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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

O amor de Ofélia e Fernando

Jorge Finatto

photo: jfinatto, fev. 2018


UM DIA desses peguei o ELÉCTRICO 28 (o querido bonde lisboeta) e fui até o Cemitério dos Prazeres, uma espécie de Père-Lachaise português, onde, como em Paris, estão sepultados alguns nomes importantes das artes, literatura, política e ciência. Após descer do elétrico, resolvi entrar. O atendimento na portaria é muito educado com entrega de mapa ao visitante.

Fernando Pessoa (1888 - 1935) e Ofélia Queiroz (1900 - 1991) viveram um amor que ficou para a eternidade. Amor de namorados que não chegaram a se casar porque assim tinha de ser. A numerosa troca de cartas, postais, telegramas, desenhos e bilhetes entre os dois está registrada em livros.


Ambos discretos e reservados, os papéis vieram à edição muitos anos após a morte de Pessoa com consentimento de Ofélia. Uma edição completa foi publicada pela Assírio & Alvim em 2012, reunindo a correspondência. O acervo reúne 185 documentos. Neles se encontram palavrinhas inventadas pelo casal.¹

Já escrevi aqui sobre a relação deles e remeto o raro leitor ao texto.²

Me dirigi ao túmulo de Ofelinha, ou Bebé, como era tratada pelo namorado poeta. Seus restos mortais foram trasladados para o local em fevereiro de 2016 por decisão do Município de Lisboa. Mas ainda não foi desta vez que haviam de ficar juntos. Os restos mortais de Fernando Pessoa foram levados do Cemitério dos Prazeres para o Mosteiro dos Jerônimos, onde se encontram alguns grandes vultos nacionais portugueses, em 1985.

F. Pessoa, menino e homem. Casa Fernando Pessoa.
photo: jfinatto, fev. 2018

É um túmulo pequeno, discreto, mas quanta história naqueles vestígios de uma vida. Teria sido um amor malogrado? Acho que não, pensando bem. Se tivessem casado, teriam sido felizes? Não teriam caído na inevitável rotina dos casamentos em que as relações acabam em amizade, os amantes se transformando em irmãos? Isso quando não viram inimigos em guerra aberta. Sei lá.

Fernando Pessoa casou consigo mesmo e teve filhos na figura dos heterônimos. Foram sua família espiritual. O resto era o mundo real que não importava muito.

Na lápide há registro de dois trechos de cartas.


_________

¹ Cartas de amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz. Assírio&Alvim, 2012, Lisboa.

² O casal do Elétrico 28:
https://ofazedordeauroras.blogspot.pt/search?q=O+casal+do+el%C3%A9trico+28

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Lisboa revisitada

Jorge Finatto
 
pintura de Fernando Pessoa. Almada Negreiros. Casa Fernando Pessoa
 
Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

 
VIR A ESTA CIDADE é sempre um reencontro. Eu não sou um viajante distraído, apegado a superficialidades, lugares-comuns. Gosto de conhecer o que vai mais abaixo da aparência. Cidades são como pessoas: querem ser tratadas com interesse e respeito.
 
Eu namoro Lisboa. Este céu azul, no inverno, só é possível aqui em Portugal. O resto da Europa treme de frio e mergulha em infindáveis dias cinzentos. Aqui o frio é temperado com sol amarelo e cálido. Fernando Pessoa está em toda parte.
 
Lisboa. photo: Casa Fernando Pessoa
 
 
A luz sobre Lisboa é assunto de conversas com artistas e motoristas de táxi. Dizem que uma luz diferente habita a cidade. É verdade. Não há luz como essa. É um mistério, uma dádiva. É uma luz prenhe de luz.
 
Então aqui estou uma vez mais e agradeço a Deus por isso. Que possa voltar muitas outras. Que possa olhar nos seus olhos e dizer: namoro-te, Lisboa.
 
Imagem: Casa Fernando Pessoa
 

segunda-feira, 7 de março de 2016

O casal do Elétrico 28

Jorge Finatto

e-book, editora Assírio & Alvim, Portugal
 
Estou levando livros na bagagem, além de revistas e jornais. Publicações que não existem no Brasil. Há uma estantezinha lilás na mansarda, em Lucerna, onde acomodei, provisoriamente, o material. Mas logo vão ter que entrar na mala e enfrentar o Atlântico, nas asas do grande pássaro metálico, durante 12 horas de voo desde Zurique.
 
Na hora de entrar na mala os livros parecem feitos não de papel mas de pedra. Mas se para mim viajar é caminhar, conhecer, conversar, fotografar, ler jornais e revistas, escutar rádios da cidade e  comprar livros, o que fazer? O que é de gosto regala a vida, diz a sabedoria do povo.
 
Mas o que eu quero dizer é outra coisa. Estava lendo o jornal Expresso, de Portugal, edição de 13 de fevereiro que trouxe de Lisboa (ler jornais velhos é uma das alegrias possíveis nesses tempo terríveis, porque as desgraças que estavam por acontecer ainda não tinham ocorrido).

Refiro-me à notícia do traslado dos restos mortais de Ofélia Queiroz (1900-1991), a eterna namorada de Fernando Pessoa (1888-1935), para o Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, ocorrido no dia 12 de fevereiro.¹

Nesse cemitério o poeta esteve enterrado até 1985, quando o que sobrou de seu corpo foi levado para o Mosteiro dos Jerônimos, onde está ao lado de Camões e Vasco da Gama.

Em frente ao Cemitério dos Prazeres, numa parte alta da cidade, situa-se uma estação do Elétrico 28, bonde que Ofélia e Fernando seguidamente tomavam em seus namoros secretos pela cidade.

Maria da Graça Queiroz, sobrinha-neta de Ofélia, no traslado dos restos mortais
foto: Tiago Miranda

A transferência dos ossos de Ofélia foi obra da Câmara Municipal de Lisboa. Ao que se sabe, Ofelinha (como a chamava carinhosamente Fernando) foi a única namorada do poeta. Namoro de duas pessoas discretas e sensíveis, que tudo fizeram por não tornar pública a relação (essencialmente por decisão dele).

Fernando Pessoa decidiu que não poderia se casar (a sua precária condição financeira de tradutor freelancer não lhe permitia oferecer a ela uma boa condição de vida). Essa decisão (escondida num véu de indecisão) contrariou o desejo ardente de Ofelinha. Mais que tudo, a obra literária era e sempre foi a prioridade das prioridades na vida de Pessoa.

No íntimo, o poeta talvez cogitasse que o casamento o distrairia do "destino" de tornar-se o super Camões (que de fato se tornou). Provavelmente se enganou, o casamento poderia numa certa altura melhorar e prolongar sua existência, dar-lhe alguma alegria além da escrita e do álcool - que consumia deveras - , e dos 80 cigarros diários.

Fernando Pessoa

"Gosto muito, mesmo muito, da Ofelinha. Aprecio muito, muitíssimo, a sua índole e o seu caráter. Se casar não casarei senão consigo.", escreveu Fernando Pessoa. Respondeu Ofélia: "Agradeço muito os teus beijos e envio-te também muitíssimos e muitos chi-corações apertados. Da tua, sempre mesmo muito tua, Ofélia." Trechos de cartas trocadas entre eles, inscritos agora na lápide de Ofélia no Cemitério dos Prazeres.

Trocaram inúmeras cartas, bilhetes, postais, recadinhos, desenhos, palavras inventadas, que muitos anos depois foram publicados em livro. Ofélia não se conformou com o rompimento. Sofreu em sigilo e em silêncio. Só veio a casar-se três anos depois da morte dele. Não teve filhos com o marido e este, felizmente,  não colocou nenhum obstáculo para que ela guardasse as cartas e demais documentos do ex-namorado.

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
                     Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)²

A ironia reside no fato de que, mais uma vez, os fados separam Ofelinha e Fernando. O jazigo onde os restos dela foram inumados fica próximo daquele onde estava o poeta antes de ir para os Jerônimos. Mais um desencontro.

A Câmara Municipal de Lisboa perdeu, talvez, a última oportunidade de reunir, ao menos simbolicamente, o que a vida separou. Poderia ter trasladado os restos de Ofelinha para o Mosteiro dos Jerônimos, aproximando-os, post-mortem, aos do poeta. Faz muito dó que não tenha sido assim.

Se é verdade que Pessoa foi um gênio literário, não é menos verdade que Ofélia foi uma mulher admirável em sua inteligência, discrição, sensibilidade e caráter, tendo influenciado positivamente a vida de Fernando, como comprova a extensa correspondência.

Ofelinha está para Fernando como Inês está para Pedro, no Mosteiro de Alcobaça.³ Será despropósito? São quatro personagens centrais na vida emocional de Portugal. São duas histórias de amor que não vingaram.

A reunião de Ofélia e Fernando pelo menos faria a alegria dos fantasmas dos antigos namorados. E de alguns românticos como eu que olham com ternura para aquele homem e aquela mulher singulares que sonharam um amor que nunca se realizou. O casal-que-não-foi entrou para a história dos grandes amores impossíveis. Como tantos e tantos no mundo.

O casal do Elétrico 28.
_______

¹O último desencontro entre Ofélia e Fernando Pessoa (excelente texto de Cristina Figueiredo):
 http://expresso.sapo.pt/sociedade/2016-02-14-O-ultimo-desencontro-entre-Ofelia-e-Fernando-Pessoa 

²Poesia completa de Álvaro de Campos, p. 225. Fernando Pessoa, Companhia das Letras, São Paulo, 2007.

³Pedro e Inês:
http://www.mosteiroalcobaca.pt/pt/index.php?s=white&pid=235
 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Fernando Pessoa viajando no elétrico em Lisboa

Jorge Finatto
 
pintura: Mário Linhares. foto com celular: jfinatto
 

Estive revisitando o Museu Nacional dos Coches, em Lisboa (fui lá pela primeira vez em 2002), sempre um programa interessante. São carruagens muito antigas, com exemplares a partir do século XVI em diante. Pelo que li, não existem iguais em nenhum país da Europa. Na França, por exemplo, teriam sido destruídas durante a famosíssima Revolução de 1789.
 
Certos coches são tão formosos que dá vontade de sentar neles e sair rodando pela cidade, como faziam os nobres e prelados daqueles tempos. Existem alguns construídos especialmente para crianças. Não estou a justificar a monarquia nem privilégios (ainda em voga em várias repúblicas atuais). Penso na beleza e técnica construtiva dos objetos em si, produtos da criatividade humana. Numa época em que motores estavam longe, muito longe de existir, e o transporte de tração animal era a regra, andar de coche era uma necessidade e um luxo. Mais adiante publicarei imagens que colhi no local.
 
No mesmo museu, visitei a exposição de pinturas do artista português Mário Linhares, as mesmas que ilustram o livro de Fernando Pessoa intitulado Lisboa, o que o turista deve ver. São desenhos de fino traço e sensibilidade, dignos de figurar na obra do genial poeta que Portugal deu ao mundo.
 
Dois ou três dias depois, estava no agradável Café Lisboa, no Teatro Nacional de São Carlos (situado no largo com o mesmo nome, onde nasceu, aliás, Fernando Pessoa, no quarto andar de um edifício situado no lado oposto ao teatro), quando, ao manusear o cardápio, me chamou a atenção a pintura na capa e contracapa, que ilustra este post (e a capa do blog nesta data). De quem era? Mário Linhares. A foto (feita com o celular) saiu meio sombreada.
 
Gostei tanto que enviei um e-mail ao artista solicitando autorização para publicar aqui no blog (ele gentilmente atendeu o pedido). Retrata Pessoa viajando na porta de um elétrico, observando a cidade que tanto amou/amamos. Um momento precioso. Ao Mário, cumprimentos pelo trabalho e um abraço agradecido.
 
pintura de Mário Linhares na contracapa.
em cima, poema de Fernando Pessoa
 

terça-feira, 9 de junho de 2015

Aniversário de Fernando Pessoa

 
Imagens do poeta, Casa Fernando Pessoa 
 

A seguir, informe da Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, a respeito das celebrações do 127º aniversário de nascimento de Fernando Pessoa (nasceu em 13 de junho de 1888, em Lisboa, e ali faleceu em 30 de novembro de 1935).

Nos dias 12 e 13 de Junho, sexta e sábado, a Casa Fernando Pessoa celebra o aniversário de Fernando Pessoa, no espaço da CFP e na Feira do Livro de Lisboa.

Começamos o brinde no dia 12, sexta, às 17h00, com o lançamento do livro O Meu Tio Fernando Pessoa, uma antologia de textos do autor, organizados pela sobrinha Manuela Nogueira.
Dia 13, sábado, às 15h20, à hora a que, em 1888, nascia Fernando Pessoa, arranca na CFP o recital Pessoa Grande às Mais Pequenas. Ainda na CFP propomos uma visita guiada especial à casa habitada pelo autor: às 17h00, em português e com desconto de aniversário.
A celebração na Feira do Livro de Lisboa conta com a oficina para crianças e famílias, Descalçar Botas d'Elástico, às 18h00, e o regresso de Café Orpheu - Segundo Turno, às 18h00 e às 21h00, com um programa transversal a cruzar a música, a performance e a imagem.
E, em dia de aniversário, as prendas são para quem nos visita: a entrada na CFP tem um desconto de 50% e são várias as oportunidades na nossa loja-livraria.

Todos os detalhes de programação em www.casafernandopessoa.pt
Vemo-nos por cá, até breve.
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O barbeiro de Fernando Pessoa:

domingo, 9 de março de 2014

Fernando Pessoa e o barbeiro Manassés

Jorge Adelar Finatto
 
Fernando Pessoa. fonte: Casa Fernando Pessoa


Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Fernando Pessoa, no poema Mar Português
 
Em 2007 estive na minúscula sala onde funcionou a Barbearia Seixas do senhor Manassés, na Rua Coelho da Rocha, bairro Campo de Ourique, em Lisboa. Ele foi, durante muitos anos, o barbeiro de Fernando Pessoa (1888-1935), que morou naquela rua entre 1920 e 1935. Conversei na ocasião com António Seixas, quase octogenário, que ocupava então a velha sala que tinha pertencido ao seu pai.

Não era mais uma barbearia, mas uma oficina para conserto de aparelhos de som. Estava localizada quase na frente do prédio onde o poeta viveu até a morte em 30 de novembro de 1935. No local existe hoje a Casa Fernando Pessoa.
 
Sobre esta longa conversa e as revelações de António (que conheceu o poeta) escrevi O barbeiro de Fernando Pessoa, publicado no blog.¹

Acrescento algo que não divulguei naquele texto. O poeta vivia na época na companhia da irmã, do cunhado e da sobrinha. Segundo António Seixas, o relacionamento de Fernando com o marido da irmã não era bom.

Não admira que assim fosse. O poeta levava uma vida de solteirão, ganhava pouco como correspondente de inglês e francês em casas comerciais, bebia muito (fato que contribuiu para a morte precoce aos 47 anos) e fumava como uma chaminé no pequeno quarto que ocupava no apartamento. O cunhado era coronel acostumado à disciplina da caserna. A contradição entre as visões de mundo de ambos é de fácil percepção.

A família, contudo, foi fundamental na vida de Fernando Pessoa. Nela ele encontrou amparo emocional e material. Não foi por acaso que viveu os últimos 15 anos na casa da irmã. Ali se sentia acolhido, não obstante as diferenças com o cunhado (de resto comuns entre pessoas do mesmo grupo familiar).

Arrisco a dizer que não haveria a obra genial sem o lastro afetivo e prático da família (açoriana pelo lado materno). Os familiares de Pessoa foram essenciais na sua vida e contribuíram para que ele tivesse condições de dedicar-se à escrita.

photo: j.finatto, 2007, Lisboa

                                                 *   *   *

Ontem, 8 de março, pessoanos do munto inteiro recordaram os cem anos do famoso Dia Triunfal (08 de março de 1914).

Conforme relatou Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, em carta de 13/1/1935, ao abordar a gênese dos heterônimos: "(...) acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim." ²

Vieram à luz, no êxtase do Dia Triunfal, o Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro, "O Mestre"; após a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa; seguindo-se a revelação dos heterônimos Ricardo Reis e Álvaro de Campos (este com a Ode Triunfal).

A carta foi escrita alguns meses antes da morte do poeta. Segundo estudiosos, o Dia Triunfal foi uma ficção de Pessoa para explicar a origem dos seus "outros".³

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¹O barbeiro de Fernando Pessoa:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/03/o-barbeiro-de-fernando-pessoa.html
²Arquivo Pessoa:
http://arquivopessoa.net/textos/3007
³O "dia triunfal" de Pessoa: uma ficção verdadeira
http://www.publico.pt/cultura/noticia/o-dia-triunfal-de-pessoa-uma-ficcao-verdadeira-1627473
Casa Fernando Pessoa:
http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=2233
 

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

O amor de Fernando por Ofélia

Jorge Adelar Finatto

 
O amor de Fernando Pessoa por Ofélia, o seu Bebé, é o único envolvimento conhecido do poeta com uma mulher. Não se tem notícia - eu pelo menos nunca ouvi falar - de que tenha havido outra em sua vida.
 
Suas cartas de amor, publicadas em livro, dão uma mostra de como todo ser humano - inclusive um gênio como Pessoa - necessita amar o amor.
 
Precisamos acreditar na idéia do amor romântico, esse que nos faz levitar entre nuvens de perfume (mesmo sabendo que, no fundo, mentimos para nós e para o outro). Os rubores da alma.
 
Queremos nos iludir achando que vai surgir esse outro que nos fará sair do calabouço, nos completará e fará felizes, nos consolará e não morrerá antes de nós.
 
Que sei eu. Talvez tudo isso tenha mesmo que ser assim. Amar o amor, e suspirar em bancos de praça, entre flores.
 
 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Ninguém é dono do poeta Fernando

Jorge Adelar Finatto

Fernando Pessoa ( à direita) com amigo no Café Martinho da Arcada, Lisboa
 

 Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho
como sempre tenho sido,
sozinho como sempre serei.¹
                                                    Fernando Pessoa
 
Nos últimos tempos tenho notado um aumento de animosidade entre alguns estudiosos da obra  e da biografia de Fernando Pessoa (1888-1935). Há como uma disputa que vem crescendo com o passar dos anos. Uma busca de afirmação pessoal a partir da maior visibilidade da obra do autor.

Existe uma briga de foice no escuro entre os que querem ser os únicos donos do Fernando e não admitem novos sócios na firma. Li textos que beiram a agressão em páginas de livros e revistas. Apontam coisas como, por exemplo, falhas na interpretação da letra do escritor que geraram escolhas supostamente equivocadas a comprometer seus textos.
 
Há evidente excesso no tom dessas manifestações, que prejudica não apenas a cordialidade do debate como a qualidade da discussão.

Precisa ficar claro que ninguém é nem será dono de Fernando Pessoa. Todo mundo sabe ou devia saber que a pátria dele é a língua portuguesa.

Minha pátria é a língua portuguesa,  escreveu no Livro do Desassossego, trecho 259.

Ele vive no idioma uma existência espiritual, a única em que encontrou um pouco de felicidade em sua vida cheia de limitações materiais, solitária e sacrificada.
 
Qualquer tentativa de apropriação de sua verdade mostra o lado pequeno de quem toma esse caminho. Lá na sua residência atual, no Mosteiro dos Jerônimos, no bairro de Belém aqui em Lisboa, o poeta deve rir-se quando toma conhecimento dessas besteiras em torno de si.

Para quem morreu sem reconhecimento, que não foi nada na vida (mesmo tendo escrito uma obra universal, sentido tudo e sido muitos em um só), há uma grande ironia nisso tudo. Disse ele:

Um dia talvez compreendam que cumpri, como
nenhum outro, o meu dever nato de intérprete
de uma parte do nosso século; e quando o
compreendam, hão-de escrever que na minha época
fui incompreendido, que infelizmente vivi entre
desafeições e friezas,
e que é pena
que tal me acontecesse.²
                                       Fernando Pessoa

Fernando Pessoa merece que o amemos pelo que é, independente de faniquitos e interesses pessoais de seus intérpretes. Dispensa proprietários.
_______________

Casa Fernando Pessoa, Lisboa, Portugal
http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/index.php?id=4287

¹-² Textos de Fernando Pessoa. Ponto M - 2013. 

domingo, 19 de janeiro de 2014

Lisbon Revisited

Jorge Adelar Finatto

Amanhece sobre o Atlântico. 19/1/2014. photo: j.finatto
 

O avião pousou às 10h40min deste domingo em Lisboa. Tão delicado foi seu pouso, tão correto o vôo de mais de dez horas desde Porto Alegre, que os passageiros aplaudiram vivamente o comandante da TAP, com grande justiça.
 
O que posso dizer? Cheguei moído e insone como sempre acontece. Vi o noticiário, algum outro programa no sistema de bordo, mas sobretudo vim escutando o fado. Sim, o fado, essa maneira tão portuguesa quanto universal de estar no mundo.
 
Lisboa revisitada, como no título do belíssimo poema de Fernando Pessoa de 1923. O frio é intenso, a umidade está no ar. Dormi à tarde no quarto de hotel. Antes fui até a banca de revistas e comprei o Público. Depois, no fim do dia, um prato de bacalhau com o vinho Mina Velha, que não sou de ferro.

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!

                                     (trecho de Lisbon Revisited, Fernando Pessoa)
 
 Volto a Lisboa como quem volta a si mesmo.
 
Após umas quatro horas de sono, assisto na RTP a um programa musical com o grande nome do fado Carlos do Carmo. Ele canta canções de diversos autores, entre os quais Ary dos Santos, José Afonso, Alexandre O'Neill, Manuel de Freitas. É uma reprise de algo que aconteceu há 15, 20 anos atrás. Só papa-fina.

Alguém poderá pensar que ando em Lisboa atrás do passado, porque gosto do fado e de caminhar na beira do Tejo (tão calmo como o vejo na ampla janela do quarto neste momento). Sim, Portugal tem um passado. Mas o fado? O fado é futuro.

O compromisso dessa viagem é um evento sobre o poeta Rilke do qual vou participar na Suíça. Mas não poderia deixar de vir a Lisboa de Fernando, esse poeta absoluto e genial. E, na Espanha, tenho encontros com Ortega y Gasset e Miguel de Unamuno. São visitas que compensam muito sofrimento dessa vida.

Um encontro com a maravilha.

Anotei o nome de escritores que vou buscar nas livrarias: José Cardoso Pires, Manuel António Pina, Alexandre O'Neill, Daniel Jonas, Herberto Helder, Jorge de Sena e mais o que esqueci e vou lembrando. E tenho amigos para rever, como o António Sousa no Martinho da Arcada, lugar marcante na vida de Fernando.

O pássaro pousou. Começa o vôo.

 Mar Português

                           Fernando Pessoa

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!


Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.


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O barbeiro de Fernando Pessoa:
http://ofazedordeauroras.blogspot.pt/2010/04/o-barbeiro-de-fernando-pessoa.html