Mostrando postagens com marcador Claudionor. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Claudionor. Mostrar todas as postagens

domingo, 30 de novembro de 2014

O raio perfumado

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto
 
De como Claudionor, o Anacoreta, emigrou para o planeta FAJ 376, na constelação de Rio Erídano, a 35 milhões de anos-luz. O embarque na nave interestelar em plena Praça da Ausência, sob o olhar incrédulo dos 495 habitantes da cidade. Onde se conta como o fantasma do poeta Rainer Maria Rilke, em suas aparições noturnas na Biblioteca Pública Municipal de Passo dos Ausentes, foi o causador da grande viagem e se dão a conhecer outros eventos.
 
Faz 10 anos que Claudionor, o Anacoreta, afastou-se do mundo. Foi viver em solidão numa caverna do Contraforte dos Capuchinhos. Faz 10 anos que Mocita de La Vega ficou só e não teve mais ninguém depois que ele se foi.

Claudionor  tornou-se um místico conhecido e respeitado em toda a região. Vive em estado de contemplação desde a desilusão amorosa,  aos 20 anos.
 
Eles jamais revelaram o que motivou o rompimento. Foram inseparáveis desde a infância até o fatídico dia em que Claudionor surpreendeu Mocita nos braços do fantasma do poeta Rainer Maria Rilke, na Biblioteca Pública de Passo dos Ausentes, onde ela é bibliotecária.

A paixão literária transfigurou-se entre a jovem guardiã de livros e o bardo. Aparições freqüentes de Rilke na Biblioteca afetaram o coração de Mocita, apaixonada pela obra do poeta, em especial pelas Elegias de Duíno, as quais sabia de cor. O volátil não resistiu aos cabelos negros, à pele alva como o luar e à sensibilidade da bibliotecária que traz no corpo os contornos de um violão.

Claudionor sentiu-se desmoronar depois do que viu - segundo dizem as línguas ferinas. Despediu-se da mãe, a costureira Helena dos Santos Leaens e Bragança, numa cinzenta manhã de julho de 2004. Disse que ia procurar mudas de jasmim na mata, a principal paixão de sua vida depois de Mocita. Nunca mais voltou.

Um ano ficou sumido. Nada menos do que cinco expedições saíram à sua procura. Rastrearam-no pelas matas e até mesmo no fundo de abismos. Concluíram que ele tinha se atirado num dos muitos penhascos que cercam os Campos de Cima do Esquecimento. O corpo fora devorado por onça ou leão-baio, feras que ainda habitam a profundeza da Mata Atlântica.

Isto foi assim até o dia em que o pombo-correio dos Capuchos do Perpétuo Amanhecer trouxe à cidade um bilhete do superior da ordem informando que Claudionor estava vivo. Vivia em reclusão numa caverna não distante do mosteiro. No informe especificou as cooordenadas do lugar onde o místico se encontrava, "vivendo uma vida nova, voltada ao silêncio e ao encontro com Deus e os Anjos, nas altas esferas do reino espiritual".

A caverna de Claudionor situa-se no alto de uma chapada no Contraforte dos Capuchinhos, a 2 mil metros de altitude. De lá, olhando-se para leste, tem-se a visão azul e distante do Oceano Atlântico. Flores silvestres margeiam o caminho de pedras e grama que vai dar na porta da austera habitação.

A barba espessa e a cabeleira negra sobre a túnica branca escondem o homem ainda moço.
 
Em julho de 2014, outra mensagem de Dom Eleutério, o Benigno, foi entregue pelo pombo-correio na Sociedade Histórica, Geográfica, Literária, Artística, Astronômica, Antropológica, Esportiva, Recreativa, Geológica e Antropofágica de Passo dos Ausentes, aos cuidados de seu presidente, o filósofo Don Sigofredo de Alcantis.

Enquanto Don Sigofredo comentava o conteúdo da mensagem com Mocita, secretária da sociedade, um fato estranho se passou nos céus da cidade.

Um objeto em forma de bola, achatado nos polos, com cerca de 20 metros de diâmetro por 10 de altura, surgiu do nada e cruzou lentamente o espaço aéreo de Passo dos Ausentes. Movia-se sem qualquer ruído. Depois de sobrevoar o casario e a igreja, parou sobre a Praça da Ausência, a 30 metros do chão. Era uma tarde fria de céu claro, às 4h em ponto. Muitas pessoas foram até a praça ver o que se passava.
 
A nave tinha cor azul-clara. Uma luz branca e gelada pulsava no interior. Possuía seis escotilhas distribuídas circularmente na parte superior. Uma espécie de tubo de alumínio projetou-se até o centro da praça, ao lado do chafariz. Alguém começou a descer por ele num estreito elevador. Era um homem vestindo macacão preto com um distintivo cor de prata no lado esquerdo do peito. Havia no símbolo coisas escritas em caracteres indecifráveis.

Saiu do tubo e disse que queria falar com a autoridade local. Imediatamente buscaram Don Sigofredo. O filósofo aproximou-se levemente arqueado, com a bengala, o terno preto, cabelo e cavanhaque brancos e bigode torcido para cima nas extremidades.

- Boa-tarde, a que devemos a honra da visita - disse Don Sigofredo ao viajante do espaço, com ar de quem já vira coisas suficientes nos Campos de Cima do Esquecimento e não se deixava mais impressionar.

O alienígena retirou os óculos muito grandes. Só então se percebeu que seus olhos eram enormes, do tamanho de uma bola de tênis, e a testa muito maior que a humana.

- Desculpe-nos chegar dessa maneira, sem aviso. Recebemos a missão de vir a este lugar buscar um dos seus que pretende conhecer a nossa civilização. Somos do planeta FAJ 376, da constelação Rio Erídano, interior da galáxia espiral NGC 1637, a 35 milhões de anos-luz do seu planeta.

- Ora bem. Quem é a pessoa que quer nos deixar para ir tão longe, poderia nos dizer?

- Sou eu, Don Sigofredo - disse uma voz na entrada na praça. Era Claudionor, o Anacoreta, que trazia o alforje ao ombro, a longa túnica branca com botões brancos abotoados até o pescoço.

- Fiz contato com esta civilização após anos de meditação. Conversamos com o pensamento. Depois do primeiro contato, Palomar Boavista me ajudou com seu telescópio a localizar no céu a espiral NGC 1637. Eles me convidaram para uma viagem. Vou mas pretendo retornar um dia.

- Que maluquice é essa, menino, sair por aí assim?- interpelou aflito Don Sigofredo. E sua velha mãe, e nós? 

- Não vá, Claudionor - disse uma mulher que se aproximou ofegante entre as magnólias. Era Mocita.

- Claudionor, por favor, não - continuou ela. Temos muito que conversar. Não quero mais viver longe de ti. Queria ir dizer isso lá na tua caverna. Eu sei que faz muito tempo. Mas isso assim não é vida. Quanto tempo perdido, quanta vida morta por nada! - exclamou, enquanto lágrimas escorriam dos seus olhos.

- Peço perdão a todos, mas tenho de partir. Faz parte de um projeto espiritual. Quero conhecer esta civilização que é muito desenvolvida. Vou te levar no coração, Mocita. Nunca te esqueci.  Peço que olhem por minha mãe enquanto estiver fora.

- Senhores, temos que ir - disse o viajante do espaço. São 35 milhões de anos-luz!

- Não vá, Claudionor. Não desista de nós - insistiu Don Sigofredo.

O visitante olhou para Claudionor e ambos entraram no tudo, que se fechou e retornou com ambos à nave. De uma escotilha, Claudionor acenou lá de cima.

A nave distanciou-se um pouco e, em seguida, transformou-se numa grande centelha dourada que disparou pelo céu e desapareceu.

Alguns meses depois, o pombo-correio dos Capuchos do Perpétuo Amanhecer trouxe um recado de Dom Eleutério. Dizia que recebera uma mensagem de Claudionor informando que estava bem no novo lugar. Um mundo diferente. Mas nem tanto.

- Não era bem o que ele esperava, pois lá também há extratos sociais, inclusive com privilégios de classe.  Apesar de tudo está aprendendo e é bem tratado. Pretende, sim, voltar a Passo dos Ausentes, mais cedo do que se imagina. Anunciou, por fim, que no dia 6 de julho de 2014, às 21h, enviará um sinal até nós pelo cosmos.

No dia marcado, ou melhor, naquela noite, nos reunimos no jardim das camélias da Sociedade Histórica à espera do sinal. Na hora designada, um longo fio de luz amarela projetou-se desde o infinito em direção a Passo dos Ausentes.

O raio luminoso passou sobre a cidade clareando tudo e retornou ao desconhecido de onde viera, desfazendo-se em segundos.

Um suavíssimo aroma de jasmim ficou no ar por alguns minutos.

Então tivemos certeza de que Claudionor voltará um dia.  
 

ilustração: Maria Machiavelli

quinta-feira, 17 de julho de 2014

O postigo de Deus

Jorge Adelar Finatto

Contraforte dos Capuchinhos. photo: j.finatto


As manhãs amadurecem no coração da treva.
 
Como pode alguém tão pequeno querer voar tão longe, sonhar tão alto?

Em meio a portulanos e cartapácios, Claudionor, o Anacoreta, alimenta o sonho.

A quimera do grande encontro o habita.
 
Ah, as horas passadas entre os livros na caverna, no Contraforte dos Capuchinhos. A cela espiritual onde ele se retira em torno da vetusta mesa, viajando nas páginas, no telescópio, na bruma de estrelas.
 
Ah, as travessias desoladas através do invisível. Os altos vôos onde ele se queda a duvidar.
 
As místicas visões o perseguem desde menino nestes Campos de Cima do Esquecimento.

A mirada do infinito saber, a vertigem do pensar, a busca da unidade com o cosmos. Não ser apenas mais um estrangeiro no universo.

Os mistérios do vir-a-ser. O terrível peso do aqui e agora. As fomes do corpo.

Um dia - Claudionor bem sabe - a face de Deus iluminará o postigo e ele então irá embora da caverna para a casa dEle. Então tudo o mais será pó de luz iluminando a estrada.

Por enquanto, o trevamundo. Escuridão a galope pelo mundo. Coração pulsando no oblívio.

Urgentes prosopopéias o ajudam a povoar o silêncio, a construir o neblinoso itinerário.

Ah, as solitárias caminhadas pela Rua do Farelo, em Passo dos Ausentes.

Prisioneiro do efêmero, Claudionor se lança na antieternidade do instante fugaz.

____________
Claudionor, o Anacoreta, é místico e astrônomo amador. Vive numa caverna no Contraforte dos Capuchinhos, em Passo dos Ausentes.
Texto revisto, publicado antes em 09 de março, 2011.
 

terça-feira, 29 de abril de 2014

A invasão dos balões misteriosos

Jorge Adelar Finatto

photo de balão*


Um estranho balão singrou os ares e montanhas de Passo dos Ausentes em junho de 2010. O fato provocou um grande alvoroço na pequena cidade. Não estamos acostumados com coisas voando por cima das nossas cabeças.

Porém, o que no início foi motivo de admiração e espanto, depois tornou-se razão de preocupação.

Outros balões e dirigíveis, de cores e formas variadas, passaram a cruzar, nos últimos tempos, nosso espaço aéreo, vindos sabe Deus de onde. Demoram-se em voos lentos e circulares, a observar-nos sem a menor cerimônia, e depois desaparecem pelos lados do Contraforte dos Capuchinhos.
 
As aparições misteriosas dos aerostatos começam a causar apreensão, principalmente entre os fantasmas, que transitam livremente pelas nossas ruas, habitam os sótãos, telhados e as copas de árvores. Eles vivem por aqui desde tempos imemoriais sem ser incomodados. Sempre conviveram bem com os vivos. Se forem descobertos por olhos indiscretos, seus dias entre nós estarão contados.

Palomar Boavista, astrônomo-mor, e Claudionor, o Anacoreta, foram convocados para explicar as possíveis razões das incômodas e coloridas visitas, em reunião extraordinária da Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária, Geológica, Astronômica, Teatral e Antropofágica de Passo dos Ausentes, que tem na presidência Don Sigofredo de Alcantis, o velho filósofo guardião da nossa memória.

Somos uma cidade invisível a 1800 metros de altitude na região serrana a nordeste do Rio Grande do Sul. Condições atmosféricas intratáveis nos isolam do resto do mundo, desde que por aqui chegaram nossos antepassados, um grupo de índios guaranis e padres jesuítas que conseguiram fugir e sobreviver à destruição dos Sete Povos das Missões, levada a cabo por exércitos espanhóis e portugueses no século XVIII. Os sobreviventes fundaram Passo dos Ausentes em 1759.

Lugar íngreme, difícil de sair e mais ainda de chegar, está situado no topo de antiquíssimo maciço de montanhas de rude basalto na Serra da Ausência.

O açoite implacável dos ventos nos fustiga o ano inteiro.

Vivemos na região conhecida pelo nome de Campos de Cima do Esquecimento. Não estamos no mapa do Rio Grande do Sul (nem ao menos um pontinho).

Não existimos oficialmente. Tramita um processo junto aos órgãos da administração do Estado, desde o ano de 1805, no qual pedimos o reconhecimento da nossa comunidade, com sua história e cultura, e a inclusão nos mapas.

As respostas sempre foram negativas. Dizem que não há provas concretas da existência desse lugar e menos ainda de que aqui vivem pessoas. Não fosse patético, seria cômico. 

photo de balões e dirigíveis. autor: Jean-Pierre Clatot (AFP)

Nos tomam por seres imaginários, de tinta e papel. O governo mandou, no passado, duas expedições para nos localizar, uma em 1936 e outra em1989, isso depois de muita insistência de nossa parte.

Ao comando de geógrafos e historiadores de gabinete e muy pouco engenho, as tais expedições perderam-se no caminho, desistiram e foram embora.

O lugar é quase inacessível devido à acidentada topografia que envolve os imensos paredões de basalto, cobertos de verde mata, córregos e pinheirais. Além das névoas eternas, as chuvas recorrentes e o frio intenso nos separam do mundo dos vivos lá embaixo.

Claudionor e Palomar, após alguns dias de estudos e observações, expuseram à ansiosa assistência as duas prováveis explicações para os balões e dirigíveis.

Com voz grave e pausada, Palomar disse que a primeira hipótese é a de que estamos sendo visitados por seres de outro planeta, que consideram Passo dos Ausentes a melhor porta de entrada na Terra, um lugar invisível que não chama de ninguém a atenção.

- A segunda, menos plausível - acrescentou Palomar, figura magra, alta e de farta barba branca -, é que se trata de observadores aéreos do governo para nos localizar. Diante do fracasso das expedições terrestres do século passado, estariam enviando novas equipes para investigar. Essa hipótese beira a quimera, diante da incompetência e desinteresse dos homens que dirigem o Estado, ontem como hoje.
Don Sigofredo de Alcantis após tomou a palavra. Para ele, a primeira explicação seria a menos perigosa.

- Se forem seres de outra esfera cósmica, não haverá qualquer problema ou dificuldade, porque alguns esquisitos a mais por aqui não vão fazer a menor diferença. Estamos habituados a toda sorte de estranhamento. Mas se for gente do governo querendo nos espionar, aí tudo de ruim pode acontecer. No dia em que o asfalto e a política chegarem a Passo dos Ausentes, será o nosso fim. A invisibilidade ainda é a nossa melhor arma contra o desaparecimento.

O silêncio que se seguiu fez com que se ouvisse o espesso rumor do vento nas folhas das altas palmeiras da Praça da Ausência.

Para espantar o frio e os arrepios interiores, Mocita de La Vega, secretária-geral e musa amantíssima dos bardos presentes, serviu-nos seu licor de leite com noz-moscada.

Somos poucos. Somos invisíveis. Não nos vêem e não nos sentem. Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento.

Juan Niebla, o músico cego que toca bandoneón na estação de trem abandonada da cidade, executou Adios Nonino, de Astor Piazzolla, ao final da sessão. Com tanto sentimento que até mesmo Claudionor, o Anacoreta, não pôde evitar o brilho de uma lágrima.

photo: j.finatto
 
______

Outras referências de Passo dos Ausentes:
Alberta de Montecalvino:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/07/alberta-de-montecalvino.html
A cidade perdida: as origens
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/09/cidade-perdida-as-origens.html
A misteriosa expedição da Nasa a Passo dos Ausentes:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/08/misteriosa-expedicao-da-nasa-passo-dos.html
A viagem do balão vermelho:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/06/viagem-do-balao-vermelho.html
*O crédito da photo do balão será dado quando conhecida a autoria
Texto revisto, publicado originalmente em 9 de julho, 2010.
 

domingo, 9 de junho de 2013

O postigo de Deus

Jorge Adelar Finatto 

photo: j.finatto

 
As manhãs amadurecem no coração da treva.
 
Como pode alguém tão pequeno querer voar tão longe, sonhar tão alto?

Em meio a portulanos e cartapácios, Claudionor, o Anacoreta, alimenta o sonho.

A quimera do grande encontro o habita.
 
Ah, as horas passadas entre os livros na caverna, no Contraforte dos Capuchinhos. A cela espiritual onde ele se retira em torno da vetusta mesa, viajando nas páginas, no telescópio, na bruma de estrelas.
 
Ah, as travessias desoladas pelo invisível. Os altos vôos onde ele se queda a duvidar.
 
As místicas visões o perseguem desde menino nestes Campos de Cima do Esquecimento.

A mirada do infinito saber, a vertigem do pensar, a busca da unidade com o cosmos. Não ser apenas mais um estrangeiro no universo.

Os mistérios do vir-a-ser. O terrível peso do aqui e agora. As fomes do corpo.

Um dia - Claudionor bem sabe - a face de Deus iluminará o postigo e ele então  irá embora da caverna para a casa dEle. Então tudo o mais será pó de luz iluminando a estrada.

Por enquanto, o trevamundo. Escuridão a galope pelo mundo. Coração pulsando no oblívio.

Urgentes prosopopéias o ajudam a povoar o silêncio, a construir o neblinoso itinerário.

Ah, as solitárias caminhadas pela Rua do Farelo, em Passo dos Ausentes.

Prisioneiro do efêmero, Claudionor se lança na antieternidade do instante fugaz.

____________
  
Claudionor, o Anacoreta, é místico e astrônomo amador. Vive numa caverna no Contraforte dos Capuchinhos, em Passo dos Ausentes
Texto revisto, publicado antes em 09 de março, 2011.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

A invasão dos balões misteriosos

Jorge Adelar Finatto

photo de balão*
 

Um estranho balão singrou os ares e montanhas de Passo dos Ausentes em junho de 2010. O fato provocou um grande alvoroço na pequena cidade. Não estamos acostumados com coisas voando por cima das nossas cabeças.

Porém, o que no início foi motivo de admiração e espanto, depois tornou-se razão de preocupação.

Outros balões e dirigíveis, de cores e formas variadas, passaram a cruzar, nos últimos tempos, nosso espaço aéreo, vindos sabe Deus de onde. Demoram-se em voos lentos e circulares, a observar-nos sem a menor cerimônia, e depois desaparecem pelos lados do Contraforte dos Capuchinhos.

As aparições misteriosas dos aerostatos começam a causar apreensão, principalmente entre os fantasmas, que transitam livremente pelas nossas ruas, habitam os sótãos, telhados e as copas de árvores. Eles vivem por aqui desde tempos imemoriais sem ser incomodados. Sempre conviveram bem com os vivos. Se forem descobertos por olhos indiscretos, seus dias entre nós estarão contados.

Palomar Boavista, astrônomo-mor, e Claudionor, o Anacoreta, foram convocados para explicar as possíveis razões das incômodas e coloridas visitas, em reunião extraordinária da Sociedade Histórica, Geográfica, Filosófica, Literária, Geológica, Astronômica, Teatral e Antropofágica de Passo dos Ausentes, que tem na presidência Don Sigofredo de Alcantis, o velho filósofo guardião da nossa memória.

Somos uma cidade invisível a 1800 metros de altitude na região serrana a nordeste do Rio Grande do Sul. Condições atmosféricas intratáveis nos isolam do resto do mundo, desde que por aqui chegaram nossos antepassados, um grupo de índios guaranis e padres jesuítas que conseguiram fugir e sobreviver à destruição dos Sete Povos das Missões, levada a cabo por exércitos espanhóis e portugueses no século XVIII. Os sobreviventes fundaram Passo dos Ausentes em 1759.

Lugar íngreme, difícil de sair e mais ainda de chegar, está situado no topo de antiquíssimo maciço de montanhas de rude basalto na Serra da Ausência.

O açoite implacável dos ventos nos fustiga o ano inteiro.

Vivemos na região conhecida pelo nome de Campos de Cima do Esquecimento. Não estamos no mapa do Rio Grande do Sul (nem ao menos um pontinho). Não existimos oficialmente. Tramita um processo junto aos órgãos da administração do Estado, desde o ano de 1805, no qual pedimos o reconhecimento da nossa comunidade, com sua história e cultura, e a inclusão nos mapas.

As respostas sempre foram negativas. Dizem que não há provas concretas da existência desse lugar e menos ainda de que aqui vivem pessoas. Não fosse patético, seria cômico.
 
photo de balões e dirigíveis. autor: Jean-Pierre Clatot (AFP)

Nos tomam por seres imaginários. O governo mandou no passado duas expedições para nos procurar, uma em 1936 e outra em1989, isso depois de muita insistência de nossa parte.

Ao comando de geógrafos e historiadores de gabinete e muy pouco saber, as tais expedições perderam-se no caminho, desistiram e foram embora. O lugar é quase inacessível devido à acidentada topografia que envolve os imensos paredões de basalto, cobertos de verde mata, córregos e pinheirais. Além das névoas eternas, as chuvas recorrentes e o frio intenso nos separam do mundo.

Claudionor e Palomar, após alguns dias de estudos, expuseram à ansiosa assistência as duas prováveis explicações para os balões e dirigíveis.

Com voz grave e pausada, Palomar disse que a primeira hipótese é a de que estamos sendo visitados por seres de outro planeta, que consideram Passo dos Ausentes a melhor porta de entrada na Terra, um lugar invisível que não chama de ninguém a atenção.

- A segunda, menos plausível - acrescentou Palomar, figura magra, alta e de farta barba branca -, é que se trata de observadores aéreos do governo para nos localizar. Diante do fracasso das expedições terrestres do século passado, estariam enviando novas equipes para investigar. Essa hipótese beira a quimera, diante da incompetência e desinteresse dos homens que dirigem o Estado, ontem como hoje.
 
Don Sigofredo de Alcantis após tomou a palavra. Para ele, a primeira explicação seria a menos perigosa.

- Se forem seres de outra esfera cósmica, não haverá qualquer problema ou dificuldade, porque alguns esquisitos a mais por aqui não vão fazer a menor diferença. Estamos habituados a toda sorte de estranhamento. Mas se for gente do governo querendo nos espionar, aí tudo de ruim pode acontecer. No dia em que o asfalto e a política chegarem a Passo dos Ausentes, será o nosso fim. A invisibilidade ainda é a nossa melhor arma contra o desaparecimento.

O silêncio que se seguiu fez com que se ouvisse o espesso rumor do vento nas folhas das altas palmeiras da Praça da Ausência.

Para espantar o frio e os arrepios interiores, Mocita de La Vega, secretária-geral e musa amantíssima dos vetustos bardos presentes, serviu-nos seu licor de leite com noz-moscada.

Somos invisíveis. Não nos vêem e não nos sentem. Habitamos os Campos de Cima do Esquecimento.

Juan Niebla, o músico cego que toca bandoneón na estação de trem abandonada da cidade, executou Adios Nonino, de Astor Piazzolla, ao final da sessão. Com tanto sentimento que até mesmo Claudionor, o Anacoreta, não pôde evitar o brilho de uma lágrima.


photo: j.finatto

______

Texto revisto, publicado originalmente em 9 de julho, 2010.
Outras referências de Passo dos Ausentes:
Alberta de Montecalvino:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/07/alberta-de-montecalvino.html
A cidade perdida: as origens
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/09/cidade-perdida-as-origens.html
A misteriosa expedição da Nasa a Passo dos Ausentes:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2011/08/misteriosa-expedicao-da-nasa-passo-dos.html
A viagem do balão vermelho:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2010/06/viagem-do-balao-vermelho.html
*O crédito da photo do balão será dado quando conhecida a autoria