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domingo, 19 de fevereiro de 2017

O escritório no rodamoinho

Jorge Finatto
 
Campos de Cima do Esquecimento. photo: jfinatto


O ESCRITÓRIO é nave. Navega em mar revolto entre os dias e as estrelas. Presente, passado, futuro. Tempo, perpétuo pêndulo. Perdido, vivido, esquecido. Tempo de passagem, tempo de viagem, tempo de espera, tempo de fugazes eternidades. Lugar de achados incríveis. Semeadura, rota escura, colheita. Os bons momentos, esses que se vivem fora dos calendários, quando o tempo para e nos libertamos do açoite da ampulheta. A vida é tudo misturado. Rodamoinho.

Escritório onde habita o eremita e o doido aventureiro. O texto não é a vida em si, mas uma bela imitação. O mundo possível no interior do caos. Enquanto a nave navega, atravessa distâncias impossíveis, reconcilia ausências, a palavra se tece como um fio azul, se desprende do novelo e vai pelo espaço entre as estrelas até mergulhar na escuridão do cosmos, no sem fim do pensamento-coração. O escritório é álbum de recordações de um tempo que já não volta. Caderno onde se anunciam dias de explorar caminhos e contar histórias. Urgente amanhecer.
 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

No amanhecer

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
O som das folhas dos plátanos, em volta da casa, no vento dessa manhã de primavera. A dispersão das horas na espiral infinita do tempo.

É um novo dia e devemos partilhar o pão, o abraço e a alegria de viver na mesa larga da existência.

Olhemos juntos a viagem do pássaro em seu voo inaugural. Olhemos o voo solitário acreditando que é possível. Olhemos o voo do bando.

Há muito de ternura nessa hora. Há tanta coisa vivida que se perdeu no moinho dos dias.

A velha mala de mágico de circo de cidadezinha do interior com seus textos esperando ser aberta e revelada ao alheio olhar. Um olhar.

Há tanta coisa querendo ser dita, um dicionário inteiro.

Há o movimento forte do coração batendo no peito na manhã de viver.

O fruto bom da expressão colhido no pomar do pensamento e da emoção.
 
As urgentes florações do jardim espiritual. No amanhecer do voo.
 

domingo, 14 de setembro de 2014

Aos que dizem que tudo é possível

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto

 
Aos que dizem que tudo é possível, eu digo sim, tudo pode via a ser. Mas que venha logo, sem demora, sem mentiras, que desperte, enfim, a luminosa manhã.

A treva tomou conta do Brasil, da cidade, da minha rua, entrou na minha casa.

Fugir pra onde? Se tudo em volta suspira e dói.

Se tudo é possível, que venham as pequenas alegrias, as inesperadas ternuras, os abraços escondidos, as urgentes mudanças, as mãos dadas.

Se tudo é possível, um casal dançará um fado rasgado em plena calle deserta.
 
Se tudo é possível, abrirei o guarda-chuva e sairei pela noite em busca de açucenas em setembro pra deixar na tua porta.

E se tudo for mesmo possível, vamos enfrentar o problema do medo de viver e de abraçar o nosso irmão

(a morte, essa coisa numerosa e fria, está em toda parte e não faz mais espanto).

Dizem eles que tudo é possível.

Que venha então depressa essa ventura.

Que não nos falte mais o amanhecer dos corações.

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Texto revisto, publicado antes em 28 de abril, 2011.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Somos os que estão por aí

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 
O mundo é um hospício sem muro. Estão todos soltos. A loucura é herança bem dividida entre os humanos. As partilhas registradas nos cartórios do desassossego.

A pessoa precisa ter reservas de luz pra suportar tanta escuridão.

Somos os que estão por aí. Os por enquanto. A gente mói e é moído. O que acha? O moinho triste da vida. Tem vivente que passa a existência sem receber um afago, um ora-veja. Os que. Pra eles não existe vem-aqui-meu-bem-me-dá-cá-um-beijinho. Só pedras, perdas.

Os esquecidos jazem no fundão do abismo. O mundo não presta atenção nos sem-afeto. Os outros, a turma dos contentes, dos bem amados, quando muito vivem pra si. Os que se acham. As almas leves. Corações secos.

O moinho pesado gira no esconso. Caminho de sombras.

Às vezes um resolve resilir o contrato com o eterno. Quase ninguém nota o último ato do infeliz. Nenhuma flor se colhe em sua difícil memória. Nenhum pensamento, nenhuma ternura. As indiferenças. Os giros insensíveis da roda de fazer pó e esquecimento.

Assim se afunda o coração dos bonecos de ventríloco.

Viver são uns suspiros, uns carinhos desaparecidos.

Alguns poucos levam a lanterna na mão. Esses, ao menos, ainda choram, se comovem, não se conformam, lutam, amam. Fazem os caminhos.
 
Por eles a aurora tece os fios rosados da manhã.

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Texto revisto, publicado antes em 13 de abril, 2010.

domingo, 6 de abril de 2014

Um galo na aurora

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto, 5.4.2014

 
                          Um galo sozinho não tece uma manhã:
                          ele precisará sempre de outros galos.
                                                            João Cabral de Melo Neto¹

O silêncio é tão profundo que dá para ouvir a névoa se espalhando no jardim, entre as rosas.

Quatro e meia da madrugada de domingo. Ele adormeceu no sofá do escritório.

Não quis atravessar a casa e ir pro quarto. Madrugada fria nos Campos de Cima do Esquecimento.

As pinturas e os retratos na parede, a luz branca e opaca na escada.

O sobrevivente escreve para habitar o território do amanhecer.

Ler já era estar banhado em luz. Escrever é um clarão.

(A treva não dá trégua.)

O vento lambe a face das montanhas cobertas de verdes pinheiros e basalto.

O som imemorial do vento cortando os contrafortes.

Abril costuma ser um tempo de desolação.² Seria preciso acender fogueiras em todas as esquinas da cidade, convocar os amigos

fazer vigília e beber até que a manhã se erguesse no horizonte e se derramasse nos telhados.

Um galo canta na aurora.

O sobrevivente dorme no sofá enrolado na manta xadrez.

A única coisa que se ouve agora, no silêncio, é o canto do galo.

Um canto anunciador e translúcido, na antessala do dia.

Por um momento ele ouve o canto. Mas não abre os olhos. Se enrola mais ainda na manta, afunda no sofá. O livro caído no tapete.

O canto do galo vai sumindo, distante, sumindo.

Ele caminha por uma estrada de chão batido, silenciosa, vai andando, sumindo, andando, sumindo até desaparecer na aquarela ao lado da estante.

No jardim, lá fora, só se escuta a névoa.

photo: j.finatto
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¹Do poema Tecendo a manhã. Poesias Completas, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1979.
²Um suspiro, um silêncio
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2014/03/um-suspiro-um-silencio.html