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segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Entre panchos e chivitos

Jorge Adelar Finatto
 
Guillermo Cabrera Infante
 
Num bom café-restaurante de Montevideo, La Pasiva, na Av. 18 de Julio, fui comer alguma coisa na noite de domingo. Conheci um garçom simpático e educado, por volta dos 40 anos, que veio me atender. Entre a escolha do que comer e beber e a conversa solta de um domingo que escorregava na ampulheta no rumo da segunda, perguntei-lhe de onde era.

Era cubano e estava no Uruguai há um ano e pouco. Gosta muito do país - como eu - mas acha que tudo está muito caro na tierra de José Pepe Mujica. Também nisso concordamos, os preços estão mesmo muito altos, parece até que a moeda corrente é o dólar americano. De fato, o dólar comanda as transações e as moedas locais de nossos países parecem de brinquedo.

O garçom voa de mesa em mesa, desaparece atrás de bandejas de panchos e chivitos, e depois volta a aparecer e continuamos a prosa. A fim de testá-lo, digo versos do poema Tengo, de 1964, do importante poeta cubano Nicolás Guillén (1902-1989):

Tengo, vamos a ver,
tengo lo que tenía que tener.

Ao que ele completa com conhecimento de causa e boa memória:

Tengo, vamos a ver,
tengo el gusto de andar por mi país,
dueño de cuanto hay en él,
mirando bien de cerca lo que antes
no tuve ni podia tener.

Guillén foi uma devoção literária de minha juventude. Ele exaltou as conquistas da Revolução Cubana, mas já era um poeta enorme antes dela, sempre preocupado com temas sociais e com as injustiças. Na sua poesia a negritude surge com força numa linguagem original, sonora, cheia de ritmo e sensualidade.

Resolvi seguir adiante com a literatura cubana, de que tanto gosto, assim como gosto de Cuba e dos cubanos, apesar de nunca ter ido lá, e soltei para o culto garçom:

A máquina de escrever é a verdadeira máquina do tempo.

Não fiz menção ao nome do autor. Ele pensou, pensou e disse que não recordava (o trecho está na pág. 16 do livro A ninfa inconstante, de outro grande cubano, Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), publicado pela Folha de São Paulo, em 2012, tradução de Eduardo Brandão).

Quando revelei-lhe o nome do autor, ele disse que nunca tinha ouvido falar. Não se fala nele em Cuba. Eu lembrei que Cabrera Infante é um dos mais notáveis escritores de língua espanhola de todos os tempos, autor de um clássico raro e saboroso, Três tristes tigres, de 1967, um dos livros mais incríveis que conheço.

O  autor caribenho, aliás, era leitor confesso e encantado de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e de Macunaíma, de Mário de Andrade.*

Acontece que Cabrera Infante rompeu com a revolução quando percebeu o rumo autoritário que tomava. Acabou no exílio, em Londres, onde virou cidadão britânico e escreveu parte de sua obra.

A Ilha passou a ser vista com o manto da memória e da melancolia. Mas sem esquecer os óculos da poesia, do calor humano e da ironia.

Fiquei indignado pelo fato do amigo garçom não ter podido conhecer, em Cuba, por força da censura, um escritor deste porte, um nome que já se pode dizer universal.

O que só vem confirmar que, em Cuba, tudo tem somente um lado, o lado do poder, isto é, o lado da família Castro. A ditadura se prolonga, impunemente, desde  1959.** Tristemente.

Mas o cubano me restituiu a esperança ao dizer que ia procurar um livro de Cabrera Infante no dia seguinte. E me fez prometer - e eu prometi - que ia ler toda a poesia de José Martí.

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*Cabrera Infante, por Geneton Moraes Neto:
http://www.geneton.com.br/archives/000035.html
**Os direitos humanos em Cuba:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2013/02/cuba-e-os-direitos-humanos.html
 

sexta-feira, 20 de junho de 2014

O aborto e o Papa

Jorge Adelar Finatto
 
photo: jfinatto, janeiro, 2010
 
O presente artigo foi escrito e publicado em março de 2010. Pelas questões que suscita, republico-o, acreditando que vale a reflexão sobre um tema tão importante quanto delicado. Observo que em dezembro de 2012 o Uruguai aprovou a lei que autoriza a interrupção voluntária da gravidez no prazo de até doze semanas de gestação ou 14, em caso de violação. Foi o segundo país a descriminalizar o aborto na América Latina; o primeiro foi Cuba.
 
A frase na parede de um prédio público, quase à beira do Rio da Prata, me fez parar sob um sol forte, a poucas quadras do belo e tradicional Teatro Solis, em Montevideo, em janeiro passado.
 
O Uruguai é um país de gente que lê, opina, discute, participa. O que me motivou a fotografar?
 
Primeiro, o argumento. Se o Papa fosse mulher, uma papisa, portanto, a questão do aborto teria mesmo outro tratamento? Será que a compreensão do problema do aborto é uma questão só de gênero?
 
Segundo, eu não tenho opinião definitiva sobre o assunto e não faço julgamento moral a respeito. O que eu queria é entender.
 
O grafite montevideano expressa a opinião de milhões e milhões de mulheres no mundo inteiro.

O aborto é, com efeito, uma questão de gênero. Mas não só. Gerar ou não uma vida no próprio ventre é, em boa medida, uma decisão da mulher, por diversas razões.
 
A rejeição da gravidez ou a omissão dos homens em relação ao fato é uma delas.
 
A legalização do aborto é uma das faces de um problema maior, mas está longe de ser a principal.
 
A afetividade, a sexualidade e a responsabilidade pela geração da vida estão intimamente ligadas. Fazer sexo, sexo casual, é diferente de fazer amor.
 
A indústria da propaganda, em geral, separa o corpo e o sexo do resto. Existem corpos lindos, mas não existe espírito nesses corpos.
 
Corpos maravilhosos de mulheres são utilizados para vender qualquer coisa. O mesmo também acontece agora com corpos masculinos.
 
A erotização começa na infância, através dos comerciais, filmes, programas, séries e novelas de televisão.
 
Coisas como compromisso nas relações, autoestima, estima e respeito pelo outro são tratadas de maneira residual.
 
Em vários países o aborto foi legalizado.
 
No Brasil, a discussão permanece e sua prática ainda é crime, salvo nos casos em que não houver outro meio de salvar a vida da gestante e quando a gravidez resultar de estupro (desde que precedido de consentimento da gestante ou de seu representante legal).
 
Dizem os defensores da legalização que mulheres pobres, que não querem mais ter filhos, muitas vezes são levadas a fazer aborto em condições sub-humanas, longe do sistema público de saúde, com elevado índice de letalidade, enquanto mulheres com boas condições econômicas pagam por procedimentos particulares e recebem melhor atendimento.
 
Informação do Ministério da Saúde estima em 1,4 milhão de abortos clandestinos no Brasil por ano, conforme dado colhido do site Themis, Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, de Porto Alegre.
 
Dizem também os defensores do aborto que a mulher tem o direito de dispor do próprio corpo.
 
Os que são contra a autorização afirmam que a mulher não pode interromper uma vida que já não lhe pertence, mas é de outra pessoa depois da concepção.
 
Eu não sou especialista no assunto, mas também não sou hipócrita.
 
O aborto é um tema a ser tratado por toda a sociedade, mulheres e homens.
 
Tratado, sim, mas num espectro mais amplo do que a mera legalização, que, pelo que vejo, acabará acontecendo.
 
Está na hora de pensar a sexualidade humana de modo mais responsável, penso eu. Isso é mais do que simplesmente distribuir milhões de camisinhas (preservativos) no carnaval e achar que está tudo certo (como órgãos de saúde pública costumam fazer no Brasil).

Creio que se faz necessário criar redes de apoio a gestantes, substituindo a ameaça da criminalização pelo diálogo acolhedor, pela orientação assistencial. E o Estado deve preparar o sistema de saúde para receber e tratar situações de aborto a fim de evitar que tantas vidas sejam perdidas ou mutiladas,
 
Este grafite na parede de um edifício, em Montevideo, sob o sol escaldante do Rio da Prata em janeiro de 2010, me fez parar e tentar entender.

 
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Texto atualizado, publicado anteriormente em 9 de março, 2010.