segunda-feira, 31 de maio de 2010

O sentido do inefável

Jorge Adelar Finatto


Um pouco sol, um pouco nuvem. Tem dias assim. Intervalo entre sonho e realidade. Uma saudade remota e vaga acende dentro de mim. De que estarei me recordando? Não sei. Há algo que não se revela. Um mundo escondido. Um tempo de borboletas e flores na janela, numa cidade invisível. O sentimento do inefável anda sempre comigo. A melancolia é o sol quando cai atrás da montanha ou nuvem. Talvez venha de outra existência, antes da minha, a obscura lembrança que me acompanha. De um tempo não vivido. Essa memória sem face pode estar, quem sabe, no tempo futuro, nas coisas que estão por acontecer. Que venha, pois, esse mundo novo, com sua luz da manhã,  suas cálidas revelações, sua ventura.

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Foto: J.Finatto

domingo, 30 de maio de 2010

Da impossibilidade deste retrato (2)

José Saramago

Entretanto, o pintor vai pintando o retrato de Fernando Pessoa. Está no princípio, não se sabe ainda que rosto escolheu, o que se pode ver é uma levíssima pincelada de verde, se calhar vai sair daqui um cão dessa cor para pôr em conjunção com um jockey amarelo e um cavalo azul, salvo se o verde for apenas o resultado físico e químico de estar o jockey em cima do cavalo, como é sua profissão e gosto. Mas a grande dúvida do pintor não tem que ver com as cores que há-de empregar, essa dificuldade resolveram-na os impressionistas de uma vez para sempre, só os homens antigos, os de antes, não sabiam que em cada cor as cores estão todas: a grande dúvida do pintor é se há-de ter uma atitude reverente ou irreverente, se pintará esta virgem como S. Lucas pintou a outra, de joelhos, ou se tratará este homem como um triste coitado que realmente foi ridículo a todas as criadas de hotel e escreveu cartas de amor ridículas, e se, assim autorizado pelo próprio, poderá rir-se dele pintando-o. A pincelada verde, por enquanto, é somente a perna do jockey amarelo posta do lado de cá do cavalo azul. Enquanto o maestro não sacudir a batuta, a música não romperá lânguida e triste, nem o homem da loja começará a sorrir entre as memórias da infância do pintor. Há uma espécie de ambiguidade inocente nesta perna verde, capaz de se transformar em verde cão. O pintor deixa-se conduzir pela associação de ideias, para ele, perna e cão tornaram-se em meros heterónimos de verde: coisas bem mais inacreditáveis do que esta têm sido possíveis, não há que admirar. Ninguém sabe o que se passa na cabeça do pintor enquanto pinta. O retrato está feito, vai juntar-se às dez mil representações que o precederam. É uma genuflexão devota, é uma risada de troça, tanto faz, cada uma destas cores, cada um destes traços, sobrepondo-se uns aos outros, aproximam o momento da invisibilidade, aquele negro absoluto que não reflectirá nenhuma luz, sequer a luz fulgurante do sol, que faria então à breve cintilação de um olhar, em frente a apagar-se tão cedo. Entre a reverência e a irreverência, num ponto indeterminável, estará, talvez, o homem que Fernando Pessoa foi. Talvez, porque também isso não é certo. Albert Camus não pensou duas vezes quando escreveu: “Se alguém quiser que o reconheçam, basta que diga quem é”. No geral dos casos, o mais longe a que chega quem a tal aventura ouse propor-se é dizer que nome lhe puseram no registo civil.

Fernando Pessoa, provavelmente, nem tanto. Já não lhe bastava ser ao mesmo tempo Caeiro e Reis, cumulativamente Campos e Soares. Agora que já não é poeta, mas pintor, e vai fazer o seu auto-retrato, que rosto pintará, com que nome assinará o quadro, no canto esquerdo dele, ou direito, porque toda a pintura é espelho, de quê, de quem, para quê? O braço levanta-se, enfim, a mão segura uma pequena haste de madeira, de longe diríamos que é um pincel, mas há motivos para suspeitar: nele não se transporta uma cor verde, ou azul, ou amarela, nenhuma cor se vê, nenhuma tinta. Este é o negro absoluto com que Fernando Pessoa, por suas próprias mãos, se tornará invisível.

Mas os pintores vão continuar pintando.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente em 23/abril/2009.
A grafia é a de Portugal.

sábado, 29 de maio de 2010

Da impossibilidade deste retrato (1)

José Saramago


Este texto foi prólogo do catálogo de uma exposição de retratos de Fernando Pessoa na Fundação Calouste Gulbenkian no princípio dos anos 80, creio que em 85. Por me parecer que não viria fazer má figura neste blogue, aqui o trago.

Que retrato de si mesmo pintaria Fernando Pessoa se, em vez de poeta, tivesse sido pintor, e de retratos? Colocado de frente para o espelho, ou de meio perfil, obliquando o olhar a três quartos, como quem, de si mesmo escondido, se espreita, que rosto escolheria e por quanto tempo? O seu, diferente segundo as idades, assemelhando a cada uma das fotografias que dele conhecemos, ou também o das imagens não fixadas, sucessivas entre o nascimento e a morte, todas as tardes, noites e manhãs, começando no Largo de S. Carlos e acabando no Hospital de S. Luís? O de um Álvaro de Campos, engenheiro naval formado em Glasgow? O de Alberto Caeiro, sem profissão nem educação, morto de tuberculose na flor da idade? O de Ricardo Reis, médico expatriado de quem se perdeu o rasto, apesar de algumas notícias recentes obviamente apócrifas? O de Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na baixa lisboeta? Ou um outro qualquer, o Guedes, o Mora, aqueles tantas vezes invocados, inúmeros, certos, prováveis e possíveis? Representar-se-ia de chapéu na cabeça? De perna traçada? De cigarro apertado entre os dedos? De óculos? De gabardina vestida ou sobre os ombros? Usaria um disfarce, por exemplo, apagando o bigode e descobrindo a pele subjacente, de súbito nua, de súbito fria? Cercar-se-ia de símbolos, de cifras da cabala, de signos horoscópicos, de gaivotas no Tejo, de cais de pedra, de corvos traduzidos do inglês, de cavalos azuis e jockeys amarelos, de premonitórios túmulos? Ou, ao contrário destas eloquências, ficaria sentado diante do cavalete, da tela branca, incapaz de levantar um braço para atacá-la ou dela se defender, à espera de um outro pintor que ali fosse tentar o impossível retrato? De quem? De qual?

De uma pessoa que se chamou Fernando Pessoa começa a ter justificação o que de Camões já se sabe. Dez mil figurações, desenhadas, pintadas, modeladas, esculpidas, acabaram por tornar invisível Luís Vaz, o que dele ainda permanece é o que sobra: uma pálpebra caída, uma barba, uma coroa de louros. É fácil de ver que Fernando Pessoa também vai a caminho da invisibilidade, e, tendo em conta a ocorrente multiplicação das suas imagens, provocada por apetites sobreexcitados de representação e facilitadas por um domínio generalizado das técnicas, o homem dos heterónimos, já voluntariamente confundido nas criaturas que produziu, entrará no negro absoluto em muito menos tempo que o outro de uma cara só, mas de vozes também não poucas. Acaso será esse, quem sabe, o perfeito destino dos poetas, perderem a substância de um contorno, de um olhar gasto, de um vinco na pele, e dissolverem-se no espaço, no tempo, sumidos entre as linhas do que conseguiram escrever, se do rosto sem feições nem limites ainda alguma coisa vem intrometer-se, está garantido o dia em que mesmo esse pouco será definitivamente lançado fora. O poeta não será mais que memória fundida nas memórias, para que um adolescente possa dizer-nos que tem em si todos os sonhos do mundo, como se ter sonhos e declará-lo fosse primeira invenção sua. Há razões para pensar que a língua é, toda ela, obra de poesia.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente em 22/abril/2009.
Foto de Saramago: acervo da FJS
A grafia é a de Portugal.


sexta-feira, 28 de maio de 2010

O coração do outono

Jorge Adelar Finatto 
 

As invisíveis presenças habitam o outono.
Estão nas fotografias, estão nos pensamentos, estão nas velhas cartas, estão nas cadeiras vazias ao redor do silêncio. 
Estão nos livros que respiram sobre a mesa.
A bruma arrasta o branco vestido de tule pelas ruas esquecidas de Passo dos Ausentes.
Outono é um cartão postal que alguém mandou do oblívio.

O sol olha entre a névoa. O vento sopra nos cabelos, nos telhados oblíquos.
 
O tempo agora é viver cada dia.

As folhas caem em silêncio.

Estou habitado de vozes e ausências. 


O pássaro tece o voo acima do vazio. O arrepio de estar vivo atravessa o coração. A palavra cresce sobre os territórios da sombra, como a luz de maio. Um sopro na escuridão.

 

A claridade depois se espalha.
Vamos com o lume que avança pela noite do mundo.
A face de dor esculpida no tempo.
Precisamos reinventar o amor.

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Fotos: J. Finatto

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Eu comecei a sair da mina

Jorge Adelar Finatto




Eu comecei a sair da mina
com meus ferros retorcidos
meus tocos de vela apagados
meu alforje vazio

fazia lá fora um dia solar
desses de não se perder
eu vi um rosto bom
o jeito sereno de um homem
que me ajudou a respirar
                                          me abraçou
me desamarrou as mãos


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.Poema do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.
.Esse poema, escrito há trinta anos, pertence ao Dr. Valdo, ilustre médico, cujo sobrenome, para minha tristeza, esqueci. O alçapão do tempo e da memória, contudo, não apagou o afeto e a gratidão.
.Foto: J. Finatto

terça-feira, 25 de maio de 2010

Eugénio de Andrade

Jorge Adelar Finatto


Na vida ter talento só não basta, é preciso trabalhar muito para chegar a algum resultado. Muitos talentos se perdem, nas mais diversas atividades, por falta de entrega e persistência.

Existe um poeta pouco conhecido no Brasil, que é dos grandes que temos na língua portuguesa: Eugénio de Andrade. Nasceu em 19 de janeiro de 1923, em Póvoa de Atalaia, centro de Portugal, e morreu em 13 de junho de 2005, na cidade do Porto, onde hoje existe a fundação que leva seu nome.

Lê-se pouca poesia no Brasil e no mundo, de modo geral. Os tempos são duros. A poesia é o gênero literário que pede um leitor sensível, atento à beleza da palavra e da composição no seu grau mais elevado de elaboração (o poema), e, sobretudo, um leitor dotado de espiritualidade.

Um brutamontes dificilmente terá afeto pela poesia.

Eugénio de Andrade é um belo poeta. Lida com o poema de forma rigorosa e, ao mesmo tempo, com notável simplicidade. A simplicidade que só os mestres alcançam como resultado da dedicação exaustiva e obstinada ao trabalho.

Na vida, ter talento só não basta, é preciso trabalhar muito para chegar a algum resultado. Muitos talentos se perdem, nas mais diversas atividades, por falta de entrega e persistência.

A poesia de Eugénio de Andrade nos traz encanto e esperança. Como nestes dois poemas.

O SORRISO
 
Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

VER CLARO

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obcura.
O leitor é que tem às vezes, 
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.

A obra do poeta é rara. Para melhor conhecê-la  é interessante uma  visita ao site da Fundação Eugénio de Andrade¹ e, claro, a leitura de seus livros. Entre nós, onde Eugénio, infelizmente, é quase desconhecido, existe a antologia Poemas de Eugénio de Andrade², que oferece uma boa visão do conjunto de sua obra.

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¹Fotos e poemas de Eugénio de Andrade reproduzidos do site da Fundação Eugénio de Andrade:
² Poemas de Eugénio de Andrade, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Adolf Heichmann *

José Saramago

No princípio da década de 60, quando trabalhava numa editorial de Lisboa, publiquei um livro com o título de Seis milhões de mortos em que era relatada a acção de Adolf Eichmann como principal executor da operação de extermínio de judeus (seis milhões foram) levada a cabo de modo sistemático, quase científico, nos campos de concentração nazis. Crítico como tenho sido sempre dos abusos e repressões exercidos por Israel sobre o povo palestino, o meu principal argumento dessa condenação foi e continua a ser de ordem moral: os inenarráveis sofrimentos infligidos aos judeus ao longo da História e, em particular, no quadro da chamada “solução final”, deveriam ser para os israelitas de hoje (dos últimos sessenta anos para maior exactidão) a melhor das razões para não imitarem na terra palestina os seus carrascos. Do que Israel necessita realmente é de uma revolução moral. Firme nesta convicção nunca neguei o Holocausto, somente me permiti estender essa noção aos vexames, às humilhações, às violências de todo o tipo a que o povo palestino tem estado submetido. É o meu direito e os factos se têm encarregado de me dar razão.

Sou um escritor livre que se exprime tão livremente quanto a organização do mundo que temos lho permite. Não disponho de tanta informação sobre este assunto como aquela que está ao alcance do papa e da Igreja Católica em geral, o que conheço destas matérias desde o princípio dos anos 60 me basta. Parece-me portanto altamente reprovável o comportamento ambíguo do Vaticano em toda esta questão dos bispos de obediência Lefebvre, primeiro excomungados e agora limpos de pecado por decisão papal. Ratzinger nunca foi pessoa das minhas simpatias intelectuais. Vejo-o como alguém que se esforça por disfarçar e ocultar o que efectivamente pensa. Em membros da Igreja não é procedimento raro, mas a um papa até um ateu como eu tem o direito de exigir frontalidade, coerência e consciência crítica. E auto-crítica.

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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente em 05/02/2009.
A grafia é a de Portugal.

sábado, 22 de maio de 2010

A lágrima

Jorge Adelar Finatto




As percas. O irremediável na vida da pessoa. Os olhos pretos, pretos, acesos. Os negros cabelos caíam nos ombros. No então eu habitava o calabouço. Agonia em mim acostumada. As esperas. Ela surgiu um dia no abrigo, as carinhas nossas. Vestia casaco azul-marinho, lenço branco no pescoço. Quando vi aquela iluminação, meu coração saltou saltos. Pensei no vazio de mim: o que, a estrela da minha vida, essa? Não esqueço. A Encantada. Os olhos dela me encontraram. Escolheu a minha frágil escondida criatura. Havia muitos outros habitantes do calabouço aguardando amanhecer. No limbo, esperando a face do milagre. Os esquecidos. A Encantada me pegou nos braços. O meu filho, disse. Passei a ser o amoroso. Os baldos. Meu coração cavalo cego na alegria. Quem me via, falava: esse tal, o príncipe. O escolhido. A Encantada inaugurou minha vida. A estrela. Eu príncipe. Ela disse: menino agora é meu filho no rigor da lei, pessoa da minha alma. Tive outro menino, falou ela, olhando o esmo. Do meu sangue próprio. Perdi nos prelúdios, tinha quatro anos. As percas. As esfumações. Cresci com esse invisível irmão. O finado. O sempre lembrado. Às vezes eu conversava com ele. A mãe era sozinha no mundo. A mãe tinha os momentos. As lonjuras.  Carregava o menino morto no coração. Caminhava no outro mundo com seus desaparecidos. A mãe tinha  segredos guardados. Ninguém entrava ali. Ai de quem. O meu filho, dizia. A mãe fazia eu dormir no colo, na frente do fogão a lenha, até os oito anos. O príncipe. A mãe levava o filho vivo passear na praça. O mundo conhecesse o amoroso. A solitária da Rua São João e seu menino vivo. Eu tive, depois perdi.  O coração da mãe tinha umas ausências, sustos, sufocos. Um dia estranhei aquele sono esquecido de acordar. Fui no quarto. Ela deitada. O rosto lindo inclinado. Os olhos pretos, pretos, abertos. Havia uma lágrima transparente. Eu me vi dentro daquela lágrima. A boca parecia rir um pouquinho. Tinha eu doze anos. O escolhido. Peguei na mão da Encantada. Fiquei dois dias sentado no chão ao lado dela, esperando ela retornar. A mão muito fria. A testa que beijei, gelada. A mãe não regressou. Os silêncios. Disse no dentro do fundo do coração: vou junto. Aqui não fico mais. A vida não vale, acabou. Odiei ter renascido. O escolhido. Ódio, ódios envenenados senti. Um vizinho, vizinhos forçaram a porta, sobejaram pela casa. Os espantos. Me tiraram de lá, no forçado. Eu gritei deveras os gritos. Me deixem, me deixem. O pobre, diziam, o pobre príncipe. Nos retratos a nossa vida em família: a mãe, o sempre lembrado e eu. Sobrevivi a mim mesmo. Sou uma ausência caminhando na névoa. O frio, frios dentro em mim.

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Foto: J. Finatto

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Pessoa Revisitado

Jorge Adelar Finatto

A Casa Fernando Pessoa está realizando, desde 20 de maio, exposição de pinturas e desenhos que têm o poeta Fernando Pessoa como tema. As obras são de vários artistas e pertencem ao acervo da CFP, com belos trabalhos como este acima.

A CFP se situa na Rua Coelho da Rocha, nº 16, no bairro Campo de Ourique, em Lisboa. Nela o  grande poeta viveu entre 1920 e 1935, ano de sua morte.*


Para conhecer melhor a CFP, visite as páginas:

http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/

http://www.mundopessoa.blogs.sapo.pt/


Vale a pena.

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* Mais informações no post O Barbeiro de Fernando Pessoa, publicado neste blog em 15.04.2010.

Valsas Brasileiras

Jorge Adelar Finatto
 

Descobri há pouco tempo o cd Valsas Brasileiras, de Marco Pereira (foto). Foi um achado. Não conhecia o trabalho deste grande violonista. Trata-se de um violão límpido, harmonioso, sofisticado, sentimental. Marco Pereira nos põe em contato com sua arte que está à altura da melhor tradição dos virtuosos do instrumento em nosso país.

O disco apresenta um repertório apurado de valsas populares.

O artista nasceu em São Paulo, onde iniciou seus estudos musicais. Depois viveu e estudou durante cinco anos na França. Naquele país obteve o título de Mestre em Violão pela Université Musicale Internationale de Paris, defendendo tese sobre a música de Heitor Villa-Lobos (outro grande amoroso do instrumento), no Departamento de Musicologia da Universidade de Paris-Sorbonne.

Na volta ao Brasil, fixou residência no Rio de Janeiro.

Além de virtuoso, é compositor. Tem vários discos gravados, apresenta-se no mundo inteiro. 

Gravou com importantes músicos, Tom Jobim, Paulinho da Viola e Roberto Carlos, entre tantos.

É professor adjunto no Departamento de Composição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Conhecer a obra de Marco Pereira é um belo encontro com o violão e com o melhor da música.

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site do artista:


quarta-feira, 19 de maio de 2010

A solidão da palavra: partilha

Jorge Adelar Finatto


A solidão da palavra é, na verdade, partilha.

Escrever é particular e solitário como viver. É um modo de comunicação difícil, isolado, clandestino.

Não tenho hora para escrever, mas gosto da noite. Escrevo em qualquer lugar e não só no escritório. Posso escrever em avião, sala de espera, quarto de hotel, fila, ônibus, trem, banco de praça.

Também gosto de escrever nos cafés. É um estar sozinho acompanhado. Não importam as conversas, os ruídos do entorno. Escrevo à mão, em pequenos cadernos, em páginas de livros, folhas soltas.

Se fosse músico ou pintor, acho que não escreveria. A música e a pintura são linguagens universais. Não precisam tradução, intérpretes, obras de consulta, dicionários. Basta ouvir, ver e sentir. É o ideal da arte. Não é o caso do texto, que se limita àqueles que sabem a língua.

Escrever, escrever de verdade, com compromisso e sentimento, é ofício duro. Salvo raras exceções, não é possível viver de literatura. É necessário ter outra profissão para sobreviver. O tempo para escrever e ler é pequeno.

Uma ocasião alguém me perguntou como encarava o fato de escrever há tanto tempo, ter alguns livros publicados, e permanecer um autor desconhecido. Eu disse que via com naturalidade.

Olhando para os que vieram antes, encontramos cerca de quatro mil anos de passado literário. O livro de Gênesis, por exemplo, foi concluído por Moisés em 1513, antes de Cristo. Se tomarmos apenas os escritores que surgiram a partir da Idade Média, encontraremos centenas e centenas de bons autores esperando leitura.

O tempo do leitor é raro.

O mundo dos livros também é regido por leis de mercado. Certos escritores têm presença constante nos meios de comunicação, nos catálogos das editoras e nas estantes de livrarias, por diversas razões, principalmente comerciais. A qualidade literária nem sempre é o critério mais observado nesse processo. Então ser lido, mesmo por poucas pessoas, sendo escritor fora do mercado, é realmente uma coisa notável.

A solidão é nosso lugar no mundo. Cada um vive na sua ilha da maneira como pode. Palavras são barcos que abrem caminhos entre as ilhas.

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Foto: J. Finatto. Amanhece sobre o mar.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

O habitante da casa de pedra


Jorge Adelar Finatto



O homem construiu em torno de si a difícil morada. Pedra por pedra, dia após dia. Era uma casa onde a tristeza e o sofrimento não podiam entrar. Os vizinhos da rua estranharam o tamanho daquela ausência. Como podia alguém se retirar do mundo daquele jeito? A casa foi erguida em paredes de duríssimo basalto. Não tinha porta nem janela. 

Às vezes o homem sentia saudades do mar e dos navios que passavam, à noite, com suas luzes no horizonte. Fazia muito frio na casa de pedra. O frio tomou conta do corpo do homem. Ele vivia os dias enrolado num grosso cobertor que o cobria do pescoço aos pés.

Não se ouviam passos nem vozes na casa de pedra. Nem gritos de alegria, nem choros.

Nos longes onde foi morar, o homem decidiu que não ia mais levantar da cama. Passou a dormir na maior parte dos dias. Raramente saía do escuro quarto. De tanto não sofrer, tinha se livrado da convivência com as pessoas. Ninguém nunca conseguiu entrar na casa.

Uma certa tarde o homem adormeceu e sonhou com o mar. Viu os barcos coloridos na praia. Não havia ninguém na areia. Só as palmeiras  olhando o azul. Ele não conseguia mais recordar nenhum rosto humano. Nem mesmo o seu, uma vez que tinha retirado todos os espelhos da casa.

A paisagem foi se apagando aos poucos, entre reflexos que pareciam o sol entrando nas águas. Naquela tarde o homem adormeceu pela última vez.

A espessa solidão se cumpriu.

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Foto: J.Finatto

domingo, 16 de maio de 2010

Transe

Jorge Adelar Finatto



Nesta noite clandestina de maio
não há solidão: é o vento
nem memória: é vento
o dia de amanhã (ainda não existe): vento

não vem o fim
não vem o sono
nem a esperança de quem perdeu:
vento

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Do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, Porto Alegre, 1983.

Foto: J.Finatto

sábado, 15 de maio de 2010

Com Garzón*

José Saramago

As lágrimas do Juiz Garzón hoje são as minhas lágrimas. Há anos, a um meio-dia, tomei conhecimento de uma notícia que foi uma das maiores alegrias da minha vida: a acusação a Pinochet. Este meio-dia recebi outra notícia, esta das mais tristes e desesperançadas: que quem se atreveu com os ditadores foi afastado da magistratura pelos seus pares. Ou melhor dito, por juízes que nunca processaram Pinochet nem ouviram as vítimas do franquismo.

Garzón é o exemplo de que o camponês de Florença não tinha razão quando, em plena Idade Média, fez dobrar os sinos a finados porque, dizia, a justiça havia morrido. Com Garzón sabíamos que as leis e o seu espírito estavam vivos porque as víamos actuar. Com o afastamento de Garzón os sinos, depois do repique a glória que farão os falangistas, os implicados no caso Gürtell, os narcotraficantes, os terroristas e os nostálgicos das ditaduras, voltarão a dobrar a finados, porque a justiça e o estado de direito não avançaram, nem terão ganho em transparência e quem não avança, retrocede. Dobrarão a finados, sim, mas milhões de pessoas sabem reconhecer o cadáver, que não é o de Garzón, esclarecido, respeitado e querido em todo o mundo, mas o daqueles que, com todo o tipo de argúcias, não querem uma sociedade com memória, sã, livre e valente.

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No se entiende

El Poder Judicial suspende a Baltasar Garzón

por investigar los crímenes del franquismo

http://www.elpais.com/articulo/espana/Poder/Judicial/suspende/Baltasar/Garzon/investigar/crimenes/franquismo/elpepuesp/20100514elpepunac_4/Tes

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"Afronto el proceso con la tranquilidad de saber que soy inocente"

Baltasar Garzón

"No se afrontan las situaciones complejas con optimismo, sino con tranquilidad, con la tranquilidad que da saber que soy inocente de lo que se me acusa. Como hombre respetuoso con la ley, sólo me queda asumir la decisión de mañana ejerciendo mi defensa para que quede absolutamente clara cuál es la situación".

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 *Publicado com autorização da Fundação José Saramago

http://www.josesaramago.org/

Texto divulgado no site da Fundação em 14/05/2010.

A grafia é a de Portugal.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Un certain regard

Jorge Adelar Finatto


Um certo olhar. Tudo se resume ao modo como se olha a vida. E há infinitas maneiras de senti-la. Me perdoem os betas, os alfas, os ipsilones, gamas e zetas. Mas acho que o grande ora-veja da vida são  os filhos. Os filhos com seu afeto, sua doce presença, suas tosses e febres, seus medos do escuro, seus pesadelos, seus passos, alegrias e risadas. Os filhos que nos dão a chance de viver uma outra infância. Eles reinventam o mundo, não o sério, pesado e triste que enfrentamos todos os dias. Mas um outro, onde ainda existe calor humano, esperança, onde as células boas se reproduzem infinitamente, ao contrário das más, que desistem e desaparecem diante da beleza da vida. Se alguém está em dúvida: filhos. Biológicos, adotivos, pouco importa. Todos nascem no mesmo coração.

Em suma: as mulheres são os seres mais bonitos que Deus pôs no universo. Depois dos filhos, claro. O resto são nuvens e literatura.

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Foto: J.Finatto. Passo dos Ausentes. Vale do Olhar.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A fala do Arlequim

Jorge Adelar Finatto


Querer eu quero, e o querer é tudo. Cumpro os regulamentos do invisível. De silêncio em silêncio, as difíceis passagens. Eu sinto no calado. Os comedimentos.  A pessoa sonhada tem certos jeitos. De não se deixar ver, nem tocar, nem sentir, nem sonhar. Os caprichos do ser amado. As magnólias me doem no inverno de tão belas. Eu lírico. Os tormentos do amador. A musa é do tipo nem aí. Nem sabe de mim. Arlequim ao relento eu sou. Os rigores da lira. Vivo no austero. Sinto no meu segredo. Amador. Ela não me vê. Eu a vejo. A musa é só o motivo. Eu sou o seu adamastor. O que dorme no banco da praça. O que mora dentro do casaco e da manta. O do chapéu ridículo. O que fala algaravias no café. O que não suporta gritos. O que senta no cais a olhar as faluas. Caminho nos meus penhascos.  Ruínas são coisas que habitam o íntimo da pessoa. O que se fala e o outro não entende. Um diz aurora, a musa entende anoitecer. As palavras, tonterias. Sentimento é o ora veja da vida. Cultivo distância, alimento paciência. O ser sonhado tem certos olhares.  A musa vive num jardim secreto que eu mesmo inventei.   A trança de linho desce pelo muro escarpado do castelo. Eu romântico. A vida gira nos esconsos. Os trapos coloridos do meu coração dançam no vento. Amador, amador.

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Foto: J.Finatto. Cena veneziana.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

As origens do Nazismo

Jorge Adelar Finatto


O Nazismo foi uma das maiores atrocidades da história humana. Conhecer suas origens e o tipo de comportamento que o gerou é fundamental para reconhecer seus sinais e evitar que a experiência se repita. O filme A Fita Branca (Das Weisse Band), dirigido e concebido por Michael Haneke, reúne numa mesma história os diferentes elementos que podem nos fazer entender um pouco da gênese deste monstruoso episódio.

Premiado com a Palma de Ouro em Cannes em 2009, e recebendo duas indicações ao Oscar em 2010, nas categorias de melhor filme estrangeiro e fotografia, A Fita Branca se passa num lugarejo da Alemanha, às vésperas da eclosão da Primeira Guerra Mundial. A comunidade é formada por camponeses, por um Barão que emprega em suas terras a maioria das pessoas do lugar, e por figuras como uma parteira, um médico, um professor, um líder religioso e jovens adolescentes.

O ambiente se caracteriza por comportamentos extremamente rígidos e pela frieza e indiferença em relação ao outro, e nesse processo personagens como o líder religioso exercem importante papel. Estranhos acontecimentos começam a ocorrer, rompendo a rotina da pacata (na aparência) aldeia, e esses comportamentos começam a ser revelados em diversos níveis.

O filme é inquietante e nos leva a pensar e repensar sobre as diversas formas de violência contra o ser humano. Encontramos a dureza do autoritarismo em suas manifestações na família, nos relacionamentos do dia a dia, na política, na escola, na religião, no trabalho, e nos defrontamos com padrões morais socialmente tolerados, alguns aparentemente inocentes, mas profundamente cruéis. Um ambiente favorável à barbárie.

Trata-se de obra que proporciona várias leituras. O excelente trabalho foi produzido em preto-e-branco, com 144 minutos de duração, que passam rapidamente.

(Assisti no Instituto NT, em Porto Alegre, rua Marquês do Pombal, 1111 (sem estacionamento). É um casarão antigo transformado em centro de cinema e de cultura. O café é um dos pontos altos desse novo espaço, oferecendo uma boa variedade de aromas e composições de sabor.) 

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Foto: Reuters, divulgação do filme.

Inversos, novo livro de Ana Luísa Amaral

Jorge Adelar Finatto



Nessa terça-feira, 11 de maio,  na cidade do Porto, em Portugal, haverá o lançamento de Inversos,  novo livro de poemas de Ana Luísa Amaral. A edição  é da Publicações Dom Quixote. O evento ocorrerá na Biblioteca Almeida Garret, às 18h30min, e  a apresentação da obra será feita por Maria Irene Ramalho. Haverá leitura de textos por Paulo Eduardo Carvalho e pela própria autora. O convite é feito pela Câmara Municipal do Porto e pela editora.
 

Ana Luísa Amaral figura entre os principais nomes da literatura portuguesa da atuallidade, com uma obra reconhecida pelo público e pela crítica. Além de poeta talentosa e premiada, leciona Literatura e Cultura Inglesa e Americana na Universidade do Porto. Neste blog publicamos uma interessante entrevista com a autora, em 02 de março passado. Nela Ana Luísa nos dá uma bela ideia de literatura e de seu trabalho, e nos alimenta com seu conhecimento e sua inspiração.


Impedido pela neblina de sair de Passo dos Ausentes, não poderei fazer a travessia do Atlântico a fim de estar presente no lançamento. Os que puderem comparecer serão recompensados pelos ensolarados versos do livro, que reúne a obra poética de Ana Luísa.

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Foto: Ana Luísa Amaral.

Entrevista com Ana Luísa Amaral:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/03/o-tempo-de-construir-palavra.html
 

domingo, 9 de maio de 2010

Poetas e poesia*

José Saramago


Não será com todos nem será sempre, mas às vezes acontece o que estamos vendo nestes dias: que, por ter morrido um poeta, aparecem, em todo o mundo, leitores de poesia que se declaram devotos de Mario Benedetti e que precisam de um poema que expresse o seu desconsolo e talvez também para recordar um passado em que a poesia teve lugar permanente, quando hoje é a economia que nos impede de dormir. Assim, vemos que de repente se estabelece um tráfico de poesia que deve ter deixado perplexos os medidores oficiais, porque de um continente a outro saltam mensagens estranhas, de factura original, linha curtas que parecem dizer mais do que à primeira vista se crê. Os decifradores de códigos não têm mãos a medir, há demasiados enigmas para decifrar, demasiados abraços e demasiada música acompanhando sentimentos que são demasiados: o mundo não poderia suportar muitos dias desta intensidade emocional, mas tão-pouco, sem a poesia que hoje se expressa, seríamos inteiramente humanos. E isto, em poucas linhas, é o que está sucedendo: morreu Mario Benedetti em Montevideo e o planeta tornou-se pequeno para albergar a emoção das pessoas. De súbito os livros abriram-se e começaram a expandir-se em versos, versos de despedida, versos de militância, versos de amor, as constantes da vida de Benedetti, junto à sua pátria, aos seus amigos, ao futebol e alguns boliches de trago largo e noites mais largas ainda.

Morreu Benedetti, esse poeta que soube fazer-nos viver os nossos momentos mais íntimos e as nossas raivas menos ocultas. Se com os seus poemas saímos à rua – lado a lado somos muito mais que dois –, se lendo “Geografias”, por exemplo, aprendemos a amar um país pequeno e um continente grande, agora, segundo as cartas que chegam à Fundação, recuperaram-se momentos de amor que deram sentido a tempos passados, e quem sabe se presentes. Isso também o devemos a Benedetti, ao poeta que ao morrer fez de nós herdeiros da bagagem de uma vida fora do comum.
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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago
http://www.josesaramago.org/
Texto extraído do blog O Caderno de Saramago
http://caderno.josesaramago.org/.
Publicado originalmente em 19/05/2009.
A grafia é a de Portugal.

Imagem: Produzida pela Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, acerca da leitura de poemas de Mario Benedetti, por ocasião do primeiro ano de sua morte.

sábado, 8 de maio de 2010

Canção da bruma

Jorge Adelar Finatto




Senhor
quando chegar
          a minha vez
de cruzar a ponte
deixa eu levar comigo
no alforje de nuvem
          os dias de sol

as tardes
de outono

os pinheiros
da serra onde
                   nasci

deixa eu levar
o som do riacho

as antigas
conversas
da Rua São João

me concede
a memória
dos amigos
da infância

na bruma
que serei
me alcança
um bosque
e pássaros
para tecer
a minha casa    

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Poema do livro O habitante da bruma, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1998. 
Foto: J. Finatto


sexta-feira, 7 de maio de 2010

O prisioneiro da torre

Jorge Adelar Finatto


O tempo é uma torre da qual somos prisioneiros.

A distração é, talvez, a melhor maneira de aproveitar cada migalha de segundo. Esse estado de alma em que só caminhamos no presente. Sentimos que é bom estar vivo, e vivemos.

Mas como fazer pra viver por inteiro o instante?

A obsessão com a passagem do tempo só gera mais tempo perdido.

A evasão de nós mesmos, um olhar em torno da nossa ilha, um passeio sentimental com o outro, o foco em algo diferente de nós.

A nuvem rosa é um pássaro voando contra o azul.

O relógio de pêndulo sem pêndulo, calado, na parede da torre.

A areia para de escorrer na ampulheta, ou escorre mais lentamente, quando convivemos com os companheiros de travessia.

Estamos a bordo do pequeno planeta azul.

Carregamos no alforje o suprimento das manhãs.

O coração pulsa no tempo.

Estamos vivos.

Assim seja.

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Foto: J. Finatto

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Nefelindo e o aeroplano

Jorge Adelar Finatto


Juan Niebla, o músico cego que toca bandoneom na estação de trem abandonada,  traz dentro de si uma luz que cresce e se projeta nos outros, sempre que coisas nefastas acontecem em Passo dos Ausentes.


O aeroplano está destruído no chão da Praça da Ausência. O pouso forçado aconteceu na tarde de sábado. As pessoas estavam em suas casas, encolhidas em volta do fogão a lenha, quando ouviram o forte barulho.

Nefelindo Acquaviva foi encaminhado ao hospital, onde se recupera do infortúnio. Um milagre, segundo o médico. Foi a oitava queda nos últimos dois anos. Quando o colocaram na cama, depois dos procedimentos de urgência, estava com a cabeça e o tórax enfaixados. Através de gestos demorados, pediu lápis e papel.

"Ninguém alimente ilusões. Eu não vou desistir", escreveu com a letra trêmula.

O pioneiro da aviação de Passo dos Ausentes é obcecado pela ideia de ir até Porto Alegre num aparelho mais pesado que o ar por ele próprio inventado no galpão-oficina do fundo do quintal. A aeronave de Nefelindo é uma espécie de motociclo voador pintado de branco com uma águia negra desenhada nas laterais. O piloto fica dentro de um tipo de casulo. Na parte de trás tem uma chaminé e um pouco mais à frente um par de asas. Ao lado do casulo existe um pequeno bagageiro acoplado.

Como essa coisa voa é um mistério que somente Nefelindo conhece.

Naquela trágica manhã, ele decolou da pista improvisada perto do galpão, alçou voo rasante sobre as cercas, árvores e telhados. Quando contornava a torre da igreja, em direção ao sul, o motor soltou estouros e começou a falhar. O objeto voador identificado como Águia Negra perdeu altura rapidamente. Mergulhou na copa de um velho plátano e, em seguida, veio abaixo. Quem assistiu à queda – houve algumas testemunhas - não entende como Nefelindo sobreviveu. Saiu cambaleando da Águia Negra antes de desabar no chão.

A história é sempre a mesma. Trabalha durante meses na preparação da aeronave. Um belo dia fecha a casa onde vive sozinho, coloca a mala de couro no bagageiro, liga o motor e parte. Poucos minutos depois, cai.

Nefelindo usa o capacete de couro marrom e a manta branca que pertenceram ao avô, piloto na Primeira Guerra Mundial.

- As pessoas não se dão conta do que está acontecendo, costuma dizer. Estamos cada vez mais solitários e perdidos. Não temos sequer estrada em condições de chegar e sair daqui. Nem no mapa do Rio Grande do Sul nós aparecemos. Estamos cercados pela neblina e pelo mato. Ninguém sabe da nossa existência. Somos ruínas vivas.

Na noite que se seguiu ao desastre, Juan Niebla, o músico cego que toca bandoneom na estação de trem abandonada, foi até o jardim do hospital e executou canções perto da janela do quarto do invencível aviador.

Juan Niebla traz dentro de si uma luz que cresce e se projeta nos outros, sempre que coisas nefastas acontecem em Passo dos Ausentes.

Longe do mundo, caminhamos na névoa. Precisamos do calor uns dos outros. Somos poucos e invisíveis.

Nefelindo tem a nossa têmpera. Luta para atravessar as brumas da solidão. Como todos nessa cidade perdida, carrega a vocação para os altos vôos.

O resto, como diz, são os riscos de estar vivo e sonhar.

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Foto: J. Finatto

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Os desolados

Jorge Adelar Finatto




As manhãs fogem do escuro. A solidão é um negro capuz que se veste nos retirados da dor.

Tive medo de ver os escombros. Os difíceis haveres do abandono. Havia uma mulher chorando. Quem? Não divulguei.

O coração humano gira em tristes remoinhos. O traçado torto da vida. Quem puder se segure, senão cai no perau. Eu, quando escuto gente chorando, sinto breu andando à volta.

Coisas que vi. Meu coração barroco.

Aquele choro me doeu. Mas eu fui. Foi quando meus olhos a divulgaram. A mulher era uma visão sob a pérgula. Eu não sabia o que era beleza até aquele dia. Estava sentada num banco de pedra cercado de camélias vermelhas, ao lado da fonte. Havia uma escada com seis degraus que terminava no ar. Ligava lugar nenhum a parte alguma.

A casa desmoronada no íntimo da pessoa.

A mulher, sua tristeza na alma, aquela ruína. Me aproximei no cuidadoso jeito. Era uma tarde de junho como essa. E fria, fria. A mulher - a visão - fez sinal para eu parar e esperar. O que fiz nos respeitos. Ela se levantou, arrumou o vestido, olhou o céu. Entre as duas mãos largou a face molhada, os cabelos de linho, depois seguiu sozinha. Eu fui ao mundo.

Eu vivia num lugar perdido, arrostando sol e vento, sem eira nem beira. Os loucos dias no sanatório do mundo. Os ermos.

Caminhos que se andam.

Um dia de fina luz de primavera ela apareceu, veio em minha direção, pegou no braço meu esquerdo. Caminhou, caminhamos. Em silêncio. Palavras que se dizem sem falar.

A brilhante estrela caiu no meu caminho.

O punhal que me rasgava por dentro, vermelho, foi saindo, saiu.

Nos acolhemos, reunimos as raras pertenças.

Me tornei sentimento. Sentimentos.
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Foto: J. Finatto. Jardim Botânico, Rio de Janeiro.

domingo, 2 de maio de 2010

Palavras para uma cidade

José Saramago



Mexendo nuns quantos papéis que já perderam a frescura da novidade, encontrei um artigo sobre Lisboa escrito há uns quantos anos, e, não me envergonho de confessá-lo, emocionei-me. Talvez porque não se trate realmente de um artigo, mas de uma carta de amor, de amor a Lisboa. Decidi então partilhá-la com os meus leitores e amigos tornando-a outra vez pública, agora na página infinita de internet e com ela inaugurar o meu espaço pessoal neste blog.
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Palavras para uma cidade


Tempo houve em que Lisboa não tinha esse nome. Chamavam-lhe Olisipo quando os Romanos ali chegaram, Olissibona quando a tomaram os Mouros, que logo deram em dizer Aschbouna, talvez porque não soubessem pronunciar a bárbara palavra. Quando, em 1147, depois de um cerco de três meses, os Mouros foram vencidos, o nome da cidade não mudou logo na hora seguinte: se aquele que iria ser o nosso primeiro rei enviou à família uma carta a anunciar o feito, o mais provável é que tenha escrito ao alto Aschbouna, 24 de Outubro, ou Olissibona, mas nunca Lisboa. Quando começou Lisboa a ser Lisboa de facto e de direito? Pelo menos alguns anos tiveram de passar antes que o novo nome nascesse, tal como para que os conquistadores Galegos começassem a tornar-se Portugueses…

Estas miudezas históricas interessam pouco, dir-se-á, mas a mim interessar-me-ia muito, não só saber, mas ver, no exacto sentido da palavra, como veio mudando Lisboa desde aqueles dias. Se o cinema já existisse então, se os velhos cronistas fossem operadores de câmara, se as mil e uma mudanças por que Lisboa passou ao longo dos séculos tivessem sido registadas, poderíamos ver essa Lisboa de oito séculos crescer e mover-se como um ser vivo, como aquelas flores que a televisão nos mostra, abrindo-se em poucos segundos, desde o botão ainda fechado ao esplendor final das formas e das cores. Creio que amaria a essa Lisboa por cima de todas as cousas.

Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um que dizemos passado, outro que dizemos futuro. Podemos navegar no mar do passado próximo graças à memória pessoal que conservou a lembrança das suas rotas, mas para navegar no mar do passado remoto teremos de usar as memórias que o tempo acumulou, as memórias de um espaço continuamente transformado, tão fugidio como o próprio tempo. Esse filme de Lisboa, comprimindo o tempo e expandindo o espaço, seria a memória perfeita da cidade.

O que sabemos dos lugares é coincidirmos com eles durante um certo tempo no espaço que são. O lugar estava ali, a pessoa apareceu, depois a pessoa partiu, o lugar continuou, o lugar tinha feito a pessoa, a pessoa havia transformado o lugar. Quando tive de recriar o espaço e o tempo de Lisboa onde Ricardo Reis viveria o seu último ano, sabia de antemão que não seriam coincidentes as duas noções do tempo e do lugar: a do adolescente tímido que fui, fechado na sua condição social, e a do poeta lúcido e genial que frequentava as mais altas regiões do espírito. A minha Lisboa foi sempre a dos bairros pobres, e quando, muito mais tarde, as circunstâncias me levaram a viver noutros ambientes, a memória que preferi guardar foi a da Lisboa dos meus primeiros anos, a Lisboa da gente de pouco ter e de muito sentir, ainda rural nos costumes e na compreensão do mundo.

Talvez não seja possível falar de uma cidade sem citar umas quantas datas notáveis da sua existência histórica. Aqui, falando de Lisboa, foi mencionada uma só, a do seu começo português: não será particularmente grave o pecado de glorificação… Sê-lo-ia, sim, ceder àquela espécie de exaltação patriótica que, à falta de inimigos reais sobre que fazer cair o seu suposto poder, procura os estímulos fáceis da evocação retórica. As retóricas comemorativas, não sendo forçosamente um mal, comportam no entanto um sentimento de auto-complacência que leva a confundir as palavras com os actos, quando as não coloca no lugar que só a eles competiria.

Naquele dia de Outubro, o então ainda mal iniciado Portugal deu um largo passo em frente, e tão firme foi ele que não voltou Lisboa a ser perdida. Mas não nos permitamos a napoleónica vaidade de exclamar: “Do alto daquele castelo oitocentos anos nos contemplam” – e aplaudir-nos depois uns aos outros por termos durado tanto… Pensemos antes que do sangue derramado por um e outro lados está feito o sangue que levamos nas veias, nós, os herdeiros desta cidade, filhos de cristãos e de mouros, de pretos e de judeus, de índios e de amarelos, enfim, de todas as raças e credos que se dizem bons, de todos os credos e raças a que chamam maus. Deixemos na irónica paz dos túmulos aquelas mentes transviadas que, num passado não distante, inventaram para os Portugueses um “dia da raça”, e reivindiquemos a magnífica mestiçagem, não apenas de sangues, mas sobretudo de culturas, que fundou Portugal e o fez durar até hoje.

Lisboa tem-se transformado nos últimos anos, foi capaz de acordar na consciência dos seus cidadãos o renovo de forças que a arrancou do marasmo em que caíra. Em nome da modernização levantam-se muros de betão sobre as pedras antigas, transtornam-se os perfis das colinas, alteram-se os panoramas, modificam-se os ângulos de visão. Mas o espírito de Lisboa sobrevive, e é o espírito que faz eternas as cidades. Arrebatado por aquele louco amor e aquele divino entusiasmo que moram nos poetas, Camões escreveu um dia, falando de Lisboa: “…cidade que facilmente das outras é princesa”. Perdoemos-lhe o exagero. Basta que Lisboa seja simplesmente o que deve ser: culta, moderna, limpa, organizada – sem perder nada da sua alma. E se todas estas bondades acabarem por fazer dela uma rainha, pois que o seja. Na república que nós somos serão sempre bem-vindas rainhas assim.


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*Publicado com autorização da Fundação José Saramago

http://www.josesaramago.org/

Texto extraído do blog O Caderno de Saramago

http://caderno.josesaramago.org/.

Publicado originalmente em 17/09/2008.

A grafia é a de Portugal.

Foto: J. Finatto - Castelo de São Jorge, visto desde o Rossio, Lisboa.