sábado, 9 de maio de 2015

As intermitências da primavera

Jorge Adelar Finatto
 
photo: Clara Finatto
 
 
O amor - ou esse sentimento que aproxima pessoas solitárias e desamparadas como ele - inaugurou datas no calendário, pintou de lilás e rosa o coração.

O amor tocou músicas no som do carro e do apartamento. O amor pintou de azul e amarelo as flores do vaso da sala. O amor tornou-o uma pessoa melhor para si e para os outros.
 
Um dia, talvez, ela, que gostava tanto de gatos, regressará da nuvem onde foi habitar. Virá buscá-lo, como sempre fazia, para irem juntos ao cinema, ao café, à livraria, ao Parque Harmonia ver o pôr-do-sol na beira do Guaíba.
 
Ela foi o único ser humano que conseguiu resgatá-lo da remota ilha. Morreu há três anos de uma doença que não vale a pena lembrar, foi embora depois de sorrir e dizer que ele não devia se preocupar, tudo ia dar certo. Perdeu-a pouco antes de irem morar juntos.
 
Sente-se um morto-vivo sem aquela que o salvou da solidão de náufrago.  Ela foi a sua primavera.

Uma colega de trabalho disse-lhe que ele é muito certinho. A vida, não.
 
O fato é que, um dia, ele sonhou ser feliz para sempre. Mas a realidade disse que para sempre é tempo demais.
 
A família que, no passado, foi unida, agora vive dividida, os irmãos quase não se convivem.
 
A mãe, que em vida tecera com dedos de fada os frágeis laços do afeto familiar, também morreu antes do tempo. Ninguém a substituiu na rara arte de evitar e, sobretudo, de colar os cacos. Os cristais se partiram.
 
Ele voltou a viver no ermo distante da ilha. Tornou-se um estrangeiro em sua própria cidade. Os antigos amigos transformaram-se em conhecidos, foram casando, criando filhos, separando, mudando de rua, de bairro, cidade, país.

O seu mundo reduziu-se ao apartamento, ao trabalho, às idas ao mercado, às leituras, a uma eventual saída aos sábados e às impiedosas tardes e noites de domingo.
 
Teve poucos relacionamentos depois, coisas entediantes, sem nenhuma importância. Não consegue fazer o tipo leve, desses à vontade no mundo. Gosta de pensar, procurar sentidos. E não os encontra.
 
Sexo de ocasião nunca foi pra ele. Tem receio das pequenas e delicadas memórias que o invadem, quando a dona delas vai embora. O que para muitos é pura diversão, para ele é vertigem. Se ao menos não sentisse tanto as coisas.

O lugar onde vive - a longínqua ilha - só não é uma tapera porque a velha empregada da família aparece duas vezes por semana, dá um ar doméstico ao tugúrio. Os únicos seres vivos ali, além dele, são as hortênsias que cultiva na sala, em dois vasos, um em cada lado da janela.
 
As hortênsias acendem as manhãs de verão, iluminam a casa.
 
A janela é o ponto de referência dele no planeta.
 
Dali pode ver a praça e as pessoas nela, as árvores e a rua, o céu, os outros edifícios.
 
De qualquer parte do universo um observador pode tê-lo como objeto de estudos. Todos os dias, no fim da tarde, está na janela tomando chimarrão. Só.
 
No fundo, nunca a perdoou por tê-lo abandonado no mundo.
 
O medo de amar afeiçoou-se a ele como as heras num túmulo de cemitério do interior.
 
A solidão o faz acariciar o gato invisível, na frente da televisão, até adormecer.
 
Se fez acompanhamento psiquiátrico para esse viver tão desolado? Sim. Mas continua o mesmo homem enclausurado, estranho a si mesmo, sem saber o que fazer com as mãos quando está sozinho.

O outono chegou com um cesto florido de lembranças dela. Vive de memória.
 
Os dias chuvosos, frios, deixam as pessoas entocadas em casa.
 
A praça está vazia agora. Recorda-se dos dias em que caminhavam juntos ali.

A ausência da primavera faz o coração girar louco na ventania.
 
Se ao menos tivesse um gato de verdade. Se não houvesse essa lua enorme no céu.

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Texto revisto, publicado originalmente em 17 de fevereiro, 2010.