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domingo, 5 de agosto de 2018

Histórias de vidas passadas

Jorge Finatto

photo: jfinatto

 
UMA NOITE DE INVERNO, em Veneza, abri o guia telefônico. Estava entocado no quarto de hotel, a acqua alta inundava a Piazza San Marco. Encontrei pessoas com o sobrenome da minha família na lista. Lembrei que um tio me disse certa vez que o pai dele,  meu avô, e seus três irmãos tinham vindo de Veneza, ainda meninos, para o Brasil.
 
Passei dias e dias andando nas fondamenta (caminhos para pedestres na beira dos canais), tirei muitas fotos, atravessei pontes, entrei em igrejas, gôndolas, museus. No fim das tardes, cansado, acabava ancorando no cais da minha solidão com um copo de vinho fresco no Café Florian..
 
Não fui atrás de remotas origens familiares. Queria conhecer os recantos pouco explorados pelos turistas, e senti que aquele lugar tinha muito a ver comigo, bicho das águas. Sempre gostei de cidades de rio ou mar. Não por outro motivo escolhi a cidade de Rio Grande como minha primeira comarca, no século passado, após tomar posse como juiz. Rio Grande, o único porto marítimo do Rio Grande do Sul por onde entravam os imigrantes. 
 
A vida me ensinou que buscas no passado nem sempre são uma boa ideia. De resto, a esta altura todos estão mortos. Não sobrou ninguém para partilhar vetustas memórias de fins do século XIX.
 
Sei que atrás de mim existem seres que atravessaram famintos o Atlântico numa viagem dolorosa à beira do abismo. Vieram da Europa e da África. Por isso às vezes sonho com gôndolas iridescentes navegando com seus fantasmas entre as estrelas.
 
Pensando nessas coisas tomei, hoje, um café, in memoriam, no Florian, enquanto a  bruma se espalhava na piazza.

photo jfinatto

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Texto inédito, escrito em dezembro, 2017.
 

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Ilha de San Michele, ilha dos mortos

Jorge Finatto
 
photo: Isola di San Michele ao fundo. Venezia. j.finatto


A ILHA DE SAN MICHELE repousa serena diante de Veneza. Não devemos perturbar o sossego de seus habitantes. Na gôndola em que navegamos em torno do território calado, nada deve ser ouvido além do remo na água verde-safira. Entre os altos muros de ocres tijolos, à sombra de ciprestes, os mortos descansam na antiquíssima isola.

San Michele é um pequeno pedaço de terra na Laguna de Veneza, mas é, acima de tudo, uma metáfora. A ilha dos mortos tem o olhar voltado desde o exílio para a República Sereníssima. A ilha-cemitério é um testemunho da brevidade humana e um alerta contra as vaidades do mundo.

photo: canal veneziano. j.finatto
 
Façamos silêncio, portanto, nessa viagem pelas cercanias de lugar tão despojado. A ísola observa, ao largo, o frêmito dos vivos. Silenciosa mirada. O espelho das águas recolhe o espírito e as cores da cidade que se assenta sobre as 121 ilhas que formam Veneza. A história veneziana remonta ao princípio da era cristã.

Os habitantes de San Michele conhecem a vocação da Sereníssima para o abismo da beleza e das paixões. Ninguém consegue ficar indiferente ao seu brilho e mistério. Veneza é cruel com os deserdados da sensibilidade e com a bondade desprovida de malícia.

Não é um lugar para onde devam ir os desiludidos. Acolherá bem os amantes, sobretudo os que souberem amar seus labirintos ao longo dos canais tortuosos que se perdem na neblina dos séculos.

photo: gôndolas. j.finatto


Os mortos habitam a ilha já sem pecado, distantes do ruído e do encanto da cidade amada. Veneza chegou àquele ponto turvo da civilização em que os falecidos não têm mais para onde ir. A cidade não pode crescer. Espaço para mais um morador é coisa rara em San Michele. Os defuntos que conseguem um lugar vão para lá de barco. O cortejo e a pompa (para alguns existe pompa até na morte) dependem das posses do viajante.

Um dos últimos estrangeiros ilustres a conseguir sepultamento na ilha foi o poeta russo, depois cidadão americano, Joseph Brodsky (Nobel de Literatura em 1987), que por mais de vinte anos se hospedou em pequenos hotéis, quase sempre em janeiro, e que, como poucos, amou Veneza e escreveu sobre ela.

Entre sombra e luminosidade, Veneza recebe o coração ávido de amor, memória e arte. A silhueta negra e esguia das gôndolas desliza lentamente. As máscaras do carnaval observam de noturnas vitrines.

La Serenissima pertence às águas, ao ruído do vento nos telhados e pontes, aos cavalos de névoa que invadem a Praça São Marcos. Os vetustos casarões, as galerias de arte, os vaporettos e palácios mergulham no fundo espectral dos canais. 
 
photo: esquina veneziana. j.finatto
 
As cores são fortes e belas como a música das igrejas ao entardecer. Alimentam a alma os concertos, as exposições, o traço febril de Tintoretto no Palácio Ducal.

Estamos de passagem no mundo. Devastados pelo desejo e pela busca de beleza. A metáfora de San Michele. Se temos de ser ilhas, que pelo menos formemos arquipélagos com pontes e canais a nos unir, como em Veneza.

O resto são ostras e segredos na bruma dos corações.

photo: Grande Canal. Ponte de Rialto. j.finatto

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Texto publicado  em 27 de janeiro, 2010.
 

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Aveiro, poema visual

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto
 
 
JÁ OUVI DIZER aqui em PORTUGAL que Aveiro é a Veneza portuguesa. Engano.
 
Veneza é que é a Aveiro italiana. Com todo respeito, claro. De um descendente de venezianos.
 
photo: jfinatto
 
photo: jfinatto

photo: jfinatto

photo: jfinatto

photo: jfinatto

photo: jfinatto

Pensando melhor, cada uma é bela de um jeito todo seu e sempre nos surpreendem. O planeta envaidecido agradece.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Veneza, la bella signora

Jorge Finatto

photo: jfinatto. Veneza
 
Exposição fotográfica sobre Veneza, no Café Josephina, em Gramado, a partir de 19 de outubro
 
VENEZA é uma mulher madura e encantadora. Não esconde a idade, pelo contrário. O tempo é seu amigo e com ele troca confidências à beira dos canais e do casario antiquíssimo.

 Os anos não lhe roubaram a beleza nem o poder de sedução. Os seus traços inesquecíveis, a sua luz de brilhantes multicoloridos que caem do céu e cobrem as águas. É impossível imaginar o mundo sem ela.

Olhando a vetusta cidade com olhos do coração, o visitante conhecerá um pouco de sua alma luminosa. 
 
Veneza é um das cidades mais visitadas e fotografadas do planeta. Uma cidade de espelhos, segredos e mistérios. Perambular sem pressa e sem itinerário certo por seus tortuosos caminhos (as fondamenta),  à margem dos canais, é essencial para descobrir seu corpo cheio de cálidas surpresas.
 
A pé, numa gôndola ou num vaporetto¹, o passeio é sempre revelador. Não nos cansamos de admirar a arquitetura, as pontes, as paredes de tijolos à vista, as janelas com flores, os telhados, as roupas a secar ao vento, as praças com pessoas de todos os lugares (talvez você dê sorte e encontre um veneziano em meio à multidão...), os longos e estreitos corredores que se perdem nos séculos.

Veneza, Ponte de Rialto (1591). photo: jfinatto
 
Veneza se deixa visitar, olhar, fotografar. Mas não se iluda o viajante: poucos terão acesso a seus aposentos interiores, à sua alma. Estes lugares não são para olhos estrangeiros.
 
Recatada, a bela senhora nunca se deixa desvelar por completo. É preciso saber tocá-la com o olhar, delicadamente. Com a ponta dos dedos da sensibilidade. Como quem toca uma estrela muito frágil fadada a desaparecer (o aumento do nível das águas, embora lento, estaria levando ao afundamento da cidade).

Reuni fotos que fiz em Veneza e organizei uma exposição com o objetivo de compartilhar minhas impressões sobre a querida República Sereníssima. São 17 painéis que estarão à mostra no aconchegante Josephina Café², no coração da cidade de Gramado, a partir do dia 19 de outubro (quarta-feira). Estão todos convidados.


Josephina Café, Gramado

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¹Embarcação típica de Veneza, usada como meio de transporte pelos canais, com motor a diesel, e não mais a vapor como antigamente.
²Josephina Café:
http://www.josephinacafe.com.br/
 

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

O calepino de Dante

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto. Venezia


O mundo é muito pequeno, o mundo é um suspiro.
 
O VENTO geme como um bicho malferido nas esquinas, sacode as placas na rua, portas, janelas, enlouquece os ponteiros do relógio da estação de trem abandonada de Passo dos Ausentes.

Um lamento emana do interior do sino da igreja da praça.

Um cenário de filme de assombração. Aqui acontecem coisas do outro mundo.
 
Os fantasmas somos nós, habitantes dessas terras frias e invisíveis situadas nos Campos de Cima do Esquecimento.

Lá fora, a chuva molha a solidão da rua. Somos peixes no aquário, nadando de um lado para outro dentro de casa, tentando enxergar, sentir alguma coisa nesse enorme vazio. Peixes à procura de qualquer coisa mais que silêncio e oblívio. Agora que o inverno chegou.
 
Vivemos nessas remotas e íngremes alturas, no sul do continente, entre inóspitas nuvens.

Este lugar é a última estação antes do fim do mundo.

photo: jfinatto. Venezia

Os poetas sabem do que eu falo, não digo coisas inaugurais (quem me dera). Digo o trivial da humana condição e não mais do que isso: quireras.

Neste território pequenino existem coisas de espantar.

Um dia, não me lembro quando, andava eu numa fondamenta (caminho que vai à beira de um canal) distante e perdida de Veneza. Caminhava do meu jeito naquela cidade, isto é, olhando as coisas de perto por causa da difícil visão (óculos fundo de garrafa).

Naquela cidade tudo é insondável, úmido labirinto, e eu, quase cego, gosto de me perder em labirintos.

As janelas das casas daquela fondamenta, onde cheguei não sei como, tinham flores e cordas com roupas estendidas secando, mas não havia ninguém morando nelas. Uma doideira. O vento percorria o canal assobiando uma canção terna e delicada, sem começo nem fim.

Descobri, então, o vetusto casarão de uma livraria abandonada. A livraria ficava mais ou menos perto da Ponte de Rialto, no Grande Canal. Entrei lá abrindo uma porta escura e muito pesada, difícil de empurrar.

Canal veneziano. photo: j.finatto

Sentei numa cadeira de couro marrom diante de uma mesa. Ao lado um pequeno vitral amarelo e azul deixava penetrar um sopro de luz solar. Estantes repletas de livros se projetavam para o interior.

Descobri sobre a mesa um calepino de capa lilás.

Abri o caderno, quase encostando os olhos nele. Na terceira página estava escrito: Dante Alighieri, 1319. Li sem fôlego as primeiras anotações do mestre florentino.

Só então percebi do que se tratava, o tesouro que tinha em mãos: eram esboços de poemas misturados a notas de diário, rascunhos de cartas e pequenos desenhos.

A música que o vento tocava lá fora, me dei conta quase sem poder acreditar, era a Valsa dos Ausentes, de Pixinguinha.

O mundo é muito pequeno, o mundo é um suspiro.

Antes de sair da estranha livraria, guardei o calepino de Dante no fundo do meu alforje. Desde aquele insólito evento nunca mais nos separamos. Nunca antes contei esta história.

(Às vezes me pergunto se isso de fato aconteceu ou terá sido um sonho, o espírito aturdido por esses ventos andarilhos de Passo dos Ausentes, nas longas e inóspitas madrugadas.)

O calepino de Dante é o consolo que trago na vida. Quando o leio, como nessa hora longínqua, sentado na cadeira de palha diante da mesa do escritório, tomando café preto com biscoitos de polvilho, esqueço tudo de ruim.

O medo de morrer não encontra asilo nessa hora quase solene.
 
Nem tudo é solitude nesses caminhos.

Passagens luminosas habitam o breu.

Tem orquídeas e magnólias povoando o jardim lá fora. Ramos novos brotam entre as folhas secas.

Um tempo de busca-vida, este.

Esta página, notícia do invisível.
 
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Texto revisto, publicado anteriormente em 10/12/12.
 

domingo, 4 de maio de 2014

Ilha de San Michele, ilha dos mortos

Jorge Adelar Finatto
 
photo: Isola de San Michele ao fundo. j.finatto

 
A Ilha de San Michele repousa serena diante de Veneza.

Não devemos perturbar o sossego de seus habitantes. Na gôndola em que navegamos em torno desse território calado, nada deve ser ouvido além do remo na água verde-safira. Entre os altos muros de ocres tijolos, à sombra de ciprestes, os mortos descansam na antiquíssima ínsula.

San Michele é um pequeno pedaço de terra no Mar Adriático, mas é, acima de tudo, uma metáfora.

A ilha dos mortos tem o olhar voltado desde o exílio para a República Sereníssima.

A ilha-cemitério é um testemunho da brevidade humana e um alerta contra as vaidades do mundo.

photo: canal. j.finatto
 
Façamos silêncio, portanto, nessa viagem pelas cercanias de lugar tão despojado.

A ísola oberva, ao largo, o frêmito dos vivos. Silenciosa mirada. O espelho das águas recolhe o espírito e as cores da cidade que se assenta sobre as cerca de 120 ilhas que formam Veneza. A história veneziana remonta aos primeiros anos da era cristã.

Os habitantes de San Michele conhecem a vocação da Sereníssima para o abismo da beleza e das paixões. Ninguém consegue ficar indiferente ao seu brilho e mistério. Veneza é cruel com os deserdados da sensibilidade, e com a bondade desprovida de malícia.

Não é um lugar para onde devam ir os desiludidos da vida. Acolherá bem os amantes, sobretudo os que souberem amar seus labirintos ao longo dos canais tortuosos que se perdem na neblina do tempo.

photo: gôndolas. j.finatto


Os mortos habitam a ilha já sem pecado, distantes do ruído e do encanto da cidade amada.

Veneza chegou àquele ponto turvo da civilização em que os falecidos não têm mais para onde ir. A cidade não pode crescer. Espaço para mais um morador é coisa rara em San Michele.

Os defuntos que conseguem um lugar vão para lá de barco. O cortejo e a pompa (para alguns existe pompa até na morte) dependem das posses do viajante.

Um dos últimos estrangeiros ilustres a conseguir sepultamento na ilha foi o poeta russo, depois cidadão americano, Joseph Brodsky (Nobel de Literatura em 1987), que por mais de vinte anos se hospedou em pequenos hotéis da cidade, quase sempre em janeiro, e que como poucos amou e soube falar de Veneza.

Entre a sombra e a luminosidade, Veneza recebe o coração ávido de memória e arte.

A silhueta negra e esguia das gôndolas desliza lentamente.

As máscaras do carnaval observam de noturnas vitrines.

La Serenissima pertence às águas, ao ruído do vento nos telhados e pontes, aos cavalos de névoa que invadem a Praça São Marcos. Os vetustos casarões, as galerias de arte, os vaporettos e palácios mergulham no fundo espectral dos canais. 
 
photo: esquina veneziana. j.finatto
 
As cores são fortes e belas como a música das igrejas ao entardecer, os concertos na via pública, o traço febril de Tintoretto no Palácio Ducal.

Estamos de passagem no mundo. Devastados pelo desejo e pela procura de beleza.

A metáfora de San Michele.

Se temos de ser ilhas, que pelo menos formemos arquipélagos com pontes e canais a nos unir, como em Veneza.

O resto são ostras e segredos na bruma dos corações.

photo: Grande Canal. Ponte de Rialto. j.finatto

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Texto publicado  em 27 de janeiro, 2010.