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terça-feira, 16 de setembro de 2014

A escada

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto, 2007.
 
A explosão e a subversão das cores e das formas, na pintura, foi ele quem inventou. Nunca antes o amarelo foi tão belo nem as outras cores tão livres e entusiasmantes. Nunca alguém pintara assim antes dele. Precisou Vincent Willem Van Gogh (1853 - 1890) vir ao mundo para nos dar essa alegria e essa liberdade. Isso só já justificaria plenamente sua existência (viveu apenas 37 anos).

Mas fez mais: foi um poeta e um pensador profundo no meio da tempestade que foi sua vida. Além da pintura, leu muitos autores importantes da época e escreveu com uma impressionante clareza e desenvoltura sobre temas como solidão, arte, morte e Deus, conforme vemos no livro de suas cartas ao irmão Theo. Conhecia a Bíblia de perto.

Terá sido, a par disso, uma pessoa de muito difícil convivência, com temperamento forte e impositivo. Em parte devido aos traumas familiares, às dificuldades de realizar sua obra e à escassez de afeto das pessoas com quem conviveu.

No fundamental, no mais secreto de si, um homem de coração sensível, cheio de ternura, bondade e vontade de ser feliz. Como artista, foi um gênio que se construiu a duras penas em meio à pobreza.
 
Sua vida foi sofrimento e incompreensão. Mas seu espírito só nos legou beleza (mais de 800 pinturas em menos de 10 anos de produção). Van Gogh, do alto de sua angústia e de seu gênio, foi um mistério.
 
Nos últimos dias de vida (em torno de 70), na pequena Auvers-sur-Oise, distante cerca de 40 km de Paris, mais ou menos a uma hora de trem atualmente devido ao traçado da estrada de ferro, pintou com profusão.

Estive mais de uma vez naquela cidade e visitei seu obscuro quarto no Auberge Ravoux, estalagem na qual viveu aqueles dias,  e onde acabou sendo velado sobre uma mesa de bilhar, após morrer em circunstâncias até hoje pouco esclarecidas.

A escada sombria da photo acima (que leva até o melancólico quartinho sem janela, apenas com uma clarabóia) é a visão material e simbólica do quão difíceis e solitários foram seus caminhos.

photo: j.finatto, 2007. o último quarto

A arte foi a verdadeira escada que o retirou do negro calabouço e lhe proporcionou a alguma felicidade que teve em sua rápida passagem pela vida. Todo seu amor se concentrou na sua obra e na pessoa do irmão mais novo Theo, que o sustentou. Devastado com a morte do amado Vincent, seis meses depois Theo veio a morrer. Ambos estão enterrados no pequeno cemitério, na parte alta de Auvers, um ao lado do outro. Ali ao lado Van Gogh pintou, dias antes, o magnífico Trigal com Corvos.

Sobre o período em que Van Gogh viveu à margem do rio Oise, publiquei aqui dois textos com diversas imagens, aos quais remeto o leitor.*

Também recomendo o livro Van Gogh, A vida, de Steven Naifeh e Gregory White Smith, publicado em 2012 no Brasil pela Companhia das Letras, com ótima tradução de Denise Bottmann. Um trabalho de fôlego (1095 páginas), ricamente documentado e que lança novas luzes sobre a vida e a obra do gênio holandês. Este livro afasta, por exemplo, a versão do suicídio do artista com base em percuciente análise.

photo: j.finatto, 2007

Duas coisas gostaria de lembrar para finalizar este breve artigo. No livro em questão, é descrita a forma vexatória e às vezes grotesca com que Van Gogh foi tratado por alguns adolescentes de Auvers, que viam nele a figura de um louco desagradável. Faziam coisas para vê-lo atarantado e humilhado. Sua figura chamava a atenção pela roupa desconjuntada, pelos modos esquisitos e por estar sempre vagando com seu equipamento de pintura na jornada diária de trabalho.

Isso me recordou a péssima impressão que tive de alguns jovens locais quando estive pela primeira vez na cidade, em 2002, em pleno Dia de Natal. Ao perceber um turista idoso caminhando pela rua, diante do prédio da prefeitura, um grupo de adolescentes passou a imitá-lo e a zombar dele, sem nenhuma razão (não usava chapéu de palha, não carregava o cavalete nas costas nem tinha roupas muito velhas como Vincent). Vendo a situação, fui para o lado do cidadão e comecei a conversar com ele, enquanto olhava para os adolescentes, que, diante disso, acabaram desistindo da zombaria. Estranhei muito aquele comportamento gratuito e agressivo.

Sempre entendi que Deus se comunica com a humanidade através da obra de Van Gogh (como, em geral, penso que acontece com os grandes artistas). Vincent chegou a cogitar alguma vez em desistir do trabalho e tentar ser um pouco feliz num outro tipo de vida, tal a miséria material e o isolamento que o acompanharam. Mas seguiu em frente.

Ele acalentava, em meio às mil provações, a idéia de uma outra vida além desta, que possibilitasse um recomeço, uma segunda chance, um mundo onde poderia se libertar da "estupidez vazia e da tortura sem sentido da vida", como se lê nas páginas 997/998 do referido livro. Para encerrar, esta passagem tão bela quanto visceral:

"Sinto cada vez mais que não devemos julgar Deus a partir deste mundo. É apenas um estudo que não saiu. O que você pode fazer com um estudo que deu errado? - se você gosta do artista, não encontra muito o que criticar - refreia a língua. Mas você tem o direito de pedir algo melhor". (pág. 998)

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*O último quarto de Van Gogh (The last bredroom of Van Gogh):
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2009/12/o-ultimo-quarto-de-van-gogh.html

O silêncio de Van Gogh (The silence of Van Gogh):
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/12/o-silencio-de-van-gogh.html

Van Gogh Museum, Amsterdam:
http://www.vangoghmuseum.nl/en

sexta-feira, 1 de abril de 2011

O último quarto de Van Gogh

Jorge Adelar Finatto
Photos and text





A sombra do quarto imita a escuridão do mundo.

A claraboia deixa passar a escassa luz do entardecer. Vincent Van Gogh tira o chapéu, as botas e se deita, os braços abertos. Toma um copo dágua, olha o teto. A velha cama emite ruídos secos a cada movimento. No chão, encostados na parede, secam os quadros pintados durante o dia.

O pintor vê imagens e cores enquanto dorme. O sonho medra no deserto. Verte luz na alma da treva. É tempo de refazer o mundo. O instante da maravilha.



A obra fez-se homem, o homem divinizou-se.

A viagem de trem de Paris para a pequena cidade de Auvers-sur-Oise dura cerca de 1h45min. Parte-se da Gare du Nord e, uma hora depois, em Valmondois, troca-se de trem até chegar a Auvers, situada no Vale do Rio Oise.

Trago no coração, amarelo, um girassol para Vincent.

Provinciana, a cidade habita a beira do rio que lhe dá nome. Embarcações com variado colorido, diferentes formas e tamanhos cumprem o destino de chegar e partir.

O Rio Oise desliza caudaloso entre as margens cobertas de vegetação.



Auvers-sur-Oise é o cenário no qual Van Gogh trabalhou e viveu nos últimos cerca de setenta dias de vida. Em 21 de maio de 1890, mudou-se para esta cidade que tem tradição de acolher pintores. Aqui ele viveu um dos melhores momentos de sua existência, até o dia em que desferiu um tiro de pistola contra o abdômen, no campo, em 27 de julho de 1890. Morreu dois dias depois, em 29 de julho, a uma e meia da manhã, aos 37 anos, ele que nascera em 30 de março de 1853, na aldeia holandesa de Groot-Zundert.

Volto a Auvers numa espécie de viagem afetiva que só o contato com a arte e seu poder encantatório explicam. Vim rever os lugares e caminhos que o gênio da pintura percorreu e retratou há mais de cem anos. Uma busca, talvez, do homem, da atmosfera que o moveu e inspirou naqueles dias distantes.

O coração dispara logo na chegada do trem, na pequenina estação, quase à margem do rio.

O relógio aqui gira em outro tempo. As casas de pedra são acolhedoras e observam o caminhante através de discretas janelas. Sobe-se da parte baixa da cidade para a alta através de vielas muito estreitas com flores da estação nos pátios. Interessante prestar atenção nos detalhes que não sofreram mudança desde aquela época.



As pequenas ruas, o casario, a natureza parecem saídos de uma pintura do artista.

A procura da expressão mais profunda e verdadeira, em Van Gogh, foi tão intensa quanto a dificuldade de comunicar-se com as pessoas. 

Os fatos que culminaram com o suicídio do pintor estão envoltos em mistério. Um professor, em Paris, comenta, informalmente, a existência da versão - nunca confirmada - de que Van Gogh teria sido morto num duelo com um homem influente da cidade, ao baterem-se por causa de uma mulher. A informação, até onde se sabe, não tem valor histórico.

Ao mudar-se para Auvers Van Gogh pretendeu afastar-se do ruído e da agitação de Paris. Veio, também, para tratar-se com o Dr. Gachet, médico do lugar que é pintor amador e tem amizade com vários pintores impressionistas. Dele Vincent faz alguns retratos. Tornam-se amigos, embora ocorram conflitos.

Em Auvers ele produziu cerca de 75 pinturas naqueles últimos dias de vida. Essa produção é impressionante, não apenas pelo número - em tão pouco tempo - como pela qualidade. Os quadros revelam uma intensa celebração da vida. O artista mostra que está no pleno domínio de sua arte. Parece finalmente ter encontrado o ambiente ideal para viver e criar. Tudo que o cerca serve de inspiração para o ofício de traduzir a vida em forma e cor.

O sentimento explode na tela. O traço forte inaugura a face do mundo.

Tal a excitação do pintor com seu trabalho que dá a impressão de que aqui experimentou os melhores dias. Um intervalo longe dos sofrimentos que o atormentaram durante toda a vida.

Van Gogh hospeda-se na pousada Auberge Ravoux, misto de pensão, restaurante e casa de comércio de vinhos. Com dois pavimentos e amplo sótão, a construção se situa no centro, na frente do prédio da prefeitura. Hoje funciona no local a Maison de Van Gogh ( http://www.maisondevangogh.fr/), onde o visitante pode conhecer o cubículo que o artista habitou, um aposento mal-iluminado e pequeno, nos fundos, sob o telhado.



Uma claraboia côa a pouca luz do dia que por ela entra, clareando o abandono.

Na Casa Van Gogh, encontram-se livros sobre o artista e reproduções de seus trabalhos a preços razoáveis. Também se pode assistir a um interessante documentário em vídeo sobre sua vida, de cerca de vinte minutos. Além disso pode-se fazer uma refeição no restaurante que permanece como era no tempo em que ele ali viveu.



O homem que libertou as cores levou uma vida pobre, em quase tudo dependente do irmão mais moço, Theodorus Van Gogh, que trabalhava no comércio de artes plásticas em Paris. Era grande o amor que os unia. Theo tinha grande admiração pela obra de Vincent. Procurava auxiliá-lo com todo empenho, o que incluía repasses constantes de dinheiro para despesas de alimentação, hospedagem, material de pintura, entre outras. As dificuldades eram imensas para Theo, que tinha mulher e filho para sustentar.

Van Gogh, que tanto amou os seres e a natureza, dos quais nunca se afastou, soube, como poucos, eternizar através de sua arte a beleza do mundo.

Os luminosos girassóis representam essa infinita procura do belo.

Ele tinha por costume dormir cedo em Auvers, por volta das 21h. Acorda em torno de 05h para trabalhar. Muitas vezes sai da pensão de madrugada, sem comer nada. Aproveita ao máximo a luz do dia para pintar.

Ele transita pelas ruas apressado, com a caixa de tintas, pincéis, cavalete e todo o material.

O velho chapéu de palha na cabeça. Aquele homem vestido modestamente não chama a atenção dos moradores, habituados a ver outros pintores que passam pela cidade em busca de paz e siêncio para criar.

Em meio à subida para a parte alta, encontramos a famosa Igreja de Auvers, retratada por Van Gogh. Como em outros lugares que pintou, a administração municipal colocou, no local, uma reprodução da imagem criada pelo artista.



A Igreja de Auvers é apenas uma das obras-primas que produziu nesse período.

Continuando a subida, encontramos, bem no alto, o amplo terreno de semeadura em que ele retratou o célebre Campo de trigo com corvos, um dos últimos trabalhos. É provável que neste mesmo lugar Van Gogh disparou o tiro contra o abdômen. A cerca de cem metros de onde o quadro foi pintado está situado o cemitério de Auvers, no qual Vincent está sepultado no humilde túmulo, no chão, coberto de heras, ao lado do túmulo do amado irmão Theo, que viria a falecer pouco tempo depois.



Van Gogh sofreu graves crises psíquicas ao longo de sua breve passagem pela Terra. Viveu na pobreza. Encontrou apoio, compreensão e carinho no irmão, com quem trocou a extensa correspondência registrada no livro Cartas a Theo.*



Dizem alguns que vendeu apenas um quadro em vida (A videira vermelha).

Em Auvers não se encontra nenhuma obra de Van Gogh. Suas pinturas alcançam muitos milhões de euros e estão espalhadas nos principais museus do mundo e em coleções particulares. A Casa Van Gogh desenvolve um grande trabalho para resgatar, ao menos, um dos quadros, que a tornará "o menor museu do mundo", segundo eles dizem.



O artista que nos revelou a maravilha não encontrou na sociedade de seu tempo o indispensável apoio para continuar vivendo e criando. Encontraria hoje?



A cadeira de madeira e palha, no silêncio do quarto sombrio, é o que restou do hóspede.

O resto é oco.

Austera solidão.

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Fotos: Jorge Finatto.
Texto publicado originalmente no blog em 30/12/09.
*Cartas a Theo. Vincent Van Gogh. Editora L&PM. Porto Alegre, 2007.