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sábado, 25 de abril de 2020

Entre todas, a mais bela estação

Jorge Finatto
 
photo: jfinatto

O outono é a estação mais bela. A coleção de cores, a variedade infinita de tons, a concentração das seivas. A beleza da solidão.

Saí do "distanciamento social", imposto pelo bicho medonho, e fui fazer umas fotos. Ninguém na Praça Gustavo Langsch. Sossego, passarinho, um pouco de frio.

A vida continua viva.

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Paixão de outono

Jorge Finatto

 
NINGUÉM ESTÁ IMUNE a uma paixão de outono. Supõe-se, contudo, que um cara na minha idade tenha anticorpos suficientes para evitar recaídas e armadilhas.
 
Afinal, já levou rasteiras, deu com a cara no chão, apanhou bastante. Deve ter aprendido a não brincar com fogo. O tempo arrefece emoções violentas, vive-se mais espiritualmente (digamos).
 
Não por outra razão inventaram as religiões, a literatura, a filosofia, as artes, as palavras cruzadas e os blogs. Quireras, quireras, raro leitor. Não passamos de uns pobres diabos. Veja o que me aconteceu.
 
Ontem, saí de Passo dos Ausentes às 7 da manhã em direção a Nova Petrópolis. Depois de 8 horas viajando serra abaixo na intrépida Linguilingui, contornando sinistros abismos, cheguei ao destino e fui ao café da tarde (costume ainda em voga entre serranos da antiga). Logo em seguida, me dirigi ao Recanto das Azaléias, floricultura do meu agrado. Foi aí que tudo começou.

photo: ipoméia azul. jfinatto, 14/10/2016
 
Numa curva da aléia, entre vasos e flores, encontrei-a, de repente. Ela nem sequer percebeu a minha existência. Não tirei mais os olhos dela. O coração acelerou. Por instantes esqueci quem eu era. Toda minha vã filosofia caiu por terra. Eu só tinha tenção pra ela. Indefeso, encantado, só fiz admirá-la. Pura visão.
 
Apaixonei-me, em suma. Seu nome, de remoto sabor grego: Ipoméia.
 
Todo Quixote encontra um dia sua Dulcinéia. Intrépido,vencido embora, levei-a pra casa.

Ao anoitecer, a divina donzela enclausurou-se em si mesma, recolhendo-se em seus secretos aposentos. Ao amanhecer, inaugurou o suave e delicado tecido das inefáveis flores.
 
Não podia imaginar que Deus me reservava essa beleza, que eu não mereço, em plena secura do tempo. Mas aconteceu.

Sentimento azul.
 
__________
Texto revisto, publicado antes em 15/10/2016. Escrito sob a boa grafia antiga, vigorante antes do (des) acordo ortográfico.  

sábado, 9 de maio de 2015

As intermitências da primavera

Jorge Adelar Finatto
 
photo: Clara Finatto
 
 
O amor - ou esse sentimento que aproxima pessoas solitárias e desamparadas como ele - inaugurou datas no calendário, pintou de lilás e rosa o coração.

O amor tocou músicas no som do carro e do apartamento. O amor pintou de azul e amarelo as flores do vaso da sala. O amor tornou-o uma pessoa melhor para si e para os outros.
 
Um dia, talvez, ela, que gostava tanto de gatos, regressará da nuvem onde foi habitar. Virá buscá-lo, como sempre fazia, para irem juntos ao cinema, ao café, à livraria, ao Parque Harmonia ver o pôr-do-sol na beira do Guaíba.
 
Ela foi o único ser humano que conseguiu resgatá-lo da remota ilha. Morreu há três anos de uma doença que não vale a pena lembrar, foi embora depois de sorrir e dizer que ele não devia se preocupar, tudo ia dar certo. Perdeu-a pouco antes de irem morar juntos.
 
Sente-se um morto-vivo sem aquela que o salvou da solidão de náufrago.  Ela foi a sua primavera.

Uma colega de trabalho disse-lhe que ele é muito certinho. A vida, não.
 
O fato é que, um dia, ele sonhou ser feliz para sempre. Mas a realidade disse que para sempre é tempo demais.
 
A família que, no passado, foi unida, agora vive dividida, os irmãos quase não se convivem.
 
A mãe, que em vida tecera com dedos de fada os frágeis laços do afeto familiar, também morreu antes do tempo. Ninguém a substituiu na rara arte de evitar e, sobretudo, de colar os cacos. Os cristais se partiram.
 
Ele voltou a viver no ermo distante da ilha. Tornou-se um estrangeiro em sua própria cidade. Os antigos amigos transformaram-se em conhecidos, foram casando, criando filhos, separando, mudando de rua, de bairro, cidade, país.

O seu mundo reduziu-se ao apartamento, ao trabalho, às idas ao mercado, às leituras, a uma eventual saída aos sábados e às impiedosas tardes e noites de domingo.
 
Teve poucos relacionamentos depois, coisas entediantes, sem nenhuma importância. Não consegue fazer o tipo leve, desses à vontade no mundo. Gosta de pensar, procurar sentidos. E não os encontra.
 
Sexo de ocasião nunca foi pra ele. Tem receio das pequenas e delicadas memórias que o invadem, quando a dona delas vai embora. O que para muitos é pura diversão, para ele é vertigem. Se ao menos não sentisse tanto as coisas.

O lugar onde vive - a longínqua ilha - só não é uma tapera porque a velha empregada da família aparece duas vezes por semana, dá um ar doméstico ao tugúrio. Os únicos seres vivos ali, além dele, são as hortênsias que cultiva na sala, em dois vasos, um em cada lado da janela.
 
As hortênsias acendem as manhãs de verão, iluminam a casa.
 
A janela é o ponto de referência dele no planeta.
 
Dali pode ver a praça e as pessoas nela, as árvores e a rua, o céu, os outros edifícios.
 
De qualquer parte do universo um observador pode tê-lo como objeto de estudos. Todos os dias, no fim da tarde, está na janela tomando chimarrão. Só.
 
No fundo, nunca a perdoou por tê-lo abandonado no mundo.
 
O medo de amar afeiçoou-se a ele como as heras num túmulo de cemitério do interior.
 
A solidão o faz acariciar o gato invisível, na frente da televisão, até adormecer.
 
Se fez acompanhamento psiquiátrico para esse viver tão desolado? Sim. Mas continua o mesmo homem enclausurado, estranho a si mesmo, sem saber o que fazer com as mãos quando está sozinho.

O outono chegou com um cesto florido de lembranças dela. Vive de memória.
 
Os dias chuvosos, frios, deixam as pessoas entocadas em casa.
 
A praça está vazia agora. Recorda-se dos dias em que caminhavam juntos ali.

A ausência da primavera faz o coração girar louco na ventania.
 
Se ao menos tivesse um gato de verdade. Se não houvesse essa lua enorme no céu.

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Texto revisto, publicado originalmente em 17 de fevereiro, 2010.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Falls

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
Agora as folhas caem, Maria. Abril das passagens e dos mistérios. Ouço o ruído seco que fazem ao deslizar entre os galhos.

É bonito vê-las escorregar no ar. Elas me lembram coisas que caíram um dia no pátio do meu coração e o vento levou. Algumas tão silenciosamente que nem percebi.
 
Trago essas perdas espalhadas dentro de mim. Sou feito dessas ausências e silêncios. Vou em frente.
 
O outono carrega reminiscências em seus velhos baús de madeira. Traz um desmesurado apego aos ocres, amarelos e dourados. Essas são as cores da mutação. 
 
Eu vou sem medo pela estrada de terra, Maria. Vou olhar o caminho do sol.

O tecido de seda da tarde de outono.

Os passos andarilhos. As quedas das folhas.
 
Gosto de sentir o sol em meu peito. Ele entra no meu coração e ilumina todas as coisas. Algumas eu nem lembrava mais.
 
A luz cálida da tarde se mistura ao sangue. Então não há tristeza que faça sombra à alegria de estar vivo.

E é como se as folhas se levantassem do chão e, douradas, saíssem em bando pelo céu azul.
 

sexta-feira, 20 de março de 2015

No caminho de Walden

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
Ser filósofo não é simplesmente ter pensamentos sutis, nem mesmo fundar uma escola, mas amar a sabedoria a ponto de viver de acordo com seus ditames, uma vida de simplicidade, independência, generosidade e confiança.
                              Henry David Thoreau, in Walden ¹
 
Nem toda literatura do mundo vale essa manhã de outono. Por isso, hoje fechei os livros e saí por aí caminhando pela natureza. Um pouco como Henry David Thoreau (1817-1862), que trouxe para o centro da vida a experiência sensorial e transcendente, e não apenas livresca e intelectual, das coisas do mundo. Vida real, respirada, pensada, sentida, suada de todos os dias.
 
A filosofia, qualquer que seja, só tem razão de ser se serve para vivermos melhor, em mais harmonia com o semelhante, com o ambiente, com nossas emoções, sabendo que para chegar a isso existem limites que precisam ser respeitados e preconceitos que devem ser superados.

Não se trata de desprezar os livros, mas de saber que, para além deles, é preciso viver, ir para a vida, observar, aproximar-se, conhecer, praticar o que sentimos e pensamos.

Respirar o ar do dia. Tão importante quanto ler um bom livro é andar numa manhã azul (ou cinza, não importa) de outono como essa, entre árvores, pássaros, córrego, pinheiros. A música do vento nos galhos e nas folhas.

Eu passei a maior parte da vida entre edifícios sufocantes, ruas cinzentas e violentas. Num país onde o que menos importa é a dignidade da pessoa. No qual a corrupção com o dinheiro público se institucionalizou nas altas esferas de determinados grupos. Onde pessoas que deveriam dar exemplo são as piores referências possíveis. O triste retrato do que vai na alma de alguns: acumular riquezas e privilégios a qualquer custo.

Henry David Thoreau
fonte: Wikipédia

Jamais homem algum decaiu em minha estima por usar uma roupa remendada; no entanto, tenho certeza de que os homens geralmente se preocupam mais em ter roupas elegantes, ou pelo menos asseadas e sem remendos, do que em ter uma consciência limpa.
H.D. Thoreau²

 A vida inteira lutei por essa manhã de outono.

Thoreau, o grande poeta e pensador americano (ensaísta, filósofo e naturalista), nasceu e viveu no interior, na pequena cidade de Concord, Estado de Massachusetts, Estados Unidos. Foi ao encontro da natureza interna (o espírito) e externa (amoroso da vida natural e dos seres vivos, bem antes de falar-se em ecologia).

Um belo dia decidiu construir uma cabana à margem do Lago Walden e viver longe da civilização, fazendo a vida com as próprias mãos. Ali permaneceu por 2 anos e 2 meses, solitário mas sem se tornar um ermitão, pois mantinha e gostava de contatos eventuais.

Dessa maravilhosa experiência de aprendizado e meditação nos dá notícia no livro Walden, de 1854. O ensaio mais famoso que escreveu, A desobediência civil (1849), resultou de uma noite passada na cadeia em 1846. O motivo da prisão: negou-se a pagar impostos em protesto contra a escravidão e a guerra do México.

Sua obra é marcada pelo apreço aos direitos individuais, à simplicidade, às emoções, ao bem-estar físico e espiritual dos indivíduos. Sua vida influenciou gente como Martin Luther King e Gandhi, entre outros.

Celebro a chegada do outono fazendo, modestamente, meu caminho de Walden, visitando a natureza aqui nos Campos de Cima do Esquecimento e lembrando esse grande ser humano que foi Thoreau. Se ele conseguiu viver perto da natureza, e sentiu a existência como um nativo que olha o mundo pela primeira vez, nós também podemos chegar lá.
 
Enquanto desfruto a amizade das estações, sinto que nada conseguirá fazer da vida um fardo para mim. A chuva mansa que hoje rega meus feijões e me mantém dentro de casa não é tristeza nem melancolia, e é boa para mim também.
H.D.Thoreau³

Lago Walden, congelado. Concord, USA
fonte: Wikipédia
___________
 
¹-²-³Walden. H.D.Thoreau. L&PM Editores. Porto Alegre, 2010. Tradução de Denise Bottmann. Trechos transcritos das págs. 27/28, 34, 131.
 

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Saudade do outono

Jorge Adelar Finatto

photo: jfinatto
 
A mais bela das estações, para o mortal que escreve nesta rude página elétrica, é o outono. De boa vontade embrulharia o verão e o mandaria direto para o inverno.
 
Não quero desfazer das outras estações, cada qual com seus gostos. O verão, por exemplo: tem muita gente que gosta. Mas é no outono que eu renasço.
 
Outono significa transformação, as mudanças tão necessárias e urgentes para a vida seguir seu curso. É o recolher das seivas, reunião de forças, introspecção, preparo e passagem para um outro tempo.
 
Observei a copa dos plátanos esses dias e vi que começam a despontar os primeiros pigmentos amarelos nas folhas.

É pré-outono, uma notícia que a natureza mais íntima da flora nos manda em pleno verão. Para não esquecermos a beleza que está por chegar. A paisagem impressionista se anuncia. Nem todos percebem esses avisos. Só os ávidos por outono.
 
Os cáquis estão muito verdes ainda nos pés, mas crescem em silêncio entre as folhas e prometem doces dias em sua pele dourada.
 
O outono não é uma rainha decrépita, longe disso. É uma princesa discreta, sensual e misteriosa, que traz o véu com mil cores e tons, além de delicadas fragrâncias.

As nuvens são cor de açúcar queimado no entardecer.

Escrevo palavras de saudação ao outono que se aproxima, trazendo na bagagem seus ocres e amarelos, suas seivas, suas luminosas mutações, sua concentração na permanência da vida.

Um texto de fuga, alguém dirá, com alguma razão. A palavra há de servir, também, às vezes, para a evasão do real, sempre tão importante a fim evitar a loucura por excesso da realidade.

Eu ando mesmo com uma bruta saudade das delicadezas do outono em meio à barbárie destes dias.

As manhãs e tardes da estação das folhas cadentes prometem leveza nos traços iridescentes. A tristeza vai ter de esperar.
 

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

A boneca de trapo

Jorge Adelar Finatto
 
photo: j.finatto
 
Era uma dessas tardes que antecedem o outono em Passo dos Ausentes. O ar outonal nos deixa mais sensíveis diante das mudanças nas cores e das primeiras quedas de folhas. As seivas reúnem e concentram a força da natureza, evitando qualquer desperdício. Em dias assim, é uma sorte estar vivo.
 
Enquanto atravessava a Praça da Ausência, encontrei uma boneca de trapo caída no chão. Era feita de velhos panos coloridos. Os olhos eram dois botões verdes.
 
Os cabelos, fios de lã repartidos em duas tranças. A boca, um pequeno risco vermelho e sorria.
 
Apesar de perdida, a boneca não parecia muito triste. Apenas carregava um toque de melancolia no semblante, que desapareceu quando a levantei.  Acomodei-a no banco da praça, embaixo de um salgueiro, ao lado do lago.

Fui embora, não sem alguma dor. No início quis levá-la comigo, dar-lhe novo lar. Mas desisti ao pensar que quem a perdeu (uma criança tudo leva a crer) voltaria para buscá-la. Seria de cortar o coração não encontrar a sua boneca de trapo.

Viver tem dessas coisas. Nem sempre podemos ter o que nos encanta. Nem sempre, como no outono, a vida se exalta em delicadas mutações. Num dia, o céu azul nos ilumina, habitado aqui e ali por nuvens cor-de-rosa, o coração bate harmonioso. Noutro, pensamentos escuros, pesados, se espalham e a gente só imagina besteira.

A boneca de trapo me lembrou coisas que perdi na vida. Perdi e me conformei. Porque nada, absolutamente nada, nos pertence verdadeiramente nesse mundo.
 
Tudo que temos é emprestado. Um dia teremos de devolver. Nada é nosso.

Salvo, talvez, o meigo sorriso de uma boneca de trapo.

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Boneca artesanal da região serrana do Rio Grande do Sul. Texto revisto, publicado em 16 de março de 2011.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Por quem choras, Maria Filipa?

Jorge Adelar Finatto 

photos: j.finatto. Amsterdam


Por quem choras, Maria Filipa?

Quem mastigou teu coração e depois cuspiu no fundo das águas?

Estás sentada ainda à beira do canal, na tarde de outono, em Amsterdam?

Me olhaste com os olhos mais tristes do mundo. Passageiro efêmero no barco casual, numa cidade distante e povoada de ausência, eu nada fiz naquela hora.

Eu estava de passagem entre um cais e outro, um canal e outro, um deserto e outro.
 
Devia ter me jogado nas águas turvas da tarde de domingo. Nada era mais importante do que ir ao teu encontro.

photo: j.finatto.

Devia ter ficado o resto do dia contigo, em silêncio, ali naquele banco, sem nada esperar. Exceto talvez dizer e receber um pouco de consolo.

A cara de anjo, o capuz azul da solidão, os olhos mais tristes do mundo, me olhaste.
 
Da minha solidão eu te acenei.
 
Foi tudo que fiz, egoísta. Por um instante tuas lágrimas diminuíram e pude perceber que teus olhos me seguiram. Depois tua cabeça caiu sobre o colo outra vez, onde as mãos pálidas repousavam.

O barco sumiu sob as pontes atravessadas pelos ventos de novembro. Eu dentro dele.
 
Entre dois cais, entre dois nadas.
 
photo: j.finatto
 
 
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Texto revisto, publicado antes em 16 de outubro, 2012.

domingo, 8 de junho de 2014

Territórios ocupados

Jorge Adelar Finatto
 
 
photo: j.finatto. Porto Algre, 07/6/14. Praça Gustavo Langsch
 

Um enclave de luz e cor habita entre os edifícios da cidade gris.
 
O exército de inumeráveis folhas de outono tomou conta do lugar. As árvores povoam o iluminado território, estendendo os braços pela extensão do terreno acidentado da Praça Gustavo Langsch em Porto Alegre.
 
photo: j.finatto
 
O cenário das outonais operações é uma área oblíqua, íngreme, colina quase a pique engastada na parte alta do bairro Bela Vista. Ali se espalham as folhas pelo chão úmido.

Dali se descortinam ao sul os morros que cortam a cidade e caminham ondulantes em direção ao Rio Guaíba.

photo: j,finatto

A praça é um território ocupado em armas pelas forças da beleza, da harmonia e do canto dos pássaros ao amanhecer.

Por ela já não se ouvem os gritos e barulhos da cidade atordoada e vencida que a cerca.

Na tarde de sábado o que vale é percorrer seus caminhos e trilhos dourados.
 
photo: j.finatto
 
Se ao acaso da praça acontece o acaso do sol entre as nuvens, a claridade derrama-se em mil tons sobre as copas. Alumbramento dos sentidos.

O ar respira amarelos e ocres.
 
O silêncio é ferrugem.
 
photo: j.finatto
 

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Visitante

Jorge Adelar Finatto

 
photo: j.finatto

 
Quando o frio chega
eu saio com o bolso
cheio de pássaros
e vou até aí te visitar

tempero o inverno
no teu calor
de mulher

de manhã parto feliz
com tua luz
nas entranhas

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Do livro Claridade, co-edição Prefeitura Municipal de Porto Alegre e Editora Movimento, 1983.

quarta-feira, 19 de março de 2014

O país das quaresmeiras em flor

Jorge Adelar Finatto

photo: j.finatto, 15.3.2014
 
Só agora me dou conta, raro leitor, de que elas andam por aí, anunciando a Páscoa e o advento do outono. A nova estação chega cheia de significados
 
(fala de Ressurreição e de urgentes renascimentos)
 
As flores das quaresmeiras têm tudo a ver com sentir claro, respirar limpo, passar longe dos abismos.

É o que eu penso nesse instante vendo-as vibrar na claridade, apesar da densa sombra que se abate sobre o Brasil com sua triste face de corrupção e violência social

mas não é só aqui, dizem os intérpretes do caos, mas sendo aqui, digo eu, já me basta, é o suficiente para danar a minha/nossa vida.

Estamos perplexos, temerosos, impotentes, humilhados diante da realidade que nos assola.

(dizer que saímos da escuridão abissal da ditadura e acabamos nisso, nesse buraco sem fundo que suga nossa alegria, nosso trabalho, nossa paz, nosso sangue, nossos sonhos

ceifa vidas diariamente nas ruas do país sem lei, sem autoridade, sem saúde, sem educação, sem esperança (tudo, claro, garantido no papel),

trágicas ruas onde se afunda o famoso, nunca demais louvado, não obstante sempre negligenciado estado democrático de direito

- de que estado e de que direito estamos falando mesmo? -

ninguém sabe ao certo se existe de fato e o que é isto no aqui e agora, nem mesmo se depois de tanta indiferença, omissão, arrogância, malandrice, cinismo e incompetência haverá ainda um país para chorar)

photo: j.finatto, 15.3.2014
  
Mas olhando as quaresmeiras em flor, nesta hora e neste lugar, ao menos nesse efêmero instante, a morte não tem nem pode ter guarida.

As flores das quaresmeiras são o oposto da morte, negação do desespero e do abandono (longo abandono de séculos). 
 
(a delicadeza dos ramos, pétalas e cores remete a um mundo outro)
 
Um tempo de recolhimento e silenciosas caminhadas por estradas interiores nos habita na quaresma.

Olhar atento ao solitário vôo do pássaro sobre os fios de luz, tecendo destino e distância com a nossa esperança (por um fio).
 
Tempo de resistência

(como sempre)

de atravessar a ponte
 
(sobre o rio das mortes)
 
e chegar vivo do outro lado. 


photo: j.finatto, 15.3.2014
 

sábado, 17 de março de 2012

Primeiro informe do outono

Jorge Adelar Finatto


photo: j.finatto


Uma certa luz

Este é o último sábado de verão. O próximo será outono. Chega ao fim o longo e suado estio. Os primeiros ocres e amarelos surgem nas folhas. É tempo de passagem para uma nova luz. Quaresma. O tempo das quaresmeiras em flor.


Um certo artista

Deus é um artista caprichoso e incomparável. Só ele tem paciência e tempo (a eternidade, no caso) para pintar folha por folha, ramo por ramo, galho por galho com tamanho engenho e arte. E sua caixa de lápis de cor não tem igual no universo.

O que é o fotógrafo da natureza, senão um mero copiador da obra Dele, sem nada pagar de direito autoral?


photo: j.finatto

Que a nova estação nos traga boas notícias nas cartas do vento.


Cavalo-Marinho

Uma das coisas mais bonitas que ouvi ultimamente é a música Cavalo-Marinho, de Cacaso e Nando Carneiro, na linda voz de Rosa Emília. Está no youtube, onde alguém colocou a canção com imagens do nascimento de um cavalo-marinho. Algo raro, emocionante:

 http://www.youtube.com/watch?v=h-jI0bObvVI

O poema de Cacaso é de uma simplicidade tocante:

                            Galopa cavalo marinho
                                    me ensina o caminho
                                    que devo tomar
                                    Solta as crinas no vento
                                    galopa no vento
                                    cavalo do mar

Está no livro Mar de Mineiro (poemas e canções), de 1982.


Balaio de uva na beira da estrada

Nessa época, quem anda pelas estradas da serra costuma encontrar tendas onde se vendem uvas em balaios de vime. Também oferecem queijos, frutas, verduras, embutidos, vinhos, chás, produtos coloniais e artesanais, chapéus de palha, além de boa conversa. As tendas estão à sombra de frondosos plátanos, cujas folhas começam a dourar. Sentir o cheiro e a frescura desses lugares é voltar um pouco na infância. Às vezes, lá longe, uma cascata branca escorre numa escarpa de antiquíssimo basalto.


photo: j.finatto


Milagres

Não acredito muito em milagres, mas que existem, existem. Tanto é que estou/estamos por aqui, em mais um outono de nossas vidas. Considerando as duras vicissitudes e os entrementes, isto não é pouca coisa.