Jorge Adelar Finatto
A invisibilidade não é um dom de quem habita Passo dos Ausentes.
É antes a falta de luz nos olhos de quem não nos vê e não nos sente.
Às vezes venho para o escritório muito cedo, como hoje, antes mesmo de amanhecer. A água esquenta no fogão a lenha. Passo o café e subo. Entre a mesa de trabalho e os livros, fico isolado do mundo por uma escada de madeira a pique.
Olhar os longes, os campos, as araucárias, é prazer reservado às auroras em que a neblina dá trégua. Os dias de sol amarelo e transparência azul são raros.
Os horizontes são provisórios e despencam sobre rigorosos penhascos.
O telescópio tem pouca serventia nessas alturas do escritório, fica parado num canto, embora as janelas olhem em todas as direções.
O silêncio da manhã é uma sala de concertos vazia. Ouvir os ruídos emergentes da casa na medida em que o dia avança, sons da madeira fabricados pelo movimento dos passos, é ainda habitar a harmonia.
Um dia desses aconteceu de entrar pela janela do escritório, junto com o ar frio do outono, uma nuvem. Era tão branca e densa que desapareci. Não vi mais nada. Esperei duas horas até se dissipar. Enquanto isso, fiquei sentado no sofá sem enxergar o próprio corpo.
Pensei que tinha chegado a hora das despedidas. Um sofrimento pra quem não fez nada de importante na vida. Mas não. A nuvem foi embora e eu continuo aqui, me equilibrando entre a cruz e a caldeirinha.
Pensei que tinha chegado a hora das despedidas. Um sofrimento pra quem não fez nada de importante na vida. Mas não. A nuvem foi embora e eu continuo aqui, me equilibrando entre a cruz e a caldeirinha.
Pra quem não sabe, Passo dos Ausentes fica a 1.800 metros acima do nível do mar e possui condições meteorológicas muito particulares. Como o Estado não reconhece juridicamente este lugar como cidade, apesar dos nossos inúmeros pedidos nesse sentido, não estamos no mapa do Rio Grande do Sul.
Em suma, não existimos. Somos seres invisíveis. Não somos vistos nem lembrados. As pessoas não sobem até aqui. O trem parou de funcionar no início dos anos cinquenta do século passado. A estrada de chão é insegura, íngreme, contorna a risco os paredões de basalto. Os mais jovens vão embora cedo, tentam a vida noutro lugar.
Somos poucos.
As cidades dos Campos de Cima da Serra ficam, em média, de oitocentos a mil metros abaixo de Passo dos Ausentes.
Quanto a nós, vivemos nos Campos de Cima do Esquecimento.
Fizeram uma brincadeira (só pode ser isso) estranha no início do Contraforte dos Capuchinhos, que é onde a estrada deriva numa inclinação ascendente de 45º na nossa direção. Puseram no local uma placa, em forma de seta, com a inscrição: Valhacouto de Fantasmas. Não entendemos.
Além de invisíveis, também nos acusam de voláteis.
As nuvens são nossas testemunhas.
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Fotos: Eduardo Tavares (ete@terra.com.br)
Imagem dos Campos de Cima da Serra, Rio Grande do Sul. O último livro lançado recentemente pelo Eduardo, Pharol de Santa Martha, é imperdível.
Imagem dos Campos de Cima da Serra, Rio Grande do Sul. O último livro lançado recentemente pelo Eduardo, Pharol de Santa Martha, é imperdível.