sábado, 11 de novembro de 2017

O galo cego

Jorge Finatto

photo: jfinatto
 
 
DO ESCRITÓRIO, altas horas, ele vai pra cozinha. No borralho do fogão a lenha restos de brasa entre cinzas. Reanima o fogo, esquenta água na chaleira.

Qual o tempo da chaleira? Vem de mão em mão, noite após noite, insônia após insônia, parto após parto (como o dele), desde o início do século XX.

Tem ternura pelo bule esmaltado que carrega uma andorinha azul no dorso branco amarelado. No movimento da andorinha em direção ao céu, esquece por um momento o turvo presente. Sente que está envelhecendo entre quinquilharias.

Ficou cego no outono. Depois visão voltou. A madrugada é longa e fria. Os retratos observam sua agonia enquanto arrasta a manta pelos corredores da casa. Agonia de bicho vivo que não se entrega.

Não tem escada pra fugir do alçapão do tempo. Tem a companhia do galo cego que mantém, por pena, no extinto galinheiro dos avós. Um sobrevivente como ele. Volta ao escritório.

Os fantasmas conversam sem cerimônia no interior dos retratos. Ele agoniza enquanto bebe café e escreve.

O galo cego, no canto do poleiro, escuta a chuva.