Palomar Boavista
Moinhos de vento em Campo de Criptana. Foto de Lourdes Cardenal, 2004. Fonte: Wikipédia. |
Não há nenhuma alma nas ruas desertas e nevoentas de Passo dos Ausentes a essa hora tardia. Inútil, com a bruma desfiando suas brancas sedas por aí, querer perscrutar o firmamento atrás de corpos celestes. Nenhuma galáxia, nenhuma estrela, nenhum cometa, nenhum farelo de luz. O frio congela os ossos e os astros.
Sentando no observatório, na cadeira de balanço, me enrolo no velho pala de lã crua. Deixei acesa a luminária de fraca claridade, no canto da sala, ao lado do telescópio. Estou meio dormindo, meio em vigília.
Sonhei que o avô me esperava lá fora, na rua, sob o poste de luz amarela. Me acenou embaixo do guarda-chuva e do boné, fazendo sinal para ir ao seu encontro. Fui.
Cego, o avô se apoiou no meu ombro, como sempre fazia, e saímos a caminhar na escuridão. Falou das coisas da vida e da saudade que sentia do mundo.
- Trouxe os óculos? - perguntou. Nunca esqueça dos óculos.
O avô ama os livros que leu no tempo em que ainda havia luz nos seus olhos. Alguns trechos guardou na memória. No sonho, ele me pediu para acompanhá-lo numa visita a Campo de Criptana, pequena povoação na região de La Mancha, na Espanha.
- Foi ali que Dom Quixote travou a famosa batalha contra os gigantes, que, na verdade, eram apenas moinhos de vento. Vamos lá conhecer a maravilha de perto. Criptana é a cidadezinha mais bonita da Mancha, com suas casas brancas contra o céu azul. Leia pra mim, Palomar, em voz alta, o capítulo VIII, primeira parte, do Dom Quixote, antes de entrarmos no pueblo.
Acordei com o som da chuva batendo no telhado. Tirei os óculos, me enrodilhei no pala feito gato e cerrei os olhos outra vez. Voltei a caminhar com o avô, ouvi suas histórias e visitamos juntos a terra dos moinhos de vento, nessa noite fria de névoa e ausência.
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Palomar Boavista é astrônomo-mor em Passo dos Ausentes.