Estava em solidão com o livro (Em busca do tempo perdido) no breve jardim de inverno no meu solar da Praça Maurício Cardoso, na madrugada fria de Porto Alegre, quando ouvi o som do telégrafo no escritório. Sim, ainda tenho um desses vetustos aparelhos (ninguém mais sabe o que é isso). É com ele que me comunico com Passo dos Ausentes.
Quem será no manipulador a uma hora dessas? Ainda há gente viva naquela cidade perdida? - perguntei-me.
Pedi licença a Marcel Proust (1871-1922) para ausentar-me um momento. Ele me olhou como quem diz: vá lá, eu tenho toda a eternidade pela frente.
Subi ao escritório e li a mensagem. Era Alberta de Montecalvino*, a Senhora da Biblioteca, me lembrando que nesta sexta-feira, 09 de agosto, começa mais um Festival de Cinema de Gramado, que se estenderá até o dia 17. Trata-se da 41ª edição do evento, que reúne filmes brasileiros e latinos. Mais que isso: a nobre dama me convocou a fazer a cobertura do festival para o blog.
Do meu jeito, claro, com liberdade, inclusive, para não assistir a todos os filmes (quem há de ver tudo?). Eu não consigo. Preciso de um tempo para respirar e admirar as magnólias que brilham nessa época contra o céu azul de Gramado.
Respondi que sim, tenho por norma jamais dizer não ao cinema e à Alberta. Depois, naquela glacial madrugada, voltei ao jardim e comuniquei a meu amigo que teria de viajar, expliquei-lhe o motivo.
- Não se explique tanto, vá em paz, meu caro. Na sua volta, estarei aqui, esperando, aliás como sempre faço - disse-me Marcel. Havia nessas palavras muito mais que compreensão: era a ironia proustiana caindo sobre mim.
E não pense o leitor que me espantei, pois faço jus à ironia do grande escritor francês. Faz trinta anos que não consigo terminar de ler os sete volumes de Em busca do tempo perdido.
Deus, é difícil confessar tamanha barbaridade. As páginas dos volumes ficaram amarelas, muitas coisas caíram no esquecimento dentro de mim, meus cabelos ficaram cor de cinza. Minha culpa não tem limites e é ainda maior do que aparenta: sequer recordo quantas vezes iniciei e interrompi a leitura do primeiro volume (No caminho de Swann), na bela tradução de Mario (sem acento, por favor) Quintana.
Proust por volta de 1900. photo: Sygma/Corbis. fonte: site do jornal The Guardian** |
Deus, é difícil confessar tamanha barbaridade. As páginas dos volumes ficaram amarelas, muitas coisas caíram no esquecimento dentro de mim, meus cabelos ficaram cor de cinza. Minha culpa não tem limites e é ainda maior do que aparenta: sequer recordo quantas vezes iniciei e interrompi a leitura do primeiro volume (No caminho de Swann), na bela tradução de Mario (sem acento, por favor) Quintana.
Pois justo agora tinha decidido seguir até o fim. Com o constrangimento habitual, pedi desculpas a Marcel que, com gravata de laço, perna esquerda cruzada, sentado, olhou para o teto, ergueu a mão direita, deixando-a cair em seguida sobre o braço vermelho da poltrona.
- C'est la vie, c'est la vie, mon ami, disse ele com visível enfado, baforando a cigarrilha contra a luz do abajur azul. No mesmo instante perguntei se não gostaria de viajar comigo a Gramado. Poderíamos continuar a conversa na serrana cidade, andar pelas ruas, ir a cafés e tavernas, que nessa época se enchem de felinis e mazaropis. Qual não foi minha surpresa com a concordância de Marcel.
Preparei a Yamaha 250 cilindradas (ano 1974), pouca roupa no alforje e parti, partimos, em tresloucada aventura pela BR-116. Marcel veio na carona da moto.
Preparei a Yamaha 250 cilindradas (ano 1974), pouca roupa no alforje e parti, partimos, em tresloucada aventura pela BR-116. Marcel veio na carona da moto.
E aqui estamos olhando a imensidão do Vale do Quilombo, no hotel, depois de três horas de vento e garoa na cara. No caminho, paramos em Nova Petrópolis para um café com memorável fatia de bolo caseiro, que teve para nós o sabor de uma madeleine proustiana.
Publicado em 1913, No caminho de Swann foi pago com o dinheiro do próprio escritor. É a porta de entrada desta grande, bela e acolhedora casa. Desta vez, vou tentar não decepcionar Marcel. Enquanto o festival não começa, estamos convivendo, varando as noites em busca da memória e do sentido das coisas.
Os filmes que quero ver. O que mais me move nesta empreitada, não vou negar, é assistir aos seguintes filmes: A Oeste do Fim do Mundo (2013) - Argentina/Brasil (coprodução); Cazando Luciérnagas (2013) - Colômbia; El Padre de Gardel (2013) - Uruguai; Puerta de Hierro - El Exilio de Perón (2012) - Argentina; Repare Bem (2012) - Portugal; Venimos de Muy Lejos (2012) - Argentina.
O cinema que se faz na Argentina, principalmente, e no Uruguai, atualmente, está entre os melhores do mundo. Pretendo acompanhar de perto esses filmes, sem esquecer alguns brasileiros (embora sem levar muita fé, confesso. Tomara que me surpreenda).
E, é claro, não vou perder os curtas, que passam às tardes, gratuitamente, no Palácio dos Festivais. Descobri belos trabalhos entre os curtas nas edições anteriores.
Os pequenos-grandes filmes são a cereja do bolo do festival de Gramado.
______________
O Cavaleiro da Bandana Escarlate, menestrel medieval e livre-pensador, faz a cobertura do Festival de Cinema de Gramado para o blogue a convite de Alberta de Montecalvino.
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/01/o-conde-de-lautreamont-e-as-magnolias.html
*Alberta de Montecalvino:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/07/alberta-de-montecalvino.html
**The Guardian:
http://www.theguardian.com/books/2013/feb/07/reading-group-swanns-way
Publicado em 1913, No caminho de Swann foi pago com o dinheiro do próprio escritor. É a porta de entrada desta grande, bela e acolhedora casa. Desta vez, vou tentar não decepcionar Marcel. Enquanto o festival não começa, estamos convivendo, varando as noites em busca da memória e do sentido das coisas.
Os filmes que quero ver. O que mais me move nesta empreitada, não vou negar, é assistir aos seguintes filmes: A Oeste do Fim do Mundo (2013) - Argentina/Brasil (coprodução); Cazando Luciérnagas (2013) - Colômbia; El Padre de Gardel (2013) - Uruguai; Puerta de Hierro - El Exilio de Perón (2012) - Argentina; Repare Bem (2012) - Portugal; Venimos de Muy Lejos (2012) - Argentina.
O cinema que se faz na Argentina, principalmente, e no Uruguai, atualmente, está entre os melhores do mundo. Pretendo acompanhar de perto esses filmes, sem esquecer alguns brasileiros (embora sem levar muita fé, confesso. Tomara que me surpreenda).
E, é claro, não vou perder os curtas, que passam às tardes, gratuitamente, no Palácio dos Festivais. Descobri belos trabalhos entre os curtas nas edições anteriores.
Os pequenos-grandes filmes são a cereja do bolo do festival de Gramado.
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O Cavaleiro da Bandana Escarlate, menestrel medieval e livre-pensador, faz a cobertura do Festival de Cinema de Gramado para o blogue a convite de Alberta de Montecalvino.
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/01/o-conde-de-lautreamont-e-as-magnolias.html
*Alberta de Montecalvino:
http://ofazedordeauroras.blogspot.com.br/2012/07/alberta-de-montecalvino.html
**The Guardian:
http://www.theguardian.com/books/2013/feb/07/reading-group-swanns-way