domingo, 31 de agosto de 2014

O último apaixonado de Norma Jeane

O Cavaleiro da Bandana Escarlate
 
Marilyn Monroe (Norma Jeane)
 
Após meses recolhido ao seu humilde solar da Praça Maurício Cardoso, em Porto Alegre, única casa do bairro Moinhos de Vento em que habita um frondoso e mais que centenário pinheiro, O Cavaleiro da Bandana Escarlate volta a publicar um texto no blog. É uma página íntima do nosso crítico de cinema. Confessional e desbragada. Mas, como explicou na carta  em que me enviou o texto, um homem, na minha idade, pode bem se dar ao luxo de mandar os salamaleques ao Guaíba. Não quero levar para o túmulo esse segredo. Com os senhores, pois, a prosa do nosso original Cavaleiro*.
J.Finatto
 
Olho a fotografia de Marilyn Monroe no porta-retrato sobre a estante. Me dou conta de que fui o último homem a cair de amores pela Diva no fim do século XX. Faz 15 anos. Eu me apaixonei por ela num tempo em que ninguém mais ousa apaixonar-se. Os medos do sentimento, os medos do ridículo. Assisti a todos os seus filmes e li livros a seu respeito. Foi uma paixão fatal e tardia.
 
No início não levei a sério. Achei que aquelas caras e bocas que ela fazia nos filmes, cartazes e revistas eram mera promoção e mercantilização da imagem. Só depois descobri que não, eram e sempre foram apenas para mim...

O último homem a apaixonar-se por Marilyn Monroe.

Norma Jeane (1926-1962), prefiro chamá-la pelo nome verdadeiro, mais de acordo com nossa intimidade, sempre soube da minha existência mesmo antes de eu existir. Sempre soube que meu sentimento seria o mais casto sentimento que alguém lhe devotou, se isso é possível em se tratando de mulher tão bela.

Todos os outros fãs esqueceram-na depois da morte. Só eu permaneci constante em meus amores impossíveis.

Como esses cães que definham à porta da casa quando o dono já não volta.
 
Teve um tempo que senti ciúme de Norma Jeane. Um ciúme retroativo e doloroso. Não suportava ver aqueles animais babando por ela nos filmes e páginas de revista. Queriam seu corpo, os seios, o colo, as pernas, a nuca, os braços, o olhar atrevido e indecifrável com que atraía suas vítimas. Venturosas vítimas de sua beleza angelical.

Ninguém escapava quando ela lançava a rede lilás da sedução.

Eu fui daqueles raros que conseguiram ver a menina triste no fundo dos seus olhos.
 
Viveu em orfanatos na infância. Sofrer muito, e em secreto, era com Norma Jeane, a criança solitária que nunca deixou de ser. Mas o encanto estava com ela e sabia como usá-lo. Era preciso não sucumbir ao mundo terrível dos humanos. Queriam ilusão? Ela lhes dava. Mas a que preço!

Morrer aos 36 anos de uma possível overdose de barbitúricos, num suposto mas discutível suicídio (as circunstâncias da morte são controvertidas),** foi a antítese de uma vida radiante de beleza e de uma desconhecida e intensa atividade poética e intelectual.

O mundo sempre quis o rótulo. Não está interessado no conteúdo.

No excelente livro Fragmentos***, com prefácio do escritor italiano Antonio Tabucchi, vêm à tona, pela primeira vez, os textos de Norma Jeane. Esses textos são, na verdade, estilhaços de uma sensibilidade que explode diante dos mistérios, maravilhas e sofrimentos da vida. Nele se lê, por exemplo, o grito calado de uma alma profunda e delicada:

Sozinha!!!!!
Eu estou sozinha. Eu estou sempre
sozinha
não importa o que aconteça. (p. 57)

O dramaturgo Arthur Miller, que esteve casado com ela entre 1956 e 1960, resumiu:

Para sobreviver, seria preciso que ela fosse mais cínica ou, pelo menos, mais próxima da realidade. Em vez disso, ela era uma poeta na esquina, tentando recitar seus versos a uma multidão que lhe arrancava as roupas. (p. 37)
 
Norma Jeane deixou muitos escritos e foi uma leitora voraz de grandes autores como Dostoievski, Whitman, Milton, Hemingway, Beckett, Kerouac, James Joyce, entre outros. Aproveitava o escasso tempo livre para ler e fazer breves cursos de história da literatura e da arte, ela que não conseguiu terminar os estudos regulares.

Muitos caíram ante os encantos dessa mulher-sonho. Reis, presidentes, industriais, marinheiros, artistas, intelectuais, astronautas, operários, boxeadores, caçadores de tesouros e pobres diabos em todos os lugares em que houvesse uma tela de cinema. Poucos, porém, viram nela a mulher sensível, estudiosa, criativa e poeta que queria ir fundo no sentimento dos seres e das coisas.

Norma Jeane está feliz e me sorri no retrato sobre a estante. Sou seu último apaixonado.

Norma Jeane. Que nome tão lindo para um barco! Uma solitária nuvem branca num céu tão azul! Ó, Norma Jeane, as estrelas do universo te contemplam!

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*Existem vários textos do Cavaleiro da Bandana Escarlate no blog, como este:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/04/o-cavaleiro-da-bandana-escarlate.html
**Wikipédia:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Marilyn_Monroe
***Fragmentos. Poemas, anotações íntimas e cartas de Marilyn Monroe. Organização de Stanley Buchthal e Bernard Comment. Prefácio de Antonio Tabucchi. Editora Tordesilhas, São Paulo, 2011.