domingo, 5 de janeiro de 2014

A palavra e o moinho

Jorge Adelar Finatto 
 
Livraria Miragem, setor do sebo. photo: j.finatto, 02/01/2014


Aproveitei o dia nublado de 2 de janeiro e desci da neblina de Passo dos Ausentes para visitar mais uma vez a Livraria Miragem, em São Francisco de Paula. Nessa pequena cidade os Campos de Cima da Serra se estendem até chegar aos Campos de Cima do Esquecimento (que iniciam 100 quilômetros depois, a nordeste, no lugar mais alto e frio do Rio Grande do Sul).
 
Na livraria, antes dos livros, dei uma passada no café e bebi um copo de hidromel acompanhado de uma fatia do delicioso bolo caseiro. A pausa serviu também para tirar os solavancos do corpo e a poeira da roupa, fruto da descida vertiginosa pelo Contraforte dos Capuchinhos por estrada de chão batido.
 
photo: j.finatto
 
Me dirigi depois sem demora ao terceiro andar da livraria, onde está o belo e silente sebo. Escolhi dois livros. Um de uma autora inglesa de quem nunca ouvira falar, George Eliot, nome fictício de Mary Ann Evans (1819-1880). Intitula-se O Moinho do Rio Floss. Li as primeiras páginas e me agradou a descrição do cenário rural. É uma edição de aspecto razoável, datada de dezembro de 1945. Publicada pela Livraria José Olympio Editora, de inestimáveis serviços prestados aos leitores do Brasil, a obra tem tradução de Oliveira Ribeiro Neto.  Apesar de vetusta, muitas das 559 páginas precisam ainda ser abertas com espátula. As páginas têm a cor meio ocre de folhas de plátano no outono.
 
O outro livro é de ensaios, Vivendo pela palavra, da escritora americana Alice Walker (1944), autora do famoso A Cor púrpura, que virou filme de sucesso. Trata-se de publicação da Editora Rocco, de 1988, com tradução de Aulyde Soares Rodrigues, 190 páginas. Estou já pela metade da leitura e gostando muito (não li nada dela antes).


photo: j.finatto
 
Alice tem uma abordagem simples da vida, ao mesmo tempo em que extrai sofisticadas sínteses de suas observações. É uma ativista dos direitos humanos. Neste livro de 27 ensaios, escritos entre 1981 e 1988, publicados antes em revistas, ela fala de relacionamentos, começando com seu pai, traz lembranças de sua vida familiar de menina pobre e negra no sul dos Estados Unidos, aborda política, racismo, viagens, homossexualismo, bichos, natureza, dificuldades no convívio com seus cabelos (e a superação delas), e personagens que conheceu, como o grande poeta Langston Hughes (este lembrado no texto O velho artista, a respeito de outro belo personagem, o Sr. Sweet).

Abrimos uma página, ao acaso, e lá encontramos sua infância rural, na Georgia, fim dos anos 1940, e vemos um velho tocando violão e cantando blues, ao lado do forno quente que assa biscoitos, na cozinha cheirosa. E tem também uma cadeira de carvalho feita pelo avô, os problemas afetivos e materiais da família, e muito além disso, mais tarde, o mundo e suas mil faces.

photo: j.finatto

A escritora pensa e sente a condição de mulheres e homens negros de seu país e do resto do mundo. Denuncia a opressão onde a percebe e mostra o valor e a beleza das pessoas, independente de raças, e suas difíceis circunstâncias. Tudo isso com sensibilidade, numa linguagem cálida, não raro de mãos dadas com a poesia.

Os livros não têm resposta pra tudo, é verdade, nem podem nos salvar. Mas nos ajudam a viver. Abrem caminhos para o que não conhecemos, fora e dentro de nós. Nos completam.
 
Os escritores trabalham como um moinho que vai sentindo e meditando as coisas da vida, re-moendo os fatos e as circunstâncias, deles extraindo sentidos. O resultado são palavras que nos entregam com a suma dessa experiência e suas revelações.

Começou a entardecer. Me despedi do pessoal da livraria e voltei pra estrada rumo de casa. Com esses dois livros e a alma mais leve do que quando cheguei.

photo: j.finatto