim é a clara evidência de que, apesar de tudo, ainda há validade na vida. Ele existe para nos levantar do subsolo, iluminar esses dias cinzas e repletos de incerteza. 
 

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

A luz de cada um

Jorge Adelar Finatto




photo: j.finatto


Um súbito apagão mergulhou a todos no breu profundo, o mesmo que dominava o Brasil naqueles anos difíceis. No grande saguão cerca de 200 pessoas aguardavam para assistir a uma palestra. Talvez com o ator, dramaturgo e escritor paulista Plínio Marcos (1935-1999), num encontro que foi memorável. Mas não tenho certeza. Devia ser 1978, 79, 1980 quem sabe.  Como a maioria das pessoas ali presentes, eu era estudante de jornalismo. 

A ditadura militar no Brasil (1964-1985) se encaminhava pela abertura "lenta e gradual" iniciada pelo general-presidente Ernesto Geisel (1907-1996). As palestras na Faculdade de Comunicação Social da PUC, em Porto Alegre, eram com pessoas que, além de fazer um balanço do período de exceção, trabalhavam pela democratização, projetando o futuro dentro da democracia. Vinham artistas, sindicalistas, escritores, professores, jornalistas, cientistas, homens e mulheres que pensavam o Brasil.

Havia então muita esperança. Precisávamos, mais que tudo, de esperança pra suportar o tempo mau. E de muita disposição para reconstruir um país e nossas vidas nele.

A ditadura colheu as pessoas da minha geração em plena infância. Fomos criados no cercado do pensamento único. "Brasil, ame-o ou deixe-o" era um dos adágios da propaganda de Estado.

Esperávamos no saguão a abertura do auditório. A treva tomou conta. Era a metáfora da situação vigente. Muita gente no escuro, sem saber como sair do calabouço daqueles anos duros.

No início houve um silêncio, uma espera inquieta sobre o significado do apagão. Pouco a pouco as conversas foram retomadas.

Em meio à grossa escuridão, começaram a ser acesos fósforos, isqueiros, folhas de caderno como tochas. Pontos de luz passaram a brilhar formando claridades, que foram se espalhando. O breu já não nos engolia. Havia um ritual de instauração da luz. Não era uma grande luz, eram intermitentes chamas rebelando-se contra a treva.

A luminosidade era a soma da luz de cada um. Não era uma luz sozinha. Pequenas luzes dissipavam o medo.

Somos centelhas luminosas. Só que muitas vezes não nos damos conta dessa energia.

Quando deixamos a luz escapar da escuridão que nos habita, rompemos o breu, fundamos claridade.

Pelo menos foi isso que senti na ocasião e sinto ainda hoje. Nunca esqueci. Nunca esqueço. Quando a luz voltou, já estávamos iluminados. 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

A claridade do coração

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto


 A trevosa sintaxe da vida. Nas almas a escuridão cativa.

Fugidias imagens me perseguem. Nos urdimentos do bandoneón, busco outras claridades. Viver longe do abismo, no vero amanhecer, eu busco.

Eu, Juan Niebla, venho do neblinoso. Trouxe o calepino?

Tenho andado pela vida à procura de luz. Essa que vem de dentro. A escuridão está por toda parte, principalmente nos corações.

As trevas-mestras sustentam o mundo.

Bem-vindo o que vem em paz e desarmado. Os regulamentos da amizade eu cumpro. A minha casa está sempre aberta ao que chega sem falsidade. Vivo os bons momentos da minha música. Nos enquantos, porque amanhã é escuro no alto e no fundo. Anote, por favor.
 
A treva foi inaugurada com a luz principial.

Isto é demanda antiga lá do céu. A velha contradição, o bem contra o mal. A luta imemorial. Mas também os complementos, um talvez não existe sem o outro. Sei lá o que digo. Estou exausto disso tudo. 
 
Em termos de arriscada filosofia, caminho em beira de precipícios.

A maldade não tem sala na minha casa. Sou músico de bandoneón e antiga memória, na estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes.

Espero com o ouvido a chegada do invisível trem. Cego desde os 16 anos, sim, senhor. O resto é o breu e se dissipa quando toco meu instrumento no velho banco.
 
A vida é dura? Pra completar, é breve. Somos um ato-falho da criação.

Sou homem de fé, Deus me perdoe. Se vive. Fazemos o que é possível, às vezes muito menos, às vezes pouco mais. Quase tudo é retórica para o distinto público. Quem nas alheias falas se reconhece.

Somos ferida em carne viva, vivo pensamento. Se vive. Está anotando?
 
O certo é que, na vida como na arte, a gente fracassa sempre. Falta aquele grito, aquela palavra, aquela revolta na hora certa, o remate contra a escuridão, aquilo que não foi dito nem lembrado.

A expressão clara, pura emoção. Os impossíveis.

O ora-veja, em assunto de arte, só a divina obra tem. Deus é artista caprichoso, no atacado e no miúdo, como outro igual não há. Conseguiu escrever?
 
Pediram-me um ensaio falado sobre as cores remotas do outono. Mas eu só sei, só vejo o que sinto.


photo: j.finatto
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Juan Niebla é músico em Passo dos Ausentes. Admitido por concurso público, ocupa o cargo de músico municipal desde 1943. Toca bandoneón na estação de trem abandonada da cidade. Tem 87 anos, é cego desde os 16.

Texto atualizado, publicado anteriormente em 23 de março, 2011.