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sexta-feira, 21 de março de 2014

Pra dizer que também falamos de flores*

Frederico Vasconcelos
Repórter Especial da Folha de São Paulo

photo: j.finatto
 


"Estamos perplexos, temerosos, impotentes, humilhados diante da realidade que nos assola."


Sob o título “O país das quaresmeiras em flor”, o texto a seguir é de autoria do juiz e poeta gaúcho Jorge Adelar Finatto. Foi publicado originalmente em seu blog “O Fazedor de Auroras“, que tem como lema “a vida de todos os dias, a que eu sempre quis”.

 
Só agora me dou conta, raro leitor, de que elas andam por aí, anunciando a Páscoa e o advento do outono. A nova estação chega cheia de significados
 
(fala de Ressurreição e de urgentes renascimentos)
 
As flores das quaresmeiras têm tudo a ver com sentir claro, respirar limpo, passar longe dos abismos.
 
É o que eu penso nesse instante vendo-as vibrar na claridade, apesar da densa sombra que se abate sobre o Brasil com sua triste face de corrupção e violência social
 
mas não é só aqui, dizem os intérpretes do caos, mas sendo aqui, digo eu, já me basta, é o suficiente para danar a minha/nossa vida.
 
Estamos perplexos, temerosos, impotentes, humilhados diante da realidade que nos assola.
 
(dizer que saímos da escuridão abissal da ditadura e acabamos nisso, nesse buraco sem fundo que suga nossa alegria, nosso trabalho, nossa paz, nosso sangue, nossos sonhos
 
ceifa vidas diariamente nas ruas do país sem lei, sem autoridade, sem saúde, sem educação, sem esperança (tudo, claro, garantido no papel),
 
trágicas ruas onde se afunda o famoso, nunca demais louvado, não obstante sempre negligenciado estado democrático de direito
 
- de que estado e de que direito estamos falando mesmo? -
 
ninguém sabe ao certo se existe de fato e o que é isto no aqui e agora, nem mesmo se depois de tanta indiferença, omissão, arrogância, malandrice, cinismo e incompetência haverá ainda um país para chorar)
 
Mas olhando as quaresmeiras em flor, nesta hora e neste lugar, ao menos nesse efêmero instante, a morte não tem nem pode ter guarida.
 
As flores das quaresmeiras são o oposto da morte, negação do desespero e do abandono (longo abandono de séculos).
 
(a delicadeza dos ramos, pétalas e cores remete a um mundo outro)
 
Um tempo de recolhimento e silenciosas caminhadas por estradas interiores nos habita na quaresma.
 
Olhar atento ao solitário vôo do pássaro sobre os fios de luz, tecendo destino e distância com a nossa esperança (por um fio).
 
Tempo de resistência
(como sempre)
de atravessar a ponte
(sobre o rio das mortes)
e chegar vivo do outro lado.
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*Interesse Público

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

O guardião da cidade-fantasma

Jorge Adelar Finatto
 
Shigeru Nakayama. photo: Bruno Kelly (Folhapress)
 
Airão Velho é uma cidade em ruínas, nas margens do rio Negro, perdida na floresta amazônica. Nasceu em 1694 como Santo Elias do Jaú, primeira povoação daquela região ribeirinha, no atual Estado do Amazonas. Algumas décadas depois da fundação, portugueses mudaram-lhe o nome para Airão Velho.
 
Cidades-fantasmas não são propriamente raridades no Brasil. Nós que vivemos aqui em Passo dos Ausentes, nos Campos de Cima do Esquecimento, sabemos bem o que é isso.
 
Não é por essa razão que Airão Velho virou notícia na Folha de São Paulo por esses dias*. Após o auge durante o período do ciclo da borracha (final do século XIX, inícios do XX), foi gradativamente se esvaziando.

Na década de 1960, os últimos moradores partiram por falta de opção econômica e se estabeleceram a 100 km do local, na hoje Novo Airão, distante 120 km de Manaus.

O que restou da antiga cidade é cuidado pelo imigrante japonês Shigeru Nakayama, 65 anos, que vive ali sozinho num casebre há 13 anos.
 
Ele sobrevive da pesca e de uma horta que cultiva nas cercanias do rio Negro, sem ajuda do Estado no trabalho de conservação. As ruínas e objetos que fizeram parte da vida da comunidade são poucos e Shigeru assumiu a missão de dar-lhes guarida, antes que desapareçam:
 
- Não quero abandonar isso aqui, tenho paixão por esse lugar, disse ele ao enviado especial da Folha, jornalista Lucas Reis.
 
A história do guardião remonta ao ano de 1964, quando desembarcou no Brasil, aos 16 anos, em Belém do Pará, com os pais e mais três irmãos. Vinham de Fukuoaka, no Japão. Um dia foi convidado por uma integrante da família Bezerra (importante em Airão Velho), ex-moradora, para cuidar das ruínas. Ele aceitou a tarefa e começou a recolher remanescentes históricos, formando um pequeno museu em sua casa. Na época de finados, limpa o cemitério. A patroa morreu em 2012, mas ele continua firme, cuidando e limpando o lugar.
 
photo: Bruno Kelly (Folhapress)
 
Segundo Shigeru, o local é conhecido internacionalmente e recebe turistas, principalmente estrangeiros, além de pesquisadores. "Não restou quase nada, mas tem muita história", afirmou a Lucas.
 
Conforme a reportagem, sobraram poucas coisas: uma casa de comércio, uma residência, o cemitério, uma escola, restos da igreja construída em 1702. O pedido de tombamento está sendo examinado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e tomara que a resposta não tarde.
 
A matéria da Folha, revelando o zelo do japonês em plena floresta amazônica, traz a idéia de que o mundo é quintal de todos, independente da nacionalidade e do lugar onde a pessoa resolve viver. Shigeru cuida daquele torrão brasileiro como se tivesse nascido lá. É uma relação de amor com a terra, com a memória dos que lá viveram, com a história da velha e extinta cidade.
 
Aquilo que para muitos seria motivo de insuportável solidão, para o imigrante é razão de realização e orgulho.
 
Essa história demonstra que o que vincula um indivíduo a um lugar é o sentimento e o compromisso que tem em relação a ele.

A consciência de pertencimento é coisa de coração e mente, não de papéis oficiais. São atitudes como a de Shigeru Nakayama que fazem a diferença entre a conservação e a destruição da Amazônia (e do próprio planeta).
 
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Folha de São Paulo, edição digital de 29/12/2013. Reportagem do enviado especial Lucas Reis com fotos de Bruno Kelly (Folhapress):